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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.51 Lisboa set. 2016

 

RECENSÃO

 

Os desafios da segurança num mundo global

 

João Estevens

Licenciado em Economia (NOVA SBE) e em Ciência Política e Relações Internacionais (FCSH-NOVA). É também pós-graduado em Programação e Gestão Cultural (Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias) e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, especialidade globalização e ambiente (FCSH-NOVA). É, atualmente, doutorando em Estudos sobre a Globalização (Universidade Nova de Lisboa) e pós-graduando em Gestão de Informações e Segurança (NOVA IMS). Investigador do IPRI-NOVA. Os seus interesses de investigação assentam sobretudo nos estudos de segurança, estudos sobre a globalização, Estado e punição, análise prospetiva e planeamento, demografia (envelhecimento e migrações).

 

JOÃO VIEIRA BORGES E TERESA FERREIRA RODRIGUES (COORDS.)

Ameaças e Riscos Transnacionais no Novo Mundo, Porto, Fronteira do Caos Editores, 2016, 331 páginas.

 

A multiplicidade de definições de globalização evidencia um entendimento heterogéneo do fenómeno e da sua origem, existindo alguma divisão da comunidade científica na operacionalização do conceito, tornando-se a globalização num processo aberto e dinâmico, que reúne conclusões bastante polarizadas no que se refere aos seus resultados1. Todavia, parece difícil negar que o mundo atual se encontra mais interconectado do que nunca. A crescente interconexão, potenciada por processos de aproximação espacial e temporal, acarretou novos desafios para a segurança dos estados e dos indivíduos. As ameaças e os riscos encontram-se, cada vez menos, limitados pelas fronteiras nacionais, criando uma rede de crescentes interdependências, que acrescentam complexidade à governação da segurança global. É este o ponto de partida da presente obra, que tem como objetivo central a identificação e a caracterização dos riscos e ameaças, de matriz transnacional, que se colocam ao mundo na segunda década do século XXI.

No mundo de hoje, designado por global, assistiu-se à emergência de novos atores no sistema internacional, públicos e privados, pertencentes ou não à esfera estatal, que agem em diferentes níveis (nacional, transnacional, internacional) e pretendem participar no processo de tomada de decisão, neste caso associado à definição das políticas de segurança. Os estados-nação saídos de Vestefália deixaram de deter o monopólio das relações internacionais, sendo o mundo atual regido por um «novo» paradigma das relações internacionais: a globalização.

É este o enquadramento da obra coordenada por João Vieira Borges e Teresa Ferreira Rodrigues, ambos com produção científica prévia na área dos estudos de segurança. O tema da globalização e segurança é um tema em destaque na agenda de relações internacionais, em particular nos países anglófonos2. A presente obra insere-se na tendência dos últimos anos em que se assistiu à publicação de vários títulos que procuram relacionar o fenómeno da globalização e o novo ambiente securitário decorrente do final da Guerra Fria. De notar, ainda, que se trata da primeira publicação em língua portuguesa, com estas características, neste campo de estudo das relações internacionais.

 

OS «NOVOS» RISCOS GLOBAIS

Derivado do processo de globalização surgiram inúmeras incertezas, que se concretizam em riscos variados para as sociedades3. Os riscos, tal como as ameaças, não se podem considerar exclusivos da globalização, acontecendo as alterações sobretudo ao nível da magnitude das consequências. A obra enfatiza a ideia de que a complexidade e o impacto dos riscos e das ameaças se alargaram a uma escala transnacional, exigindo, por conseguinte, respostas transnacionais, que contribuem para o reforço da dimensão cooperativa na gestão da segurança global.

Na literatura sobre o tema, encontra-se um tratamento disperso dos vários riscos e ameaças existentes no mundo de hoje, sendo difícil definir quais são os grandes riscos globais: alterações climáticas, desequilíbrios ecológicos, problemas de saúde pública, acesso a água potável e saneamento, conflitos e corrida ao armamento, terrorismo internacional, ciberterrorismo, instabilidade financeira, má governação e corrupção, má nutrição e fome, assimetrias demográficas, problemas decorrentes das migrações e das políticas de integração nos países de acolhimento, escassez de recursos, dependência energética, barreiras comerciais e desigualdades socioeconómicas, entre outros que se poderiam mencionar.

Na presente obra, dos catorze capítulos existentes, todos eles com objetivos próprios e explorados com um rigor científico assinalável, onze são temáticos, dedicando-se a diferentes riscos e ameaças, designadamente, ao terrorismo internacional (João Serra Pereira), à pirataria (Jaime Ferreira da Silva), à criminalidade transnacional organizada (Luís Elias), à proliferação de armas de destruição maciça (Francisco Proença Garcia), aos estados frágeis (Nuno Lemos Pires), aos conflitos regionais (António Arnaut Moreira), à ciber-segurança (Paulo Fernando Viegas Nunes), à competição por recursos naturais (Carlos Mendes Dias), às mudanças climáticas e aos desastres naturais (Américo Zuzarte Reis), aos choques demográficos (Teresa Ferreira Rodrigues) e à intelligence (Alice Feiteira). Esta análise temática dos riscos e ameaças é precedida de dois capítulos fundamentais de contextualização. O primeiro, assinado por António José Telo, dedica-se à caracterização da nova ordem global no mundo pós-Guerra Fria, retratando um «mundo bizarro» (p. 19) e uma evolução global desigual ao nível do poder económico e militar dos estados na última década e meia. No segundo capítulo, João Vieira Borges elabora uma análise comparativa das estratégias de segurança nacionais dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, permitindo aferir a evolução do próprio conceito de segurança, enquanto construção social emanada do poder, e a sua inclusão na práxis dos estados, além de assinalar os riscos e as ameaças comuns e distintos entre as estratégias de segurança nacionais dos cinco países em estudo. Seguem-se os capítulos temáticos supramencionados, aos quais sucede o décimo quarto e último capítulo, da autoria de José Loureiro dos Santos, aproximando-se de uma conclusão da obra, que o livro não apresenta do ponto de vista formal. Neste capítulo, o autor analisa os desafios que se colocam à segurança num futuro próximo, pese embora com duração incerta, e evidencia a origem e o tipo dos riscos e das ameaças globais, bem como a forma como se poderão vir a materializar. É, também, neste último capítulo, à semelhança do que já acontecera nos três anteriores, que se procede a uma maior integração das várias ameaças e riscos transnacionais do novo mundo global, na medida em que o tratamento temático de alguns capítulos aconteceu com um elevado grau de autonomia, nem sempre esmiuçando as relações existentes entre algumas das ameaças e riscos explorados ao longo da obra.

 

A IMPORTÂNCIA DA DEFINIÇÃO DE PRIORIDADES NA GESTÃO DA SEGURANÇA GLOBAL

Um dos fatores que poderá explicar a ausência de um consenso claro, na literatura, sobre a definição dos riscos e das ameaças globais poderá residir nos dissemelhantes perfis dos observadores, consequência de diferentes formações académicas e percursos profissionais distintos. Nesta obra, assinala-se uma prevalência de autores com ligação às Forças Armadas Portuguesas, de onde decorre uma natural incidência da análise da segurança global centrada num eixo político-militar. Seria difícil incluir todos os riscos e ameaças, como é explicado, pelos coordenadores da obra, no texto introdutório, assentando o critério da seleção na sua presença «na maioria das estratégias nacionais dos estados e organizações internacionais» (p. 2). Ainda assim, tendo a obra como objetivo, assumido na primeira página, analisar não só as ameaças que se colocam ao Estado, mas também aos indivíduos, poder-se-á constatar a ausência de algumas dimensões associadas à segurança económica, alimentar ou sanitária. Deste modo, parece existir um entendimento do conceito de segurança mais próximo da segurança nacional, em função do menor espaço relativo concedido a riscos e ameaças associados à segurança humana, mais presentes em obra anterior coeditada por Teresa Ferreira Rodrigues4.

Não obstante, o que parece uma certeza num mundo caracterizado por incertezas é o facto de serem muitos os riscos e as ameaças transnacionais no «novo mundo global». Uma vez que os recursos disponíveis para neutralizar todos os riscos e ameaças, na totalidade e em simultâneo, são escassos, é importante apostar-se na prevenção e na necessidade de procurar respostas estratégicas assentes numa hierarquização dos riscos e das ameaças, ou seja, na definição de prioridades5. Se o reforço das dimensões preventiva e cooperativa na gestão de um ambiente estratégico transnacional marcado por riscos e ameaças globais é uma constante ao longo dos vários capítulos da obra, a definição de prioridades não se estabelece como objetivo da mesma, assumindo-se, por omissão, que os riscos e as ameaças desenvolvidos manifestam-se com níveis de importância relativa similares para a gestão da segurança global.

As questões de segurança têm sido fundamentais para as várias teorias das relações internacionais6 e prevê-se que continuarão a sê-lo no futuro, colocando-se as mesmas, atualmente, no âmbito do processo de globalização. Neste sentido, a presente obra produz uma sistematização de conhecimentos notável, acrescentando uma mais-valia à produção científica em língua portuguesa na área dos estudos de segurança, em particular no esmiuçar da relação entre segurança e globalização. Trata-se de um tema atual e com inerente visão de futuro. E o futuro começa a construir-se no presente, tendo a Academia um papel fundamental neste processo. Tal como escreve Adriano Moreira, no prefácio da obra«A Universidade tem de novo uma função urgente, que é a de reconstruir um projeto de futuro, a sua quarta dimensão de uma história longa. É nessa linha que se inscreve o presente promissor trabalho» (p. XIII). 

 

NOTAS

1 RODRIGUES, Teresa – «Globalização. Definições, convergências e diversidades». In CORREIA, Victor (org.) – A Distinção Política «Esquerda-Direita»: A Problemática da Sua Validade e Atualidade. Lisboa: Fonte da Palavra, 2012, p. 136.

2 CHA, Victor D. – «Gobalization and the study of international security». In Journal of Peace Research. Vol. 37, N.º 3, 2000, p. 391. Mais recentemente, com uma caracterização aprofundada de vários riscos e ameaças, veja-se HOUGH, Peter – Understanding Global Security. 2.ª edição. Londres: Routledge, 2008; WILLIAMS, Paul D. (ed.) – Security Studies: An Introduction. Nova York: Routledge, 2008; KALDOR, Mary, e RANGELOV, Iavor (eds.) – The Handbook of Global Security Policy. Londres: Blackwell Publishing, 2014.

3 BECK, Ulrich – Risk Society, Towards a New Modernity. Londres: Sage Publications, 1992.

4 RODRIGUES, Teresa, PÉREZ, Rafael García, e FERREIRA, Susana de Sousa (eds.) – Globalization and International Security. An Overview. Nova York: Nova Science Publishers, 2015.

5 LOMBORG, Bjorn – «Conclusion». In Global Crises, Global Solutions. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 680.

6 SARMENTO, Cristina Montalvão – Política & Segurança, Novas Configurações do Poder. Lisboa: CHC-UNL, ICPOL-ISCPSI, 2009, p. 16.

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