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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.51 Lisboa set. 2016

 

O IMPACTO DA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL NORTE-AMERICANA

 

2016, a «longa caminhada». Das eleições primárias à sucessão de Obama

2016, "the long walk". From primary elections to Obama's succession

 

José Gomes André

Professor auxiliar convidado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Doutorou-se com uma tese sobre o pensamento político de James Madison. Trabalha atualmente num pós-doutoramento sobre federalismo moderno e contemporâneo. Tem diversas publicações sobre estes temas, com especial incidência na análise da política norte-americana.

 

RESUMO

Neste artigo debruçamo-nos sobre o ano eleitoral de 2016 nos Estados Unidos, com especial atenção à eleição presidencial. Numa fase inicial, expomos as características fundamentais das «primárias», numa perspetiva histórica e metodológica, a que se segue um comentário sobre os resultados verificados este ano (no Partido Republicano e no Partido Democrata). Numa secção posterior, avaliam-se prospetivamente as possibilidades dos candidatos em novembro (tanto para a Casa Branca, como nas eleições para o Congresso). Na parte final, analisamos os temas dominantes na campanha presidencial e quais as propostas dos candidatos Hillary Clinton e Donald Trump em cinco domínios principais: economia, política externa, justiça, imigração e saúde.

Palavras-chave: Eleição presidencial, Estados Unidos, Hillary Clinton, Donald Trump, eleições primárias.

 

ABSTRACT

This article deals with the electoral year of 2016 in the USA, especially the presidential election. We start by describing the fundamental characteristics of the “Primary elections”, in a historical and methodological perspective, which is followed by a commentary of this year results (both in the Republican and Democratic Parties). The next section evaluates prospectively the chances of the candidates in the upcoming elections in November (to the White House and Congress). In the final part of the paper, we analyze the main topics of the presidential campaign and the proposals of Hillary Clinton and Donald Trump in five areas: economy, foreign policy, justice, immigration and healthcare.

Keywords: USA presidential election, Hillary Clinton, Donald Trump, USA primary elections.

 

UM CURIOSO INSTRUMENTO: AS PRIMÁRIAS NO SISTEMA ELEITORAL NORTE-AMERICANO

No dia 8 de novembro de 2016, os Estados Unidos escolherão o sucessor de Obama, bem como os 435 membros da Câmara dos Representantes e 34 cargos no Senado. No entanto, o processo eleitoral iniciou-se muitos meses antes, devido à existência de um singular instrumento: as primárias. De forma breve, trata-se de um método de seleção prévio às eleições gerais, em que os eleitores escolhem os candidatos dos partidos a diversos cargos políticos. Contrariamente a outros países, onde as cúpulas partidárias fazem essa nomeação, as primárias nos Estados Unidos são um processo eminentemente popular, permitindo aos eleitores decidir, desde logo, que indivíduos devem figurar nos boletins de voto, esteja em causa a escolha do Presidente, congressistas ou até cargos estaduais.

Adotado no início do século XX, este método pretendia aproximar os candidatos dos cidadãos e enfraquecer o poder das máquinas partidárias, que até aí dominavam o processo de seleção dos candidatos. Inicialmente recebidas com pouco entusiasmo pelo público (e renitência pelos partidos), as primárias só assumiram a sua faceta moderna – tornando-se vinculativas e extensivas a todo o país – nos anos 70 do século passado, sendo hoje prática consensual no sistema eleitoral dos Estados Unidos.

As características deste processo eleitoral são difusas, o que se explica em grande parte pela natureza idiossincrática do próprio sistema político norte-americano. Organizados numa federação de cinquenta estados, os Estados Unidos privilegiam a combinação de instrumentos de homogeneidade (que destacam a existência do país como uma «nação unida»), com o respeito pela autonomia de cada um dos estados que compõem a federação. Esta ambivalência reflete-se na organização das primárias. Por um lado, há um esforço dos partidos para controlar o sistema eleitoral, impondo regras gerais quanto à calendarização do processo, distribuição de delegados por cada estado e organização das convenções nacionais (onde se aclama o vencedor).

Todavia, os estados – ou melhor, as organizações partidárias estaduais – ciosos das suas prerrogativas, contrapõem a este esforço de uniformização um conjunto de normas variáveis, no que toca à organização do processo (tipo de boletins de voto, hora de abertura das urnas), método de seleção de delegados (proporcional, winner-takes-all ou distribuição por distritos congressionais), condições prévias de admissão do eleitorado e ainda o formato da eleição propriamente dita. Este último compreende dois modelos fundamentais. Um deles designa-se usualmente de «eleições primárias», um processo alargado de voto secreto, em urna fechada ou com «voto eletrónico». No entanto, sob esta aparente uniformidade, esconde-se uma abundante variedade metodológica, sobretudo no que toca à admissão de eleitores potenciais. Alguns estados organizam «primárias fechadas», nas quais só podem votar os eleitores registados nos partidos (testando a popularidade de um candidato entre o núcleo duro dos seus apoiantes). Outros preferem realizar primárias «abertas», sem exigência de registo de identificação partidária, avaliando-se sobretudo a capacidade de um candidato agradar aos «independentes».

Como em quase tudo o que diz respeito às primárias nos Estados Unidos, há no entanto muitas exceções a estas «regras básicas»: por exemplo, existem estados com «primárias fechadas», mas que permitem fazer o registo partidário até ao dia da eleição, ou estados que permitem aos eleitores votar nas primárias de mais do que um partido. Em algumas situações, os eleitores devem solicitar um boletim de voto do partido em que desejam votar; noutras, podem decidir na privacidade da cabina de voto. Quanto aos «independentes», nalguns casos podem registar-se temporariamente num partido; noutros, são autorizados a exercer o voto numa condição apartidária. A lista de especificidades é praticamente interminável.

O formato de «primárias» foi acolhido pela maioria dos estados, pois permite uma ampla participação eleitoral. Contudo, alguns estados adotaram um método alternativo, chamado de caucus (palavra índia que designava um conselho de chefes de várias tribos). Trata-se de um instrumento deliberativo peculiar, que promove o debate entre os participantes num singular exercício de cidadania, mediante a troca de argumentos em favor de um determinado candidato. A reunião pode durar várias horas, durante as quais os partidários de um candidato procuram defender os seus méritos, para convencer os outros membros presentes a juntarem-se ao seu grupo, antes de se proceder à contagem final dos votos. Os críticos consideram o processo pouco democrático, pois pressupõe um voto público, sujeitando além disso os participantes a pressões de elementos politicamente mais ativos. Há, no entanto, quem defenda os caucuses pela forma como convidam a um aceso debate político e envolvem o eleitor comum num processo decisório1.

Decorrendo ao longo de mais de quatro meses, em 50 estados e diversos territórios ultramarinos, envolvendo cerca de 60 milhões de eleitores, as primárias nos Estados Unidos celebram o ideal democrático, ora na forma de uma participação popular em massa, ora pelo escrutínio dos candidatos, mesmo antes de se proceder às eleições gerais, nas quais se confrontam os aspirantes aos mais importantes cargos da nação. A complexidade do sistema atemoriza o mais incauto espetador – as próprias campanhas contratam dezenas de especialistas para lidar com as minudências da logística eleitoral. Porém, a referida celebração popular adscrita ao processo, e a forma como permite testar antecipadamente os candidatos, tornou as primárias num instrumento acarinhado pelo eleitorado, sendo hoje parte indispensável da democracia norte-americana.

 

AS PRIMÁRIAS DE 2016 EM RETROSPETIVA

Desde que as primárias se generalizaram, os partidos perderam quase totalmente a sua capacidade de condicionar a nomeação de candidatos, uma vez que estes decidem livremente sujeitar-se de forma imediata ao voto popular. Tal facto trouxe grande diversidade às primárias, nomeadamente quando – como sucede em 2016 – o Presidente está impossibilitado de renovar o seu mandato, deixando assim «em aberto» a escolha do partido a que pertence (neste caso, o Partido Democrata) e reforçando as esperanças dos seus rivais (em 2016, o Partido Republicano) na obtenção de uma vitória.

Não surpreende pois que, entre os republicanos, afastados da Casa Branca desde 2008, se tenha apresentado a votos o mais vasto elenco de candidatos da era moderna – 17 pessoas, incluindo rostos conhecidos da política norte-americana, como Jeb Bush, Ted Cruz, Marco Rubio, Rand Paul e Chris Christie, entre outros, conjunto que expressava a própria diversidade ideológica do Partido Republicano (conservadores tradicionais, republicanos moderados, libertários, social conservatives, aficionados do Tea Party). Não obstante, e contra todas as expetativas, o vencedor acabou por ser Donald Trump, um milionário sem experiência política, mais conhecido pelo seu comportamento errático e participação em concursos televisivos do que propriamente por uma carreira de serviço público.

Explicar a surpreendente vitória de Trump implica considerar diversas variáveis. Uma das mais importantes parece ser o descontentamento generalizado do eleitorado norte-americano com a vida política no país, nomeadamente o estado anémico da economia, a sucessão de alterações sociais relevantes (aprovação do casamento homossexual, despenalização do consumo de drogas leves em vários estados) e a implementação do novo sistema de saúde (nacionalizado e obrigatório), muito impopular junto dos setores conservadores. Os estudos de opinião são inequívocos: o apoio ao Congresso é o mais baixo de sempre, a palavra anger («zangado/a») é a mais usada pelos eleitores para descrever o seu estado de espírito, o número de independentes não para de crescer2.

Importa também recordar que, no século XXI, os Estados Unidos têm visto a sua hegemonia questionada, em particular no plano económico e demográfico e que, desde o 11 de Setembro, os norte-americanos experienciam uma sensação de insegurança, que os atentados terroristas e o caos no Médio Oriente apenas reforçaram. Uma grande parcela do eleitorado, sobretudo nos setores mais conservadores, vive um momento de «perda de referências», num planeta instável, que abalou os pilares da sua visão do mundo. O discurso tradicionalista de Trump – cujo slogan é «Make America Great Again» (Tornar a América Novamente Grande) – promete justamente reinstaurar os alicerces dessa mundividência (uma América gloriosa e hegemónica), o que se torna muito atrativo para este tipo de eleitores.

Há outros dados a ter em conta. Os republicanos nomearam dois moderados para enfrentar Obama em 2008 (McCain) e 2012 (Romney) e ambos perderam. Tal situação criou junto do eleitorado republicano a convicção de que um candidato «centrista» não é necessariamente a melhor opção, e que poderá ser preferível mobilizar a base mais conservadora, especialmente com um nome «fora da caixa», capaz de agitar o mapa político.

Este sentimento é reforçado pelas alterações vividas no Partido Republicano nos últimos anos, face à emergência do Tea Party, movimento que conjuga uma mensagem intransigente de conservadorismo fiscal com um discurso isolacionista na política externa, bem como uma crítica feroz à Administração Obama e aos «hábitos» de Washington. O Tea Party provocou um terramoto na política dos Estados Unidos, elegendo vários congressistas e senadores comprometidos com os seus valores, mas sob a bandeira do Partido Republicano, adensando um fenómeno que a historiadora Anne Applebaum designou de «desaparecimento dos moderados»3. Na realidade, a recente radicalização do discurso político promoveu o surgimento de políticos polarizadores, os quais estiveram durante décadas confinados a cargos menores, mas que vêm assumindo uma crescente preponderância, sobretudo no Partido Republicano, tornando a ascensão de alguém como Trump – que há uma década seria considerado «não presidenciável» – numa figura aceitável para muitos eleitores.

Por outro lado, e para além destas questões estruturais, Trump foi também bafejado pela fortuna das circunstâncias nas primárias de 2016, as quais contaram com um alargado conjunto de candidatos, como referimos. Durante meses, os favoritos debateram-se mutuamente, deixando Trump de fora do processo crítico, enquanto este recebia uma inédita atenção mediática, como o «candidato inesperado». Mesmo após as primeiras vitórias de Trump, o partido tardou em reagir e os seus adversários continuaram a ignorá-lo. Seguindo o célebre princípio «dividir para reinar», Trump foi amealhando vitórias, apesar da sua percentagem de votos raramente ultrapassar os 50 por cento, aumentando o número de delegados conquistados. Quando se procurou uma frente alternativa unida contra Trump, era demasiado tarde.

Rodeado de uma áurea de invencibilidade, ancorado numa história de sucesso profissional, e beneficiando de um cenário político e social fértil para um discurso populista, Trump surgiu como «o homem certo no momento certo». De alguma forma, com o seu discurso fácil e sem rodeios, mesmo repleto de traços xenófobos e machistas, assente numa confiança ilimitada, Trump é uma figura irresistível para boa parte do eleitorado.

A sua adversária é Hillary Clinton, que confirmou o seu favoritismo no campo democrata. Antiga primeira-dama, senadora de Nova Iorque, secretária de Estado, Hillary Clinton possui um currículo notável, ao qual junta a sua experiência eleitoral (candidata nas primárias em 2008 contra Obama), grande capacidade de financiamento e apoio do establishment partidário.

Estes dois últimos pontos são muito relevantes nas primárias. Estendendo-se ao longo de vários meses e decorrendo em dezenas de estados e territórios, o processo eleitoral norte-americano exige recursos financeiros consideráveis. Os anúncios nos media tradicionais, uma boa visibilidade nas redes sociais e uma organização de estruturas locais são indispensáveis a uma candidatura bem-sucedida, sendo no entanto muito dispendiosas. Com efeito, trata-se de um elemento problemático no processo eleitoral norte-americano, que se pretende o mais democrático possível, embora na prática tais exigências financeiras condicionem a liberdade das candidaturas. Os candidatos desdobram-se em eventos de angariação de fundos e, com frequência, ficam muito dependentes das contribuições de grandes companhias, que num futuro próximo poderão exigir retribuições políticas, nem sempre plenamente legítimas. Os últimos anos assistiram a várias tentativas, por parte do Congresso, em produzir legislação que reduzisse esta influência na vida política, mas uma decisão do Supremo Tribunal de 2010 («Citizens United v. Federal Election Comission») invalidou essas pretensões, considerando que as mesmas violavam o direito de indivíduos e organizações coletivas (sem fins lucrativos) a participarem livremente no financiamento do processo eleitoral, ao abrigo do 1.º Aditamento (liberdade de expressão).

A questão do «apoio partidário» ocupa também um lugar importante, sobretudo no Partido Democrata. Embora a larga maioria dos delegados seja obtida através do voto popular, o Partido Democrata criou o conceito de «superdelegados» – figuras relevantes do partido, que ocupam cargos políticos importantes (senadores, congressistas, governadores, etc.) – os quais participam na escolha do candidato. Trata-se de um mecanismo de filtragem do voto popular, que procura adicionar-lhe a ponderação adscrita ao desempenho de cargos públicos4.

A vitória de Hillary Clinton alicerçou-se na conjugação destes fatores – bem como dos elementos fundamentais característicos das eleições primárias em geral. Foi a candidata que angariou mais fundos (348 milhões de dólares, contra 229 milhões de Sanders, o seu principal rival) e que dominou as redes sociais (contra uma perceção comum, Hillary tem mais seguidores do que Sanders no Twitter, mais likes no Facebook, mais visualizações no Youtube)5. Triunfou em 28 estados e seis territórios, e obteve 16,8 milhões de votos (55 por cento), correspondentes a 2204 delegados (4051 dos atribuídos por voto). A sua vitória alicerçou-se sobretudo na sua popularidade junto dos afro-americanos, das mulheres e da classe operária, três segmentos eleitorais fundamentais da «coligação democrata».

Hillary Clinton obteve também um apoio claro dos «superdelegados» (560 em 713), traduzindo o seu favoritismo junto das figuras mais prestigiadas do partido, que a preferiram a Sanders, senador do Vermont que até há pouco tempo nem sequer pertencia ao Partido Democrata (a sua carreira política baseava-se na sua posição de «independente»). Sanders conseguiu resultados surpreendentes nas primárias, beneficiando dos excelentes resultados entre o eleitorado jovem e independente e de uma mensagem apelativa à ala mais progressista do partido (crítica do grande capital, defesa do ensino gratuito, políticas liberais, reforma do sistema político e eleitoral, combate à corrupção partidária). Todavia, a sua incapacidade de captar um voto mais alargado, em termos demográficos (perdeu latinos e afro-americanos por largas margens) e geográficos (sofreu pesadas derrotas no Sul e nos principais estados atlânticos), condenou a sua candidatura.

 

NOVEMBRO – O QUE ESPERAR?

Embora estejam em causa centenas de cargos públicos, a eleição do Presidente dominará naturalmente a atenção no dia 8 de novembro. O sistema utilizado é um dos mais originais do mundo, resultado de um compromisso estabelecido na Convenção de Filadélfia de 1787, e aperfeiçoado ao longo da história norte-americana. Em traços largos, trata-se de combinar os aspetos fundamentais de uma eleição popular (envolvendo os cidadãos americanos legalmente aptos a votar) com a filtragem adscrita a uma república federal (sendo por isso os votos atribuídos pelos estados, ponderado o seu peso demográfico e a sua presença no Congresso – cada estado dispõe de um «x» número de «votos eleitorais» correspondentes à soma do seu número de representantes e senadores no Congresso federal, a que se juntam três votos eleitorais do distrito de Colúmbia). Este sistema procura honrar os princípios democráticos (pois traduz a preferência dos eleitores, que escolhem livremente o candidato desejado), mas também preservar a natureza federal do sistema, acautelando tanto os interesses dos estados mais populosos (a quem cabem mais votos eleitorais), como dos estados mais pequenos (que têm maior preponderância efetiva neste sistema misto do que se fosse considerada apenas a proporcionalidade da sua população votante).

Para potenciarem a sua influência neste complexo esquema, os estados adotaram um mecanismo suplementar que o torna ainda mais peculiar: o sistema winner-takes-all, segundo o qual o candidato com um maior número de votos é declarado o vencedor nesse estado, conquistando todos os votos eleitorais do mesmo, prática que procura evitar uma dispersão desses votos (reforçando a importância de estados demograficamente menos relevantes)6.

Face à existência deste invulgar modelo, a análise do processo eleitoral tende a preocupar-se menos com as tendências do chamado «voto popular» (ou seja, o voto de todos os cidadãos norte-americanos em geral), e mais com o contexto político vivido nos estados mais equilibrados – os swing-states – onde as características demográficas, económicas e sociais, bem como o histórico eleitoral, fazem prever uma disputa renhida. Uma vez que os estados atribuem todos os seus «votos eleitorais» ao vencedor, um triunfo por curta margem num estado relevante pode ser de importância vital para as aspirações dos candidatos.

Tradicionalmente voláteis, as eleições presidenciais norte-americanas conheceram uma surpreendente estabilidade no século XXI. Com efeito, nas últimas quatro eleições (2000, 2004, 2008 e 2012), 39 dos 50 estados preferiram o candidato do mesmo partido, independentemente do nome que figurava no boletim de voto. Nessas mesmas quatro eleições, a diferença do voto popular entre os dois principais candidatos foi sempre inferior a 7,5 por cento (em três casos foi até inferior a quatro por cento – a exceção é o triunfo de Obama em 2008). Por motivos variados – de ordem cultural, social, económica, política e demográfica – ocorreu uma peculiar estabilização das preferências eleitorais dos estados. O Partido Republicano mantém uma forte base de apoio no Sul (com a importância da chamada «direita religiosa») e no Oeste interior, obtendo bons resultados sobretudo nos subúrbios e nas áreas rurais, e entre o eleitorado conservador e a classe alta (devido à sua política fiscal, em particular). Os democratas, por sua vez, gozam de popularidade entre os afro-americanos, os hispânicos e o eleitorado urbano; conquistam mais facilmente as classes baixas e os operários; e a sua base de apoio concentra-se nas cidades muito populosas, no Nordeste, na região dos Grandes Lagos e na costa do Pacífico.

Neste cenário bastante fixo, a eleição tende a decidir-se nos (poucos) swing-states, onde os candidatos gastam milhões de dólares em publicidade e onde passam a maior parte da campanha. A este propósito, destacam-se quatro estados: Florida, Ohio, Virgínia e Colorado, que juntos valem 69 votos eleitorais (13 por cento do total). Para além deste peso específico, estes quatro estados são autênticos «barómetros» eleitorais, alinhando com o vencedor nas últimas quatro eleições presidenciais, e registando resultados no voto popular globalmente muito próximos dos números verificados a nível nacional (desvios inferiores a três por cento, em 2012). Embora sejam estados muito distintos entre si, a sua diversidade demográfica, política, social e económica é um reflexo da própria América: a sua população inclui porções relevantes de minorias étnicas, combinam largas áreas rurais com importantes aglomerados urbanos e possuem dados económicos genericamente alinhados com os Estados Unidos em geral. Dito de outro modo, são estados que representam, em «miniatura», a nação alargada em que se inserem; por esse motivo, os indicadores eleitorais neles registados tendem a ser reflexo de uma «vaga de fundo» que, tipicamente, se verificará no país.

À data em que escrevo este artigo, as sondagens realizadas nestes estados dão ligeira vantagem a Hillary Clinton, em linha com as «sondagens nacionais» (a 19 de julho, Hillary lidera no agregado do «RealClearPolitics» por 2,7 por cento)7. O favoritismo de Hillary, propalado pelos analistas políticos e pelos mercados eletrónicos, parece sair ainda reforçado se atendermos às alterações demográficas e sociais ocorridas nos últimos anos em estados tradicionalmente divididos, como os referidos (mas também na Carolina do Norte e no Nevada, por exemplo), onde uma população urbana, jovem e etnicamente diversificada tem ganho terreno, aumentando as possibilidades dos democratas8. Todavia, 2016 tem sido um ano de grandes surpresas – quem diria, há um ano, que Trump seria o candidato republicano? Assim sendo, recomenda a prudência que aguardemos pelos próximos desenvolvimentos, nomeadamente por uma longa e feroz campanha eleitoral.

Embora a eleição presidencial concentre a atenção mediática, importa, porém, recordar que em novembro irão a votos também 435 membros da Câmara dos Representantes e 34 senadores. O caso da Câmara dos Representantes, apesar de fundamental (devido às suas competências em matéria legislativa, nomeadamente de cariz orçamental), parece ser menos imprevisível. Os republicanos têm obtido aí bons resultados, controlam a Câmara por larga margem (mais 60 congressistas que os democratas) e a reorganização de distritos congressionais de 2010, operada pelos parlamentos estaduais, foi-lhes manifestamente favorável, pelo que não é de esperar alterações substantivas (os republicanos deverão perder alguns lugares, mas manter o controlo da Câmara).

O caso do Senado é mais complexo. Neste momento, os republicanos têm 54 senadores, contra 45 dos democratas (e um independente, que alinha com estes últimos). Dos 34 lugares em disputa, 24 são atualmente ocupados por republicanos, nalguns casos em estados tradicionalmente favoráveis aos democratas (Illinois, Wisconsin, Pensilvânia). Neste cenário, os democratas precisariam apenas de conquistar mais cinco lugares (ou quatro, se Hillary Clinton vencer a Presidência – o vice-presidente vota em caso de empate) para reconquistarem o controlo do Senado, situação que parece razoavelmente provável. Tendo em conta a importância desta câmara – para além do processo legislativo tradicional, o Senado tem poderes relevantes na assinatura de tratados internacionais, confirmação de nomeações para cargos públicos e composição do Supremo Tribunal – os resultados de 8 de novembro podem assumir, também aqui, grande importância para o futuro das opções políticas norte-americanas, designadamente no domínio da política externa.

 

IDEIAS E PROPOSTAS. O QUE ESTÁ EM CAUSA?

Devido à natureza do próprio cargo, a eleição presidencial tende a focar-se nas características individuais dos candidatos. Boa parte da campanha trata-se de um verdadeiro «concurso de popularidade», com os candidatos a sublinharem as suas virtudes pessoais, o seu percurso profissional e os seus feitos políticos. Por vezes, esta «espetacularização da política» torna-se francamente excessiva, debatendo-se aspetos do foro íntimo do candidato (a sua religião, relações pessoais, etc.). No caso de 2016, com a presença de duas figuras muito famosas e francamente polarizadoras na sociedade norte-americana, esta tendência deverá ser ainda mais visível, remetendo o debate de ideias políticas para segundo plano.

A este respeito, destaca-se a curiosa estratégia de Donald Trump, cujo discurso substantivo é vago, focando-se antes na sua «história de vida», nas suas qualidades como homem de negócios, alguém capaz de «agir», «liderar», «triunfar». Substitui-se a dimensão política do debate por uma espécie de «marketing individual», obtendo os eleitores, não tanto um conjunto de propostas específicas, mas uma série de «talentos pessoais» que, supostamente, garantem uma eficácia política em geral. Embora se envolva com mais frequência na discussão de propostas políticas concretas, a campanha de Hillary Clinton recorre igualmente a esta abordagem mais «pessoal», enfatizando a sua experiência, influência, capacidade de decisão e conhecimento dos «bastidores de Washington», que estariam nos antípodas da inexperiência política de Trump.

Apesar desta crescente despolitização do debate, há cinco temas principais que ocupam um lugar importante na eleição presidencial, com implicações relevantes no futuro da política norte-americana e, por inerência, na cena internacional. São eles a economia, a política externa, a justiça, a imigração e a saúde.

 

ECONOMIA

A economia é considerada pelo eleitorado como o tema mais relevante em 20169, mas os dados sobre esta matéria são algo ambivalentes. O PIB cresceu dois por cento em 2015 e as projeções apontam para um aumento em 2016 (crescimento de 2,6 por cento); o desemprego situa-se em 5,5 por cento, o número mais baixo desde o início da recessão em 2008; a inflação é mínima, o dólar é uma moeda estável, e houve um ligeiro aumento dos salários médios entre 2015 e 201610.

Aparentemente positivos, estes dados são, todavia, vistos como insuficientes por boa parte dos norte-americanos, historicamente habituados a crescimentos substanciais do PIB e «plena empregabilidade». Além do mais, estes números são agora possíveis em função de vários anos de políticas de austeridade, adotadas pelo Congresso, mas patrocinadas pela Administração Obama, que criaram um clima económico muito duro nos Estados Unidos. É certo que a «austeridade» norte-americana foi distinta da europeia: a redução da despesa pública não foi tão radical como em alguns países europeus, e foi acompanhada da manutenção de vários sistemas de incentivos públicos e de uma ligeira descida de impostos para a classe média, assim aliviando as famílias nas suas perdas financeiras. Todavia, muitas pessoas estiveram desempregadas nos últimos anos, o crescimento foi reduzido, o clima económico sombrio e o descontentamento permanece latente junto da população. Com efeito, as últimas sondagens mostram que 69 por cento das pessoas consideram que «o país está no caminho errado» e 50 por cento entendem que a «economia está a piorar» (contra 43 por cento que veem «melhorias»)11.

Neste cenário ambíguo, os dois candidatos tentam contar a sua «versão da história». Hillary Clinton surge como defensora do «paradigma Obama», enfatizando a recuperação económica e a queda progressiva do desemprego, defendendo a promoção do Estado social ao jeito norte-americano (ou seja, juntando investimento público com uma participação moderada do governo federal na regulação da atividade económica). Defende ainda uma progressiva redução do peso fiscal à classe média, a subida do salário mínimo federal, a manutenção dos benefícios sociais e uma cooperação estreita com os sindicatos na negociação das condições laborais12.

Em sentido contrário, Donald Trump descreve o estado da economia como «calamitoso», criticando as políticas da Administração Obama (e, por inerência, as propostas de Clinton) e destacando a perda de influência norte-americana no quadro internacional. A plataforma do Partido Republicano propõe diminuir a existência de obstáculos à atividade económica (redução da carga fiscal, extinção de restrições em matéria de proteção ambiental, diminuição de burocracia), mas também promover a revisão de certos acordos internacionais, nomeadamente a nafta (acordos bilaterais dos Estados Unidos com o Canadá e o México) e o TTP (acordo comercial entre doze países banhados pelo oceano Pacífico), muito criticados por Trump. Trata-se de um elemento em contradição com as posições tradicionais do Partido Republicano (favorável ao livre comércio), a que se junta, aliás, a intenção de Trump em instituir políticas protecionistas (punindo a deslocalização de empresas, criando novas taxas à importação), bem como adotar um discurso mais agressivo face à China (de cujos empréstimos e atividade económica os Estados Unidos estão muito dependentes)13.

 

POLÍTICA EXTERNA

Estas posições antagónicas entre os dois candidatos são também visíveis no tópico da política externa, que ocupa um lugar fundamental na campanha de 2016. Devido sobretudo à instabilidade vivida no Médio Oriente e no Norte de África, ao aumento do terrorismo na Europa e a alguns incidentes verificados em território americano (atentados de Orlando e San Bernardino, entre outros), o problema do terrorismo em particular tem sido referido nos estudos de opinião como um dos que mais preocupam os cidadãos americanos (em valores que não se registavam desde 2006)14, o que confere ainda maior atenção mediática às questões de política externa, já de si muito relevantes na discussão política presidencial.

Responsável pela política externa no primeiro mandato da Administração Obama, Hillary Clinton surge nesta matéria como uma defensora da «continuidade» entre os democratas, assente em três pilares: redução de gastos na defesa e na política externa; aposta na diplomacia e no reforço da cooperação internacional (com enfoque no eixo Ásia-Pacífico); recurso a intervenções cirúrgicas em zonas problemáticas e de grande importância estratégica para os Estados Unidos. Este plano tripartido – que tem caracterizado a política externa norte-americana desde 2009 – comporta, porém, grandes riscos, pois está assente num frágil equilíbrio entre «contenção» e «afirmação», difícil de concretizar num quadro internacional muito volátil.

Defendendo o recurso primacial ao soft power, esta abordagem de redução de efetivos e despesas tem como objetivo permitir aos Estados Unidos concentrar os seus recursos em teatros de guerra mais problemáticos e aumentar a eficácia das suas intervenções (que estariam comprometidas caso disseminassem em excesso os seus planos). Neste sentido, Clinton não exclui uma ação mais vasta na Síria e no Iraque (nomeadamente em termos militares), mas apenas em situação de último recurso (a pressão negativa da opinião pública é, a este propósito, um importante obstáculo a ter em conta). Noutras matérias importantes de política externa, como a «abertura a Cuba», a negociação do TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento) e a manutenção dos compromissos com a NATO, Clinton tem fundamentalmente defendido a continuação das políticas levadas a cabo por Obama nos últimos anos.

Donald Trump, por seu turno, promete uma verdadeira «revolução» na política externa norte-americana, orientada segundo os princípios da rejeição do multilateralismo e a restituição de um lugar hegemónico aos Estados Unidos na cena internacional. O seu discurso na Convenção Nacional Republicana continha, aliás, uma frase que serve de slogan ao mesmo: «O americanismo, e não o globalismo, será o nosso credo». Trump manifesta desprezo pelas instituições internacionais, como a ONU, criticou o acordo com o Irão sobre armas nucleares, denunciando-o como «um sinal de fraqueza dos EUA», e hostiliza países importantes dos quais os norte-americanos se aproximaram nos últimos anos (como a China ou o México). Numa entrevista recente, o candidato republicano sugeriu mesmo que os Estados Unidos, sob o seu comando, não devem apenas refrear a sua contribuição para a nato, como admitir até não apoiar países membros da organização se estes forem invadidos por outros países, tal como estipula o artigo 5.º do tratado, caso esses países não tenham feito contribuições financeiras regulares para a nato. Num momento de grande instabilidade na Europa do Leste e na Turquia, tais afirmações revestem-se de particular gravidade e, se concretizadas, poderiam ter consequências de enorme magnitude no quadro internacional.

Relativamente ao Médio Oriente, Trump promete um apoio inabalável a Israel e uma intervenção de grande monta com o objetivo de «aniquilar» o «Estado Islâmico». Até ao momento, o candidato não referiu, porém, que plano estratégico defende para restituir estabilidade ao Médio Oriente (por outras palavras, o que se seguiria a essa «destruição» do ISIS), nem de que forma essa dispendiosa intervenção seria compatível com o seu desejo de diminuir a dívida pública dos Estados Unidos. O candidato tem sido criticado por este aparente paradoxo – ambição de manter um equilíbrio orçamental, combinando maiores gastos militares com a previsível diminuição de receita fiscal – mas Trump recusou até agora discutir especificamente estas questões. Por outro lado, muitas destas medidas terão de ser negociadas com as estruturas militares (que têm grande influência na política externa norte-americana), bem como com o Congresso (em especial o Senado), cuja composição é ainda incerta, havendo todavia desde já manifestação pública de muitos candidatos contra a introdução destas políticas – problema que, na verdade, uma «Presidência Clinton» também terá de enfrentar, face à previsível manutenção do controlo republicano na Câmara dos Representantes.

 

JUSTIÇA, IMIGRAÇÃO E SAÚDE

Embora porventura num «segundo nível» de prioridade, questões como a justiça, a imigração e a saúde ocuparão também um papel relevante na campanha presidencial. O tema da justiça centra-se na vaga criada no Supremo Tribunal pela morte de Antonin Scalia, em fevereiro de 2016. Composto por nove juízes, o Supremo Tribunal é a cúpula do sistema judicial federal dos Estados Unidos, tendo poderes na análise dos pressupostos constitucionais e também da aplicação das leis em geral, uma vez que, sobretudo por motivos históricos, viu a sua jurisprudência de tal forma reforçada que se tornou um «ator político fundamental» (questões como o aborto, o casamento homossexual, o consumo de drogas leves, entre outros, são regulamentados essencialmente por via de acórdãos do Supremo Tribunal, e não por legislação ordinária).

Efetuadas pelo Presidente, com a aprovação do Senado, as nomeações para o Supremo Tribunal são vitalícias, podendo assim deixar uma marca duradoura nos Estados Unidos. Talvez por esta razão, a que acresce a própria «alternância histórica» partidária na Casa Branca, essas nomeações têm procurado manter um certo equilíbrio ideológico na composição do Tribunal, entre juízes conservadores e progressistas. A morte do juiz Scalia, um dos mais conservadores, abre todavia a porta a uma alteração substancial desse equilíbrio, uma vez que, atualmente, o Supremo Tribunal é composto por quatro progressistas (Kagan, Sotomayor, Breyer e Ginsburg), três conservadores (Thomas, Alito e Roberts) e um «moderado» (Kennedy)15.

O Senado bloqueou a decisão de Obama (que nomeou Merrick Garland, um «moderado»), por entender que deveria caber ao próximo presidente a escolha, conferindo assim ao futuro inquilino da Casa Branca enorme poder na definição das tendências do Supremo Tribunal. Importará verificar também qual a composição do Senado, após a eleição de novembro, mas não há dúvida que uma das mais importantes decisões do sucessor de Obama reside na escolha deste «9.º juiz»; a introdução de um elemento com visões progressistas (provável, se Clinton vencer) reforçaria o pendor já progressista do Supremo Tribunal, ao passo que a escolha de um juiz conservador («prometido» por Trump em caso de vitória) reequilibraria ideologicamente esse pilar fundamental da vida pública norte-americana.

Uma outra questão com enorme impacto é o problema da imigração, um dos mais discutidos nos Estados Unidos, e a propósito do qual Trump teceu algumas das suas mais polémicas declarações. O candidato defende uma postura agressiva relativamente aos cerca de 11 milhões de imigrantes que vivem no país (chegou mesmo a falar em deportação em massa) e o reforço da ação policial e de vigilância sobre imigrantes futuros. Simultaneamente, propõe criar um muro na fronteira mexicana, sugestão que oscila entre o exótico (nomeadamente quando defende que será o Governo mexicano a pagá-lo) e o inverosímil (é difícil imaginar o Congresso a autorizar tal empresa), e que estará, por conseguinte, a ser usada sobretudo como «manobra eleitoral». Também nesta categoria parecem inserir-se propostas como o reforço da vigilância sobre as comunidades muçulmanas a viver nos Estados Unidos e a restrição da entrada de novos imigrantes muçulmanos no país, medidas que levantam sérias dúvidas em termos constitucionais (já para não mencionar o seu impacto social, ou a polémica que suscitaria nos órgãos legislativos federais e estaduais).

Sem surpresas, Hillary Clinton condena esta abordagem como «divisiva» e «ilegítima», defendendo antes a progressiva integração desses imigrantes no tecido social e produtivo norte-americano, através do chamado «caminho para a cidadania». Clinton defende a aprovação do dream Act, projeto-lei que intenta conferir vistos de residência aos filhos de imigrantes ilegais que tenham frequentado instituições de ensino superior ou o serviço militar (desde que tivessem entrado no país na condição de menores de idade e não tivessem cadastro); apoia também a ordem executiva, emitida pelo Presidente Obama, que trava a deportação de imigrantes ilegais por um período de três anos (desde que tenham um filho nascido nos Estados Unidos ou autorização de residência no país).

Estas propostas, designadamente o chamado «caminho para a cidadania», são atacadas pelos republicanos por consagrarem o que entendem ser uma espécie de «amnistia», incentivando mais imigrantes a tentar a sua sorte ilegalmente. Hillary responde sublinhando a necessidade de dar resposta a um problema existente (os 11 milhões de imigrantes ilegais, que vivem à margem do sistema social, fiscal e político), sem que isso invalide políticas públicas para evitar a repetição desse fenómeno (como tal, Hillary defende igualmente um maior policiamento das fronteiras). Embora aparentemente sensatas, estas propostas são no entanto também bastante ambíguas, e nos últimos oito anos a Administração Obama revelou grande incapacidade para levar a cabo tais reformas. O plano de Trump é bizarro, mas o de Hillary parece incapaz de transpor as meras «boas intenções».

Se no campo da imigração reina a incerteza, no domínio da saúde as propostas são muito claras. Hillary Clinton apoia o «Obamacare» (um sistema de saúde centralizado e parcialmente pago com fundos públicos), defendendo a sua progressiva implantação (que teve início em 2010). Trump, pelo contrário, manifestou intenção de repelir o programa, regressando ao modelo vigente na América durante décadas, que combina a existência de seguros privados com programas federais de apoio a grupos mais vulneráveis (Medicaid – pessoas de baixos rendimentos; Medicare – pessoas com mais de 65 anos).

Confrontam-se a este respeito duas visões ideológicas muito distintas: um paradigma social-democrata (Clinton), que defende a intervenção governativa em matérias de saúde pública, canalizando fundos estatais para o pagamento de serviços básicos tendencialmente universais; e um modelo liberal (Trump), que apela aos princípios tradicionais americanos da «liberdade individual» e da iniciativa privada, reclamando quer o direito de as pessoas escolherem voluntariamente a oferta que desejarem (incluindo o direito a não terem um seguro de saúde), quer uma participação minimalista do Governo na gestão dos serviços (médicos, neste caso), deixando espaço para a atuação do «livre mercado».

No fundo, este antagonismo está presente nos vários temas abordados e na própria natureza do embate presidencial de novembro, que assinala uma disputa entre duas personalidades muito diferentes, com percursos profissionais claramente distintos e mundividências irreconciliáveis – duelo e ambivalências que traduzem na perfeição a própria complexidade dos Estados Unidos, que acolhem no seu interior uma impressionante panóplia étnica, religiosa, social, política e ideológica. Resta aguardar por 8 de novembro para conhecer qual dessas visões prevalecerá nas urnas.

 

BIBLIOGRAFIA

APPLEBAUM, Anne – «The disappearance of moderate moderates». (Consultado em 25 de julho de 2016). Disponível em: http://news.nationalpost.com/full-comment/anne-applebaum-the-disappearance-of-moderate-moderates.

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www.realclearpolitics.com.

 

Data de receção: 17 de agosto de 2016 | Data de aprovação: 14 de setembro de 2016

 

NOTAS

1 Sobre esta secção e o funcionamento das primárias, ver André, José Gomes – «Sistema político e eleitoral norte-americano». In Soromenho-Marques, Viriato – O Regresso da América. Lisboa: Esfera do Caos, 2008, pp. 213-231.

2 Cf. http://www.realclearpolitics.com/epolls/other/congressional_job_approval-903.html; http://www.msnbc.com/msnbc/nbcwsj-poll-anger-defines2016-electorate; http://www.pewresearch.org/data-trend/political-attitudes/party-identification. (Consultado em: 25 de julho de 2016).

3 APPLEBAUM, Anne – «The disappearance of moderate moderates». (Consultado em: 25 de julho de 2016). Disponível em: http://news.nationalpost.com/full-comment/anne-applebaum-the-disappearance-of-moderate-moderates.

4 Esta figura não existe no Partido Republicano, o que tornou ainda mais difícil contrariar a tendência de vitória de Donald Trump. Foram muitos os responsáveis do partido que, durante o ciclo eleitoral de 2016, lamentaram não dispor deste mecanismo para contrariar um candidato indesejado pelo establishment.

5 Cf. http://presidential-candidates.insidegov.com/compare/35-40/Bernie-Sanders-vs-Hillary-Clinton. (Consultado em: 25 de julho de 2016).

6 Tive a oportunidade de escrever sobre o funcionamento do Colégio Eleitoral (ANDRÉ, José Gomes – «Sistema político e eleitoral norte-americano», pp. 161-178).

7 Cf. www.realclearpolitics.com. (Consultado em: 19 de julho de 2016).

8 Sobre a forma como as alterações demográficas beneficiarão tendencialmente os democratas no futuro, ver JUDIS, John, e TEIXEIRA, Ruy – The Emerging Democratic Majority. Scribner, 2004.

9 Cf. http://www.people-press.org/2016/07/07/4-top-voting-issues-in2016-election/. (Consultado em: 25 de julho de 2016).

10 Cf. http://www.bea.gov/newsreleases/glance.htm. (Consultado em: 25 de julho de 2016).

11 Agregado de sondagens no Real Clear Politics. (Consultado em: 25 de julho de 2016) Disponível em: http://www.realclearpolitics.com/epolls/other/direction_of_country-902.html; Sondagens da Gallup. (Consultado em: 25 de julho de 2016). Disponível em: http://www.gallup.com/poll/110824/gallup-daily-us-economic-outlook.aspx.

12 Sobre estas matérias e secções futuras que analisam as propostas de Hillary Clinton, ver o sítio oficial da candidata (https://www.hillaryclinton.com/issues/) e a plataforma do Partido Democrata disponível em: https://www.demconvention.com/platform/) (Consultados em: 25 de julho de 2016).

13 Sobre estas matérias e secções futuras que analisam as propostas de Donald Trump, ver o sítio oficial do candidato (https://www.donaldjtrump.com/positions) e a plataforma do Partido Republicano disponível em: https://www.gop.com/platform/. (Consultados em: 25 de julho de 2016).

14 Cf. http://www.people-press.org/2016/07/07/4-top-voting-issues-in2016-election/. (Consultado em: 25 de julho de 2016).

15«Padrão ideológico» dos juízes do Supremo Tribunal. (Consultado em: 25 de julho de 2016). Disponível em: http://www.nytimes.com/interactive/2016/02/14/us/supreme-court-justice-ideology-scalia.html?_r=0.

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