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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.50 Lisboa jun. 2016

 

RECENSÃO

 

A estranha oligarquia: O magnífico mito de Angola

 

Vasco Martins 

Doutorado em Estudos Africanos e investigador no CEI – IUL. Atualmente desenvolve a sua investigação sobre cidadania e identidades sociais e políticas em Angola. A sua tese de doutoramento intitulada The Plateau of Trials: Modern Ethnicity in Angola é um estudo histórico alargado sobre as grandes mudanças políticas, sociais e económicas que afetaram os Ovimbundu desde o início do século XX até aos dias de hoje, com especial ênfase na criação de identidades sociais durante o período colonial e de guerra civil, e a sua repercussão no período de paz.

 

Robert Cooper, Magnificent and Beggar Land: Angola since the Civil War, C. Hurst & Co., 2015, 291 páginas.

Que tipo de livro escreveria Albert Camus, autor do absurdo, sobre os anos dourados de Angola? Ricardo Soares de Oliveira, autor de Oil and Politics in the Gulf of Guinea, aceitou o desafio, publicando a sua segunda monografia Magnificent and Beggar Land: Angola since the Civil War em 2015, já disponibilizada em português pela editora Tinta-da-China. Trata-se de uma obra bem organizada, onde o leitor é rapidamente informado sobre o escopo do livro, que se dedica a uma franja muito significativa do poder político e económico em Angola desde o final da guerra civil em 2002, em parte sustentado por continuidades históricas inegáveis que apontam para o período colonial.

Antes da leitura das primeiras linhas o leitor é provocado, ainda na introdução, com um título bastante revelador, «Angola começa agora». De facto, o foco do livro nos primeiros doze anos de paz, sensivelmente entre 2002 e 2012, não é circunstancial nem derivado de necessidades epistemológicas de balizamento temporal. É, pelo contrário, um esforço premeditado no sentido de salientar o período singular do pós-guerra civil em Angola em que o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), no poder desde 1975, expandiu consideravelmente a sua base de suporte, abraçando novas filiações que lhe eram desconhecidas, construindo paralelamente uma estrutura de governação aliada a formas hegemónicas de exercício do poder, sem evidência de oposição. Foca-se num período irrepetível que reflete o culminar de décadas de disputas políticas e militares em que, ao contrário da esmagadora maioria dos países africanos que registaram conflitos internos, o Governo do MPLA exibe capacidade de resolver, através de uma vitória militar muito clara, a guerra civil que degradava o país sem qualquer tipo de intervenção externa. É nesta fase que Ricardo Soares de Oliveira enceta a sua análise, registando o espectro político favorável em que o MPLA reiniciava Angola depois da guerra, assente numa sociedade desgastada, ferida e profundamente traumatizada, com uma oposição política dispersa e guilhotinada, e uma economia política extremamente porosa e maleável que adivinhava um crescimento económico raramente registado na história do continente africano.

 

A ELITE DO OURO NEGRO

A chave da emanação do poder da elite angolana reside na quantidade possante de petróleo existente no seu território, pronto a ser explorado e vendido pela força motriz que caracteriza o poder das elites do país, a empresa de petróleos Sonangol, por intermédio de rendas e negócios por vezes pouco transparentes, mas prontamente desejados por várias empresas internacionais. O autor posiciona as origens desta elite num momento histórico referente ao período colonial, nomeadamente na distinção legal entre assimilado e indígena praticada pelo Estado português. É da assimilação que surge uma identidade «crioula» distinta, afeta ao MPLA ainda antes da independência de Angola, hoje desenraizada mas culturalmente pouco diversificada, que irá preencher o vazio de poder deixado pela partida dos portugueses em 1975. É sabido que as continuidades históricas em Angola são de tal forma inegáveis que a maioria dos académicos dedicados ao estudo deste país sob as várias perspetivas das ciências sociais se veem obrigados a dedicar uma porção muito substancial do seu tempo a estas matérias. Felizmente, Ricardo Soares de Oliveira soube esgrimir os pressupostos históricos mais salientes, disponibilizando ao leitor uma riquíssima bibliografia que oportunamente o permitiu dedicar grande parte do livro a uma investigação original.

Munido de uma prosa rica e percetível sem, no entanto, nunca se afastar da natureza académica do seu inquérito, o autor desenrola a história da criação de um sistema paralelo, ainda durante o período de guerra civil, para explicar o sistema de dominação política e económica estabelecida pelo Presidente José Eduardo dos Santos. Segundo Ricardo Soares de Oliveira, o Presidente de Angola utilizou as circunstâncias criadas pela guerra civil para criar um Estado paralelo sob o seu controlo pessoal, que lhe permitia organizar forças coercivas e administrar a economia interna do país (p. 22)1. É na análise do processo de desenvolvimento da economia angolana, sobejamente dependente da exportação de petróleo, que o autor invoca a complexa ligação à China e ao muito polémico Queensway Group, através do China International Fund e da China Sonangol International, onde opera Sam Pa, personagem tão discreta quanto central (pp. 189-192). Os investimentos chineses no continente africano têm sido, nos últimos anos, foco de investigação de qualidade tanto no âmbito académico como jornalístico, sendo este livro uma pedra basilar neste esforço, especialmente porque é em Angola que muito do novo interesse económico chinês em África se adapta e afirma originalmente2.

 

MARXISMO DEFENESTRADO

É através deste tipo de financiamento externo que o Estado angolano vai definindo a sua agenda de modernização e desenvolvimento, assente na construção desenfreada de infraestruturas que, quando não luxuosas e futuristas, não se adaptam às realidades e especificidades da população angolana nem contribuem para a aceleração da diversificação da economia. O leitor é constantemente relembrado do conceito de high-modernism avançado por James C. Scott3, quando o autor nos fala da Zona Económica Especial, um campus industrial perto de Luanda, ou de modelos de aldeias agrícolas importadas de Israel (pp. 63-72).

O sucesso aparente de alguns destes projetos reside exatamente na importação de bens, pessoas e ideias. Exportando apenas petróleo e alguns diamantes, o Estado angolano importa tudo o resto, incluindo profissionais que possam preencher a falta de mão-de-obra qualificada no país e até mesmo modelos industriais e agrícolas desenhados para serem aplicados noutros países (pp. 76-77). Com olho clínico para as consequências sociais, o autor atenta para a marginalização dos pobres e do próprio mundo rural nesta nova Angola, muitas vezes escorraçados porque a sua presença é «feia» (p. 72). Esta discriminação dos que não contribuem e pouco interessam, refletindo as parcialidades geográficas e sociais do regime (p. 82), é parte integrante da expansão do mpla e da consolidação de poder no pós-guerra, fundamentalmente baseada na exclusão de segmentos significativos da população (p. 129). É uma premissa tanto antiga como perigosa e imoral, que já havia sido invocada pela oposição ao mpla como catalisador moral durante a guerra civil angolana.

A permissão para esta conduta assenta na vitória militar sobre aqueles que se opunham e na sua agenda «inclusiva», razão pela qual o mpla crê de forma visceral ser o único partido com legitimidade para inserir Angola no mundo moderno (p. 19). Neste modelo político, o controlo hegemónico não só é chave, obrigatoriamente absoluto, como por vezes autocrático. A centralização de poder na pessoa de José Eduardo dos Santos é de tal forma manifesta que, diz-nos o autor, alguns ministros do seu governo não podem viajar para fora do país sem aprovação do próprio Presidente (p. 170).

Esta é uma monografia que aborda o surgimento de novas oligarquias assentes nos dividendos económicos e políticos que retiram da exploração dos recursos naturais dos seus países, frequentemente à revelia do bem-estar mais essencial das suas populações4. Assente num trabalho de campo de vários anos e contando com um acesso vagarosamente construído até às altas instâncias do poder político e económico angolano, a pertinência desta monografia vai muito além do argumento da maldição dos recursos naturais. Reside sim na exploração, por vezes microscópica, que o autor dedica à utilização de tais recursos naturais na criação e manutenção de uma hierarquia interna e de uma teia de influências externas desenhada para perpetuar no poder uma elite culturalmente específica e profundamente ocidentalizada. Adicionalmente, e de interesse para estudantes e investigadores, o autor deixa no ar um sem-número de valiosas pistas para outros trabalhos, tornando este livro, sob o olhar académico, um mapa de temáticas de investigação para a próxima década. 

Não obstante, não deixa de ser uma fórmula bem aplicada e sucedida, especialmente no que toca à renovação da imagem de Angola e de membros da elite angolana no exterior. Os grandes investimentos em Portugal que serviram de plataforma para penetrar nos desejados mercados europeus, embora conduzidos por membros da família de José Eduardo dos Santos e pessoas a ele próximas, não deixam de se enquadrar de forma espetacular no que o autor diz ser o mundo ideal para o oligarca (p. 169). O próprio modo de vida dos oligarcas angolanos, a aspiração, a reputação internacional, a competição pelo luxo e a socialização jet-set, são temas seminalmente bem capturados pelo autor, que nos lembra, ao longo do livro, o efeito que a centralização deste poder económico tem para o resto da população angolana. De facto, se algo poderia completar este estudo seria uma abordagem mais profunda dos que, representando a grande maioria da população angolana, se situam nas franjas deste desenvolvimento frenético. Porém, a magnitude deste tema é, por si só, suficiente para um livro com vários volumes, e, como indicado, fora do objetivo do autor.

 

NOTAS

1 Ver também MESSIANT, Christine – «La Fondation Eduardo dos Santos: à propôs de l’investissement de la société civile par le pouvoir politique». In Politique Africaine. Vol. 73, 1999, pp. 82-101.

2 Ver também POWER, Marcus, e ALVES, Ana Cristina – China and Angola: A Marriage of Convenience?. Nairobi: Pambazuka Press, 2012.

3 SCOTT, James C. – Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. New Haven: Yale University Press, 1998.

4 Ver também BURGIS, Tom – The Looting Machine. Londres: Harper Collins, 2015.

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