SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número50A relação entre executivo e legislativo na formulação de política externa no BrasilA estranha oligarquia: O magnífico mito de Angola índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.50 Lisboa jun. 2016

 

RECENSÃO

 

Portugal e a guerra nas ondas hertzianas1

 

David Castaño

Investigador no IPRI–NOVA onde desenvolve um projeto de pós-doutoramento sobre o processo de consolidação da democracia portuguesa (1976-1982). Doutor em História Contemporânea. Tem-se dedicado ao estudo da história contemporânea portuguesa e da história das relações internacionais, centrando-se no período do Estado Novo, da transição e da consolidação democrática.

 

Nelson Costa Ribeiro, Salazar e a BBC na II Guerra Mundial: Informação e Propaganda, Coimbra, Edições Almedina, 2014, 300 páginas.

 

Este livro de Nelson Costa Ribeiro, professor e investigador que se tem dedicado aos temas das ciências da comunicação e cultura, tem como grande mais-valia o facto de nos oferecer uma visão profunda e detalhada sobre o papel do primeiro meio electrónico de comunicação social em Portugal nos seus alvores. Trata-se de um tema ainda pouco analisado pela produção historiográfica que, como salienta o autor e deve ser reconhecido, tem tendência para se debruçar sobre os meios de comunicação, não como um fim em si mesmo, mas como um mero manancial de fontes de informação que alimentam e alicerçam outros estudos. Centrando-se nas emissões da Secção Portuguesa da bbc, o livro procura analisar as complexas ligações entre informação e propaganda num contexto histórico particular, a Segunda Guerra Mundial, enquadrando-as no também complexo quadro das relações bilaterais luso-britânicas, que aqui ultrapassam a tradicional dimensão diplomática e se alarga a um campo mais vasto, que abrange a opinião pública, conceito que ao contrário do de propaganda não merece grande atenção de Nelson Ribeiro, mas que subjaz em todo o livro e que por isso deveria ser alvo de alguma reflexão.

Partindo de seis perguntas (a BBC foi utilizada como instrumento de propaganda? Como lidou a BBC com um regime autoritário aliado? Foi o Serviço Português utilizado como instrumento de pressão sobre o Governo de Lisboa? Como lidou Salazar com as suas emissões? Procurou interferir na linha editorial? Se sim, foi bem-sucedido?), o livro estrutura-se em cinco partes: a primeira dedicada aos conceitos de propaganda e persuasão, e à rádio como um novo meio de propaganda; a segunda sobre o Estado Novo, Salazar, e a centralidade da propaganda na afirmação e manutenção do regime que tinha na polícia política e na censura duas importantes ferramentas; a terceira centrada no contexto radiofónico nacional nas décadas de 1930 e 1940; a quarta consagrada à Secção Portuguesa da bbc; e a quinta sobre a interferência do Estado Novo na «Voz de Londres». Todas elas se erguem sobre uma ampla pesquisa documental nacional e estrangeira, entre as quais se destaca a realizada no BBC Written Archives Center, que fornece uma nova perspectiva a esta investigação que também se socorre doutros fundos utilizados com mais frequência pelos historiadores, nomeadamente do Arquivo Oliveira Salazar, do arquivo do Ministério do Interior, do arquivo do Secretariado Nacional de Informação e do arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a nível nacional, e dos National Archives britânicos (Cabinet Papers Foreign Office e Ministry of Information). Apesar da referência feita na introdução ao arquivo da PVDE/PIDE como fonte documental (p. 15), este não é mencionado nas fontes e bibliografia indicadas no final do livro, não sendo citado ao longo da obra nenhum documento da polícia política do Estado Novo, situação que justificava uma explicação, pois o leitor fica sem perceber se não se chegou a realizar a pesquisa nesse arquivo ou se não se encontrou documentação relevante relativa às emissões da bbc, ao impacto das mesmas nos meios oposicionistas, ou mesmo sobre os colaboradores da secção portuguesa. A determinada altura (p. 161), refere-se a apreensão, pela pvde, de cartas que continham referências à vasta penetração da BBC em Portugal, mas não é indicada a fonte.

Apontadas estas lacunas, devemos sublinhar que o livro nos oferece uma pormenorizada descrição do panorama radiofónico nacional antes e durante o conflito, descrevendo a sua evolução e tendo em consideração o contexto internacional e os diferentes modelos adoptados nos Estados Unidos e nalguns países europeus. O conservadorismo do presidente do conselho terá contribuído para que, ao contrário do registado noutros regimes autoritários, em Portugal a rádio não tivesse desempenhado um papel central na estratégia de propaganda de um regime que, em vez de grandes massas empolgadas, as preferia ver empenhadas no seu labor diário. A guerra era um fenómeno distante de onde não deveriam chegar mais do que alguns ecos, devidamente moldados por uma censura actuante, empenhada em garantir uma neutralidade maleável, capaz de se adaptar às várias flutuações de um confronto que se desejava manter afastado mas do qual se procuravam extrair dividendos políticos subordinados a um grande objectivo: a sobrevivência do regime no pós-guerra.

 

VENCER A GUERRA / SOBREVIVER AO SEU FIM

Esta é uma das chaves de leitura deste livro. É ela que explica as diferentes fases porque passam as relações entre Portugal e os países beligerantes, evolução que, como nota Nelson Ribeiro, se espelha na postura mais ou menos benévola das autoridades portuguesas relativamente às emissões da BBC, à sua escuta pelas populações e aos seus conteúdos, sendo de sublinhar que além das alterações explicadas pelo contexto externo e pela evolução nos campos de batalha, se verificam também posicionamentos de maior ou menor abertura consoante a região do País, contrariando uma visão monolítica de um poder centralizado e totalitário que se exercia a partir de Lisboa e chegava uniformemente a todo o território nacional. Além de revelar que a lei que proibia a escuta em público não era aplicada com o mesmo zelo nas grandes cidades e no resto do País (p. 173), Nelson Ribeiro aponta o caso particular do distrito de Faro onde a escuta colectiva nas casas privadas foi interdita e todos os aparelhos de rádio de estabelecimentos públicos, instituições e associações foram selados pelas autoridades (p. 175).

A outra chave tem a ver com o grande objectivo britânico: vencer a guerra. Ao analisarmos a criação e implementação da Secção Portuguesa da bbc, não nos podemos esquecer do fundamental: o que estava em causa não era uma política de cooperação cultural entre dois velhos aliados, mas sim de uma resposta, posta em prática não apenas em Portugal mas em vários países, à poderosa ofensiva propagandística implementada pelos países do Eixo. É certo, como este livro bem demonstra, que Londres adopta uma postura distinta de Berlim neste domínio, evitando aplicar um conceito que adquirira uma conotação negativa após a Primeira Guerra Mundial, e que este posicionamento, que procurava afastar-se do tipo de propaganda posta em prática pela Alemanha, iria revelar-se particularmente eficaz. Num país onde a informação nacional e internacional era alvo de um apertado controlo por parte da censura, a avidez por notícias em primeira mão, divulgadas e apreendidas como isentas e objectivas, e que por isso não eram consideradas propaganda, maximizou a estratégia do Ministério da Informação britânico que encontrou em Portugal um terreno particularmente fértil, ao contrário da estratégia alemã, que facilmente percepcionada como propaganda (p. 119) revelou fraca capacidade proselitista. Tratava-se, contudo, de dois tipos de propaganda (p. 29): a «branca», utilizada pelos britânicos; e a «preta» ou «cinzenta» aplicada pelos alemães, que tinham em ambos os casos como objectivo a vitória no conflito.

Nesse sentido, as diferentes fases porque passam as relações entre as autoridades portuguesas e a bbc/Governo britânico identificadas por Nelson Ribeiro subordinam-se a esse grande propósito. A linha editorial da Voz de Londres procurou garantir a manutenção das boas relações com o Estado Novo e a adulação ao regime e ao seu chefe era um ingrediente que não deveria ser esquecido nas emissões (p. 258). Tal não invalidou que pontualmente estes elogios estivessem ausentes da antena e que a mesma tenha passado a abordar assuntos sensíveis, como o da questão do embargo às exportações de volfrâmio, uma vez garantida a utilização das bases açorianas (p. 271).

A busca deste equilíbrio levou os britânicos a procurar agradar, ora à oposição (p. 253), ora aos adeptos e elementos do regime (p. 237-238), num perigoso jogo que nunca chegou a colocar verdadeiramente em causa as relações diplomáticas entre os dois países nem afectou, apesar de alguns sobressaltos, como o motivado pelo fim do programa de Fernando Pessa «Calendário dos Ditadores» que gozava de enorme sucesso, o impacto das emissões no panorama radiofónico nacional. Refira-se, no entanto, que a justificação apontada pelo autor para o fim deste programa (a bbc pretenderia reforçar a sua influência entre as elites e este programa era criticado pelos estratos mais elevados da sociedade portuguesa (pp. 163, 188 e 250), não parece bem fundamentada, deixando ao leitor a impressão de que não terão sido meras estratégias de captação e de fidelização de públicos-alvo a justificar essa medida, já que uma das grandes mais-valias da rádio era precisamente a de chegar, através de uma programação diferenciada, a diferentes tipos de ouvintes, não sendo, em princípio, necessário abdicar de um em benefício de outro.

Semelhante maleabilidade encontra-se no posicionamento do regime português perante as emissões da bbc em língua portuguesa. Se no caso das únicas três rádios nacionais autorizadas a transmitir boletins informativos era fácil exercer um controlo sobre os seus conteúdos e sobre as notícias, recorrendo-se, num caso único nos regimes autoritários da época, a censores privativos que tinham de ser pagos pelas próprias estações emissoras (p. 76), no caso da bbc esse controlo era mais precário mas não inexistente.

Além das boas relações que o embaixador português em Londres procurou manter com altos responsáveis pelos serviços de radiofusão britânicos, o Governo de Lisboa aceitou prolongar o contrato de três professores colocados em Londres para que desse modo pudessem colaborar com a bbc como tradutores e autorizou que um funcionário da embaixada também colaborasse na Secção Portuguesa. Esta era uma via que permitia não só acompanhar o dia-a-dia da secção como condicionar o seu funcionamento em caso de necessidade (p. 304). Este condicionamento foi notório com o afastamento de Armando Cortesão em Dezembro de 1941 (p. 327) e terá sido também um elemento importante na censura exercida sobre os programas de outro colaborador português, António Pedro da Costa (p. 201), o que leva o autor a chamar a atenção para a relação que Salazar conseguiu estabelecer entre «liberdade concedida à propaganda britânica em Lisboa e o nível de satisfação com o conteúdo das emissões da Voz de Londres» (p. 336) e a concluir que «a bbc viu-se forçada a ceder às pressões tanto do Governo britânico como do Governo português via Foreign Office» (p. 338).

Nesta frase se resumem duas das respostas às seis perguntas enunciadas no início do livro. As outras também são respondidas ao longo da obra, mas todas elas, perguntas e respostas, deveriam ser recuperadas na conclusão do livro que nos deixa uma nova pergunta cuja resposta só poderá ser dada através de um estudo comparativo: existiam de facto diferenças de conteúdos das emissões da bbc para os vários destinos como referiu um ouvinte português (p. 207)? Apenas deste modo se poderá compreender toda a extensão e complexidade da propaganda «branca» britânica que em Portugal, como demonstra esta investigação, foi bem-sucedida. 

 

NOTAS

1 A pedido do autor o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons