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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.50 Lisboa jun. 2016

 

25 ANOS DOS ACORDOS DE BICESSE

 

Bicesse: Uma visão estratégica inteligente1

 

Paulo Vizeu Pinheiro

Licenciado em Direito pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa; aprovado no concurso de admissão aos lugares de adido de embaixada, aberto em 16 de dezembro de 1987; adido de embaixada, na Secretaria de Estado, em 16 de fevereiro de 1989; adjunto do gabinete do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, na mesma data; na missão temporária de Portugal junto das estruturas do processo de paz em Angola, em junho de 1991; secretário de embaixada, em 7 de junho de 1991; na Secretaria de Estado, em 31 de março de 1993; adjunto do gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1 de abril do mesmo ano; na Embaixada em Washington, em 16 de setembro de 1993; primeiro-secretário de embaixada, em 2 de março de 1998; na Embaixada de Moscovo, em 14 de outubro de 1998; conselheiro de embaixada, em 18 de abril de 2002; adjunto diplomático do gabinete do primeiro-ministro, em 1 de agosto de 2002; diretor-geral adjunto do Serviço de Informações Estratégicas, de Defesa e Militares, em 26 de novembro de 2002; diretor-geral interino do Serviço de Informações Estratégicas e de Defesa, em 1 de março de 2005; representante permanente adjunto na Delegação de Portugal junto da OCDE, em 1 de setembro de 2005; diretor-geral de Política de Defesa Nacional, em 23 de janeiro de 2006; assessor diplomático do presidente da Comissão Europeia, em 6 de maio de 2010; assessor diplomático do primeiro-ministro, em 11 de julho de 2011; representante permanente de Portugal junto da OCDE, em 18 de fevereiro de 2013; presidente do Comité das Relações Externas da OCDE, em 21 de novembro de 2014.

 

Ao entrar há vinte e cinco anos no gabinete do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, ao Largo do Rilvas, para a minha primeira experiência profissional como diplomata, estava longe de pensar que essa primeira experiência fosse também a mais empolgante e dramaticamente relevante de toda a minha carreira. E muito longe de imaginar que iria ser um dos colaboradores na negociação dos Acordos de Paz do Estoril (vulgo Bicesse). Ou ainda de poder testemunhar não só a sua assinatura em maio de 1991, mas também a sua concretização no terreno na qualidade de observador e delegado à Comissão Política, sob a chefia do embaixador António Monteiro.

Olhemos para o dia 31 de maio de 1991, para a cerimónia de assinatura. Para a fotografia do momento da assinatura. Ela diz muito sobre a natureza do processo. O local: o Palácio das Necessidades, sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros (mne) (sendo Durão Barroso o mediador, embora secretário de Estado e não ainda ministro). Os signatários: o Presidente da República Popular de Angola, engenheiro José Eduardo dos Santos, e o líder da UNITA, Dr. Jonas Malheiro Savimbi. Ou seja, as partes executantes do Acordo. No centro da fotografia, o primeiro-ministro Cavaco Silva, que seguiu a par e passo o processo e endossou a orientação «macro». Na assistência, antes de mais o secretário-geral da ONU, Javier Perez de Cuellar (a pouco mais de seis meses de passar o testemunho ao egípcio Boutros-Ghali), ou seja, as Nações Unidas enquanto primeiro observador político e militar, sobretudo no enquadramento do cessar-fogo e acantonamento e desmobilização; os Estados Unidos e a União Soviética, representados a nível político das relações externas e enquanto observadores políticos; a França e o Reino Unido enquanto futuros assistentes à formação das Forças Armadas unificadas, e organizações internacionais como a Cruz Vermelha Internacional, e até a própria Igreja Católica. Mas atente-se: a paz em Angola competiu desde a primeira hora às partes angolanas, com assistência e enquadramento internacionais é certo, mas estas sem funções supletivas, injuntivas ou de sobreposição às partes. Portugal passaria doravante de mediador a observador, constituindo-se como o assistente de referência na formação das novas Forças Armadas conjuntas (as FAA).

 

COMO FOI POSSÍVEL CHEGAR ATÉ BICESSE?

Antes de Bicesse houve Évora, Oeiras, Pedrouços, Sintra, Lisboa, todas rondas negociais importantes sob mediação portuguesa conduzidas por Durão Barroso e sua equipa. 
A de Évora apanhou de surpresa as duas superpotências (incluindo naturalmente a CIA e o KGB) e o resto do mundo (incluindo os incontornáveis europeus em África, como a França e o Reino Unido). Évora foi o segredo diplomático melhor guardado de que tenho conhecimento.

E antes de Bicesse tiveram também lugar várias goradas tentativas negociais regionais, maxime o acordo de Gbadolite (rubricado a 22 de junho de 1989, perante dezoito estadistas africanos), um acordo mediado pelo líder zairense Mobutu, com largo apoio regional africano, mas que afinal tinha duas versões consoante o destinatário.

Naturalmente que o processo de Bicesse começa antes ainda da grande mentira de Gbadolite. Começa em 87-88 com os primeiros sinais de degelo americano-soviético, com Bush pai e Gorbatchov, com uma nova postura de maior abertura da parte de Washington mas também de Cuba, de Luanda e Pretória, com apoio político português, no processo de retirada de tropas cubanas de Angola e autodeterminação da Namíbia, com a ONU a lançar em finais de 1988 a UNAVEM (United Nations Angola Verification Mission) para Angola (que depois deu origem à UNAVEM II do processo de Bicesse) e à UNTAG (United Nations Transition Assistance Group) para apoiar a transição para a independência da Namíbia. Duas faces de uma mesma moeda, uma troca entre «desinternacionalização» militar de Angola e a independência da Namíbia. Por vezes penso que esta posição de Luanda, viabilizando a independência da Namíbia (mas também abrindo caminho para o reforço internacional da luta antiapartheid) não foi, não é, historicamente e politicamente valorizada.

Em África, o Muro de Berlim começou a desmoronar-se um ano antes de novembro de 1989 e Portugal teve a capacidade de ler estrategicamente a evolução internacional nos diversos tabuleiros geográficos (não excluindo naturalmente a Europa).

Quando entrei para o gabinete de Durão Barroso fui incumbido por este de discutir, analisar e integrar informações diplomáticas, económicas, militares e de segurança, trabalhando de forma transversal com outros departamentos do Estado, mas com particular enfoque em algumas regiões geográficas, que incluíam à cabeça África (Angola, Pretória, Maputo, Kinshasa, Abidjan) mas também os Estados Unidos, a União Soviética, Cuba, China e a Europa mais envolvida em África (Londres, Paris, Bruxelas, Roma). Pude por isso acompanhar os diferentes sinais de abertura, confesso que por vezes de difícil análise política, e identificar possíveis motivações geopolíticas (entre os dois blocos mundiais e jogadores europeus e africanos relevantes) e interesses assentes em evoluções do pensamento político interno. E acompanhar naturalmente a situação e pensamento militares (com base nos desenvolvimentos no terreno e elaboração de cenários de possível evolução). Foi o meu primeiro contacto com o que se designa de «Inteligência». Portugal é um país pequeno à escala global, mas sempre teve uma visão paraglobal, um pensamento estruturado e coerente multicontinental, podendo agir de forma muito eficiente e eficaz. E havia uma liderança que «pensava e sentia estratégia». E uma equipa capaz de refletir e agir num curto espaço de tempo, de forma inclusiva (sem esquecer protagonistas principais e atores secundários mas indispensáveis).

A nível interno, Portugal estabeleceu condições únicas para ser um honest broker, ao estabelecer sólidas e muito próximas relações de cooperação de Estado a Estado, tanto com o Presidente, Governo e Parlamento angolanos liderados pelo MPLA, mas também ao manter naturais ou adquiridas afeições e familiaridades políticas no estrito campo partidário. A separação do Estado dos partidos foi um aspeto essencial da estratégia de Durão Barroso. Portugal na área externa só tinha política de Estado. Mas no campo da ação política, Lisboa era metropolitana, cosmopolita, plural, em que não havia delito de opinião e onde a liberdade de imprensa era religiosamente respeitada. A UNITA tinha em Lisboa um dos seus principais palcos de intervenção política, contando com simpatias políticas, partidárias e de importantes fazedores de opinião, algumas situadas até ao mais alto nível. E era de Lisboa que Savimbi falava para o interior da «Angola além Jamba».

Numa palavra, deve-se a Durão Barroso, com o apoio de Cavaco Silva, uma leitura estratégica da evolução mundial adivinhando muito antes de qualquer outro as suas possíveis consequências para a paz em Angola (e Moçambique), a análise dos sinais políticos e militares das partes beligerantes (por outras palavras, uma leitura integradora dos instrumentos políticos, diplomáticos e de inteligência) a criação de condições internas de legitimidade (relações de cooperação de Estado a Estado) e de confiança (liberdade dos escritórios de representação partidária da UNITA) que acabaram por viabilizar, fracassada a solução africana protagonizada por Mobutu, o processo de paz de Bicesse, sobre o qual assentou Lusaka.

É certamente «caso de estudo» a forma como se chegou a Évora, e como Lisboa integrou progressivamente todos os atores estratégicos e táticos, numa linguagem cinematográfica, os atores principais e secundários, estabelecendo os principais eixos dos Acordos de Bicesse em torno de um princípio tão simples quanto complexo que se poderia resumir na fórmula «paz em troca da democracia» visando um Estado de direito.

Às vezes interrogo-me como foi possível vencer manobras, intrigas, sede de protagonismos, manipulações, pressões políticas e militares, com tantos conselheiros externos dos beligerantes e tantas câmaras de ressonância em Lisboa. A começar pelos sul-africanos do regime segregacionista de Botha, que certamente viram na paz de Bicesse o risco do total isolamento internacional do regime do apartheid. E tinham razão. Após a Namíbia e o começo do processo de paz de Roma relativo a Moçambique (construído em larga medida sobre a oportunidade e alicerces do acordo de paz de Angola, e neste largamente inspirado), Bicesse representou não só o fim do internacionalismo do regime do apartheid mas também o início do debate interno sobre o futuro do sistema político sul-africano, que iria levar à libertação de Mandela e à realização de eleições livres em 1994. Nunca esquecerei a violência verbal de Pik Botha em algumas reuniões com Durão Barroso, e a firmeza absoluta por este demonstrada. Assim como não esquecerei a clarividência de alguns líderes norte-americanos, de Chester Crocker a Herman Cohen. Neste aspeto, a África do Sul, democrática e livre, deve muito a Angola e Portugal.

Mas há naturalmente dois nomes que importa destacar no caminho até Bicesse – o do Presidente José Eduardo dos Santos, porventura o que arriscou mais, pois era aquele que mais teria a perder numa eventual derrota eleitoral tendo presente a maioria Umbuntu; e o de Jonas Malheiro Savimbi, que apostou na paz acreditando que as eleições o iriam favorecer, o que não veio a suceder. Sem eles, os decisores últimos, os que apuseram a sua assinatura no acordo de Bicesse, este não se teria tornado realidade.

 

NOTAS

1 O texto aqui apresentado é um testemunho pessoal, e vincula apenas o seu autor.

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