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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.50 Lisboa jun. 2016

 

POPULISMO E MIGRAÇÕES

 

Era uma vez o populismo…

Once upon a time the Populism...

 

José Pedro Zúquete

Trabalha no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Depois de concluir o seu doutoramento em Política pela universidade inglesa de Bath, Zúquete foi investigador de pós-doutoramento em Cambridge, no Centro de Estudos Europeus da Universidade de Harvard. A sua área de pesquisa tem incidido sobre a política comparada, e nos últimos anos em especial sobre nacionalismos, radicalismos políticos e terrorismo. Zúquete pode ser contactado através do e-mail: jpzuquete@gmail.com

 

RESUMO

O populismo está na ordem do dia. Este artigo dá uma visão geral das discussões conceptuais do fenómeno, e as suas consequências para a teoria e prática democráticas. O artigo conclui com uma discussão sobre a direita radical contemporânea, o seu caráter populista, e o impacto do tema da imigração para a sua ascensão na Europa.

Palavras-chavePopulismo, democracia, Europa, imigração.

 

ABSTRACT

Populism is on the agenda. This article gives an overview of the conceptual discussions about the phenomenon as well as its consequences to democratic theory and practice. The article concludes with a discussion of the contemporary radical right, its populist nature, and the impact of the theme of anti-immigration on its rise in Europe.

Keywords: Populism, democracy, Europe, immigration

 

Qualquer criança sabe que a Cinderela deixou cair o seu elegante sapatinho, mais tarde recuperado pelo príncipe dos seus sonhos. Foi nos anos 1960 que o filósofo britânico Isaiah Berlin adaptou este clássico conto de fadas às preocupações mais «adultas» com o populismo, assinalando mesmo um «complexo de Cinderela» no seu estudo. Na versão berliniana, também existe um sapatinho (o populismo) mas o final, ao contrário da fábula original, continuava em aberto, pois o príncipe vagueava à procura do pezinho certo. Moral da história: o populismo simplesmente «não cabia», persistia em ser um termo escorregadio e resistente a definições claras1. No mundo académico isso significava que a busca pelo pezinho redentor continuaria pelo tempo fora.

E continua na segunda década do século xxi. Embora o «final feliz» para o conto de Berlin nunca venha a concretizar-se (isso seria admitir como plausível a implausibilidade do unanimismo académico), isso não significa que a delimitação concetual do populismo não tenha progredido, impulsionada por um número cada vez maior de estudos sobre o fenómeno. E de tal modo avançou que a (ainda) frequente referência ao caráter intrinsecamente vago do populismo se faça mais por conforto e hábito mental do que como reflexo analítico do estado atual da literatura. Em termos de definição a principal divisão que persiste centra-se na teorização do populismo como estratégia e mobilização por parte das elites, como forma de chegar ao poder ou cimentá-lo, e o seu enquadramento como ideário, em termos de um discurso político que encerra uma visão própria da sociedade. Esta diferença é importante na medida em que enquanto a primeira valoriza exponencialmente a liderança (personalista e paternalista) e o populismo aparece fundamentalmente como um meio para obter os fins desejados, a segunda implica uma visão integrada do fenómeno, onde a sua emergência depende fundamentalmente tanto da oferta, dos atores e agentes populistas, como da procura, do eleitorado e da população.

Entre estas duas tendências teóricas (porque de tendências se trata, e não de esquemas rígidos), não será exagero afirmar uma certa tendência, sobretudo desde a passagem para o século xxi, para a categorização do populismo como uma ideologia. Mas uma ideologia estreita ou parcial. Tornou-se até comum nos últimos anos, sobretudo sob a iniciativa do «populitólogo» Cas Mudde, recuperar a expressão «ideologia levemente centrada», inicialmente elaborada num contexto diferente pelo politólogo Michael Freeden, para refletir esse caráter minimalista da ideologia populista2. Em que consiste então o mínimo populista? Traduz-se na concordância absoluta entre a política e a soberania popular e na oposição vertical da sociedade entre dois grupos homogéneos, fundamentalmente antagónicos, e julgados moralmente de maneira radicalmente oposta: o povo, autêntico e negligenciado, e a elite, nefanda e usurpadora. Esta incompatibilidade é ancorada num registo bem versus mal, e é prática corrente nos estudos sobre populismo o recurso à palavra «maniqueísmo» – derivada da religião persa antiga que dividia o mundo em princípios diametralmente conflituosos de luz e escuridão – para descrever a centralidade do tal dualismo na visão de mundo populista. Esta abordagem discursiva do conceito tem a vantagem de tornar compreensível a maleabilidade do populismo, ou seja, a sua não exclusividade ideológica; devido à ausência de elementos programáticos estáveis e arreigados, típicos de ideologias mais densas e completas – afinal de contas, não existe nenhum «livro vermelho» do populismo nem nenhuma espécie de «fundador» icónico – a forma mentis populista pode incorporar-se quer em movimentos de direita como de esquerda, e moldar-se a diferentes propostas económicas e projetos de sociedade. Isso significa que como categoria de análise, o populismo pode mais facilmente «viajar», porque, como salienta o comparativista chileno Cristóbal Rovira Kaltwasser, a dedução do núcleo mínimo do populismo serve como referencial para definir, ou não, como populistas, outros líderes, movimentos e partidos, ao mesmo tempo que permite separar o populismo de características que, em determinadas fases e contextos, podem estar-lhe associadas, mas que de facto não lhe pertencem, sejam elas agendas protecionistas, liberais, anticapitalistas ou, por exemplo, anti-imigracionistas3.

Uma relação de antagonismo percorre toda e qualquer mobilização populista. A centralidade desta lógica, dissecada por Ernesto Laclau nos seus textos – onde o populismo aparece essencialmente como uma arma de combate de um povo vagamente definido contra as elites no poder –, alicerça-se, mais do que apenas em ideias ou programas, também num substrato cultural. Esta dimensão, como explica Pierre Ostiguy, é crucial, porque o populismo constitui a ativação política da cultura popular, um apelo para os que estão «em baixo» contra os que estão «em cima». Este olhar em profundidade para o fenómeno populista, dá primazia ao eixo que divide a sociedade entre alto e baixo (que tem a ver com maneiras de ser e agir na política, e formas de relacionamento com o povo), e que contém duas dimensões, uma sociocultural e outra político-cultural. Na primeira componente sociocultural, observa o investigador canadiano, os que estão no «alto» apresentam um comportamento correto, adequado, de boas maneiras e com um discurso racionalista embora às vezes de jargão e ininteligível, enquanto os políticos em «baixo» são mais expressivos, nas palavras e gestos, desinibidos, e propensos a usar calão e linguagem popular. Fomentam a intimidade e não dão um ar de distância. Ao mesmo tempo, evidenciam nativismo cultural, e uma ligação direta ao país «profundo», e com os «daqui», ao contrário do cosmopolitismo dos que estão no «alto». Relativamente à segunda dimensão político-cultural, no «alto» favorecem-se decisões políticas mediadas por instituições, e os apelos políticos enfatizam modelos de autoridade formais, legalistas e impessoais. Já no polo «baixo» os apelos tendem a realçar um modelo de liderança forte, personalista, e até carismática. Nesta concetualização, o populismo, como «expressão de uma “gramática” plebeia-nativa, não apenas esta à vontade com o “baixo”, mas, de uma maneira antagonista, alardeia-o – mesmo que não seja “apropriado” ou “politicamente correto”»4. O populismo aparece assim definido como uma práxis cultural, de articulação de identidades socioculturais específicas, e de interação de identidades sociais e políticas. No fundo, como um modo diferente de apelar à cidadania nas democracias contemporâneas. Um apelo perigoso na visão antipopulista.

De facto, se os estudos sobre o populismo abundam, o antipopulismo permanece relativamente na sombra. Veiculado por partidos e políticos convencionais, tradicionais, e largamente da esfera do poder, assim como por largos setores da comunicação social de referência, o antipopulismo caracteriza-se pela ligação umbilical à institucionalidade, à mediação, e aos usos e rituais estabelecidos da política. O caráter transgressivo dos atores e movimentos populistas é sentido como uma ameaça à ordem natural das coisas. Mesmo quando participam no jogo eleitoral os populismos de todas as índoles são vistos como demopatas, que usam a democracia para conseguir subvertê-la e, finalmente, destruí-la. Também no mundo académico o antipopulismo propagou-se. Mas de uma forma geral, e relativamente à relação entre populismo e democracia, a inclinação é para descrevê-la em termos de ambivalência, no sentido de que o populismo pode ser tanto uma ameaça como um corretivo à democracia. Proclamar a antidemocraticidade dos populismos – que fazem da soberania popular, e do «governo do povo», a sua razão de ser, e o motivo da sua contestação política – deve ser visto como excessivo. A questão de fundo tem a ver com o tipo de democracia defendida. Para os populismos, a democracia representativa é espúria, sinónimo de malevolência e eles fazem muitas vezes a defesa de uma «nova» e «autêntica» democracia, muitas vezes imaginada como direta, e sem a intervenção de elites que a subverteram e corromperam para seu próprio benefício. O objetivo é cumprir a promessa democrática (e inatingível?) de «poder para todo o povo», assemelhando-se a comunidade «populista» mais a uma irmandade do que a um aglomerado contratual assente na soberania individual. Neste caso, se o que caracteriza um discurso liberal-democrático é a proteção da autonomia do indivíduo em relação ao grupo, quando os populistas assumem o poder, a experiência de transformação da democracia representativa, procedimental, em democracia substantiva pode, potencialmente, resvalar para práticas autoritárias5. Ao mesmo tempo, e em nome da tal ambivalência, os populismos podem também ter um efeito regenerador da democracia, ao incorporarem pessoas que até então não se tinham identificado, ou sentiam-se à parte, da política, e também ao darem vazão a demandas que até então não tinham sido atendidas pelos partidos tradicionais, contribuindo assim para aumentar a «responsividade» do sistema político no seu todo. Dessa forma, o ímpeto populista pode ajudar a pôr em concordância os temas que as pessoas veem como prioritários, e as políticas às quais a classe política dá prioridade6.

A evocação de uma crise é central na comunicação populista. Existe sempre uma crise. A nível político, ela é sobretudo uma crise de representação, de sentimentos de desamparo e derrelicção popular, enfim de confiança das pessoas no sistema que as governa, e de descrença generalizada – tudo isto serve de combustível na emergência do populismo. A ascensão de movimentos populistas de direita e de esquerda, na Europa e na América do Sul nas últimas décadas, para lá dos fatores conjunturais e contextuais, está também ligada à desconfiança relativamente ao desempenho dos políticos, dos partidos e das instituições da democracia representativa. Nesse sentido, a descrição do populismo como «o grito de dor da democracia representativa» captura bem esse mal-estar democrático. Para John P. McCormick, o populismo é assim «a ocorrência inevitável em esferas públicas que aderem a princípios democráticos, mas onde, de facto, o povo não governa»7. Nestes tempos de secessio plebis – de desmobilização popular relativamente a formas tradicionais de fazer política mas ao mesmo tempo de novas mobilizações em torno de outras formas de fazer política – predomina o desencanto relativamente à «face pragmática» da democracia (burocrática, dedicada às rotinas da política e à gestão do dia a dia) e a atração pela sua «face redentora» que contém a promessa da renovação total do sistema através da ação fulminante do povo soberano8.

Até numa perspetiva de senso comum, parece claro que quanto mais a democracia representativa, na prática, se afastar do ideal de soberania popular, quanto mais for vista como estando sob controlo de oligarquias (uma ideia chave dos populismos de esquerda e de direita), maior será a tendência para que a exploração de caminhos alternativos seja vista como desejada. É neste panorama que muitos veem no populismo um «sinal» para que a democracia faça jus ao seu nome, porque «o sinal populista é claro. É um aviso para que os partidos políticos e os governos revejam as suas abordagens de governação e representação». Até porque inúmeros estudos mostram que o descontentamento popular é dirigido ao processo democrático (opaco, pouco transparente, e nas mãos de uma minoria), e o que se reivindica é sobretudo maior participação popular nesse processo. Ou seja, recorrer à imaginação e criatividade, e encontrar, ou recuperar, novas formas de participação, e de descentralização do poder, como, por exemplo, a adoção de novos mecanismos de decisão. Dessa forma, o que também está em causa – e é essa uma das forças motrizes do populismo atual – é a necessidade de adaptação das instituições da democracia, verticais e oitocentistas, à horizontalidade do século XXI, e a uma sociedade tecnologicamente interativa e hiperconectada9. Para completar, este afastamento popular não pode, nem deve, ser desligado destes novos (?) tempos de enfraquecimento das soberanias nacionais, reféns tantas vezes de um poder difuso e de além-fronteiras, seja ele político ou financeiro. Hoje em dia, se se quisesse «tomar de assalto» o poder, qual o «palácio» a conquistar? Esta perceção de que o «verdadeiro» poder deslocou-se, multiplicou-se e transnacionalizou-se, e de que a política doméstica verdadeiramente não conta para as grandes decisões e desígnios, fortalece em potência dinâmicas antissistémicas, e a procura de outros espaços, outros caminhos, de recuperação do poder popular perdido. Também aí – nessa convicção de que «o poder vai nu» – a oferta populista aparece como redentora.

Diferentes tempos históricos caracterizam-se por diferentes populismos. É relativamente comum falar-se em «ondas populistas» na era contemporânea. Desde o «populismo agrário» dos finais do século xix, na Rússia e nos Estados Unidos, passando pelo «populismo socioeconómico» da América Latina a partir dos anos 1930, até aos anos 1980 na Europa Ocidental, com a emergência do que se designou como «populismo xenófobo»10. Claro que esta divisão por «ondas» peca por ser esquemática, dado que outro tipo de «ondulações» populistas existiram, como o populismo neoliberal nos anos 1990 na América Latina, ou até mesmo um difuso «telepopulismo» guiado pela crescente mediatização da vida política a partir dos finais do século XX (e que não será tanto uma onda mas uma maré contínua). Por outro lado, e a partir do século XXI, tem que se incluir a nova vaga populista na América Latina – que irrompeu com a revolução bolivariana de Hugo Chávez, e subsequentemente com os regimes de Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador – e que é radical, visando a refundação das respetivas nações. Rematando, e como contraponto à tendência de concentrar as análises nos aspetos institucionais e partidários do populismo, talvez seja de incluir, no novo século, uma nova onda populista ligada aos movimentos sociais, e às suas dinâmicas de antissistema, que revelam atributos do populismo, como o discurso radical contra uma minoria usurpadora, o apelo para uma democracia direta, e soluções de salvamento de um povo esquecido e aviltado – «nós somos os 99 por cento» clamaram os movimentos de ocupação, dos Estados Unidos à Europa. De tal forma as redes sociais potenciam estas novas mobilizações populares, fluídas, descentralizadas e horizontais, que há quem veja mesmo nelas a emergência de um novo tipo de populismo, um populismo enfeixado no «admirável mundo novo» da tecnologia, o populismo open-source ou de «fonte aberta»11. A mensagem de fundo, portanto, é clara: como as demandas de «poder para o povo» aparecem de várias formas, o estudo sobre o populismo deve necessariamente espelhar essa variedade.

Em todas estas fases históricas desenvolveram-se populismos que foram classificados como de esquerda ou de direita. A grande distinção teria então a ver com a construção discursiva da categoria de «povo». Baseado na experiência dos populistas latino-americanos dos períodos clássico e radical, mas também de alguns populismos de esquerda europeus, argumenta-se que, à esquerda, o conceito de povo é eminentemente político e social, e de inclusão política dos que estão, do ponto de vista socioeconómico, à margem. Já à direita, e tendo como base os populismos que emergiram no final do século xx, diz-se que o conceito de povo é eminentemente étnico, o que leva à exclusão dos que não pertencem ao povo «indígena». Dois tipos ideais, em suma, um de um populismo «progressista» virado para a «plebe», e outro de um populismo «reacionário», firmado no éthnos12. Esta divisão não é, nem poderia ser, definitiva, devendo ser vista apenas como um indicador, característico aliás dos tipos ideais. Afinal de contas, também nos populismos de esquerda se exclui uma parte da população na categorização de povo (vista como maliciosa, venal, corrupta, ou inimiga histórica), enquanto a visão étnica à direita não é necessariamente imutável (existem grupos que podem ser integrados no «povo autêntico»), e para além disso os fatores socioeconómicos também fazem parte da sua mobilização populista contra as elites.

 

A CÓLERA DE ANTEU

O espectro de Anteu assombra a União Europeia (UE). Foi Umberto Bossi, o fundador da Liga do Norte, que, num congresso do partido em meados dos anos 1990, comparou o seu movimento ao gigante da mitologia grega. Se a sua força advinha do contacto com a terra, «a investida explosiva da Liga vem de baixo, porque a força da Liga vem da soberania popular, da qual é o intérprete mais direto e qualificado»13. Esta avocação – a de uma relação única e exclusiva com os sentimentos e aspirações do povo – podia ser feita por qualquer dos partidos da família política que o campo académico designa como de direita radical. Muitas vezes categorizada também, desde a sua emergência nos anos 1980, como «extrema-direita», aos poucos a palavra radical vai-se impondo, deixando para o campo do extremismo os movimentos extraparlamentares, proponentes da violência política, ou simplesmente antidemocráticos. Já os partidos radicais participam em eleições, não defendem nenhuma tomada violenta do poder, e respeitam as regras do jogo – não põem em causa a legitimidade da democracia embora sejam hostis a algumas dimensões do sistema liberal-democrático, e rejeitem o centro político e o chamado establishment, constituído por partidos políticos, elites financeiras, e os media pró-sistema. Existem, como não poderia deixar de ser, vozes discordantes. Como a de Pierre-André Taguieff, para quem a substituição de extremismo por radicalismo não passa de uma impostura, uma «coquetaria verbal» porque não resolve o problema de fundo da categorização, ou seja, o facto de a direita radical não constituir uma radicalização de posições da direita do sistema (pelo contrário ela constitui em muitos aspetos a antítese da direita liberal)14. Seja como for, o populismo aparece cada vez mais como uma subcategoria da direita designada como radical. Na língua franca de hoje pertence mesmo a uma sigla abundantemente presente nos trabalhos académicos: prrp (ou populist radical right parties). Pertence, diga-se, por mérito. A premissa da direita radical – e que justifica a sua existência – é a de que a soberania popular foi confiscada pelas elites. Na lista das suas palavras de ordem é recorrente ouvir expressões como «dar a palavra ao povo», reclamando-se estes partidos como sendo a «voz do povo», e o seu único representante contra a classe política e os partidos do sistema. Quando acusados (porque de uma acusação se trata) de serem populistas, a resposta dos seus líderes varia. Podem responder como o patriarca da direita radical europeia, Jean-Marie Le Pen – «Não é um insulto, ser o candidato do povo é de louvar» –, ou então denunciar a estratégia diabolizadora por detrás da palavra, como uma forma de inabilitar políticos e movimentos incómodos (desqualificados como simples demagogos isentos de seriedade) por desafiarem interesses ou tabus enraizados15.

A questão da representação (ou a sua ausência) está no centro da hosana que os populistas da direita radical europeia cantam ao povo soberano. Ao longo dos anos, as elites políticas europeias (em conluio com os poderes financeiros e os media) viraram as costas às opiniões e aspirações populares, e escancararam as portas das nações à tirania do capitalismo selvagem e dos mercados financeiros, à tecnocracia sem rosto e antidemocrática da UE, e a um modelo de sociedade multicultural destruidor de identidades histórico-culturais e gerador de conflitos sociais e perigosos comunitarismos. Neste quadro geral, os populistas orgulham-se em «dizer alto aquilo que o povo pensa em baixo», quebrando pela palavra os tabus do regime e o pensamento único veiculado pela «casta» dominante, seja relativamente aos alegados benefícios da globalização capitalista e da integração europeia, seja da imigração como uma «oportunidade» para as sociedades nativas europeias. Contra esta ideologia vista como desastrosa, e desligada da realidade, os populistas da direita radical respondem, invariavelmente, e desde a sua emergência, com o louvor ao senso comum popular contra uma elite vista como essencialmente traidora. Daqui deriva a defesa de uma «verdadeira» democracia, onde o povo é realmente representado, e que, para começar, deve incluir mecanismos de democracia direta como referendos ou iniciativas populares, e também sistemas eleitorais mais proporcionais (e mais abertos a novos partidos).

Evidentemente, e tendo em conta que estes partidos têm uma conceção etnonacionalista – em que o povo é construído como uma comunidade homogénea, muitas vezes «pura», que urge defender, preservar, e separar de influências alógenas –, os temas socioculturais, de cultura e etnicidade, têm primazia na narrativa de contestação aos regimes instalados. A rejeição da imigração, sobretudo não europeia, portadora de uma cultura diferente da dos nativos, foi desde cedo uma consequência natural da mobilização populista da direita radical, impulsionada, sobretudo desde a passagem para o novo século, pelo crescente enquadramento da questão em termos etnorreligiosos (a islamização do continente), em termos de segurança nacional, e até – numa prova de que o discurso da direita radical evolui com as conjunturas históricas – de defesa do caráter liberal-democrático das sociedades europeias (contra o islão iliberal)16. Claro que os temas socioeconómicos também acabam por se juntar ao antimigracionismo, nomeadamente através da defesa do Estado Social, sendo os imigrantes e as suas famílias, assim como os refugiados, vistos como uma força essencialmente parasitária. Além disso, hoje em dia, a tendência na maior parte destes partidos é para o protecionismo económico, como complemento ao tal protecionismo cultural. Não se deve, contudo, confundir populismo e nacionalismo, algo que muitas vezes aparece ligado no discurso do antipopulismo. Não apenas pelo facto de existirem populismos que não constroem etnicamente o povo, mas também porque enquanto no etnonacionalismo (ou nativismo) a distinção básica é entre nativos e estrangeiros, no populismo essa distinção ocorre dentro do mesmo grupo nativo, em que o povo é atraiçoado pelas elites. Para que houvesse essa convergência as elites teriam de ser, também elas, estrangeiras (em vez de apenas «agentes» de interesses estrangeiros, como muitas vezes são denunciadas)17. Finalmente, é preciso ter em conta que embora as questões socioculturais sejam também sobrelevadas nos partidos populistas do Leste europeu, elas focam sobretudo minorias étnicas (como os roma, os turcos, ou os húngaros) e não tanto a imigração extraeuropeia (muito mais presente na Europa Ocidental)18. A experiência soviética também ajudou a preservar muitas destas sociedades dos modelos multiculturais difundidos no outro lado da cortina. Dito isto, e em face da reação, por exemplo, na chamada crise dos refugiados, caso esse fluxo imigratório acontecesse, a posição anti-imigracionista subiria naturalmente ao topo da agenda populista da Europa de Leste.

Por ideologia, desleixo, ou incúria dos partidos ditos não populistas, a direita radical populista apropriou-se, ao longo de décadas, do tema da imigração, tornando-o «seu» e enquadrando-o como peça principal da sua defesa da soberania popular. Em termos de performance eleitoral, isso significa que, como de resto é demonstrado por estudos empíricos, a prevalência de atitudes nativistas no eleitorado e a saliência de temas como a imigração e o multiculturalismo são um indicador de uma maior votação nesse tipo de partidos19. Claro que esta narrativa desemboca, inevitavelmente, na questão mais insidiosa de saber quem é que influencia quem. O antipopulismo, desde cedo, tem alertado para a «lepenização» dos espíritos, que, para além de imputar ao ator populista a responsabilidade pela disseminação e legitimação de temas como a «anti-imigração», ou o «anti-islão», é também uma forma de, como denunciou o sociólogo francês Jean-Pierre Le Goff, erguer o dedo acusador contra o povo, cujo voto relevaria da manipulação, incultura e até da imoralidade20. Talvez uma perspetiva mais equilibrada (e, porque não, sensata) – e atenta ao facto de que a emergência e desenvolvimento do populismo depende obviamente da procura – veja a difusão da narrativa populista também como um espelho de correntes de opinião e sentimentos que estão espalhados pela sociedade. Neste caso, ao invés de limitar-se a moldar, a insurgência populista é igualmente moldada pela opinião pública. Isto é tão mais importante quando se sabe que, ano após ano, estudos de opinião mostram que, mesmo com variações, maiorias consideráveis nos países europeus rejeitam qualquer aumento da imigração, sobretudo não europeia, e subscrevem a ideia que os imigrantes não querem ser integrados, e muito menos assimilados, pela cultura dominante21. Se a este fator se junta a convicção impregnada por parte de uma maioria de europeus, e consistente ao longo dos anos, que «a sua voz não conta na União Europeia», não parece de todo surpreendente que movimentos que prometem redimir a soberania popular, e libertá-la das correntes que a mantêm encadeada, possam eventualmente prosperar na Europa22.

eventualmente porquê?Porque também é útil fazer um exercício de desmitologização da narrativa, com laivos de alarmismo, da ascensão «irresistível» dos populismos da direita radical na Europa. Desde os anos 1980, apenas uma pequeníssima minoria de governos teve a participação desse tipo de partidos (pouco mais de uma vintena em mais de 300 governos), e mesmo quando atingem o poder (sempre em coligação com forças conservadoras tradicionais) não houve nenhuma mudança substancial do regime político em que estão inseridos23. Esse sobressalto, muito presente nos media, também se traduz na imagem do «regresso» dos anos 30 do século xx. No meio do alvoroço, contudo, esquece-se que, hoje em dia, as democracias liberais estão numa clara posição de superioridade. Quer a nível legal e judicial (atacando muitas vezes pela raiz qualquer tipo de discurso categorizado como «extremista»), quer a nível educacional (inculcando as virtudes do sistema liberal-democrático e dos seus valores na sociedade civil). Aliás, em nome da «proteção» democrática muitas vezes, ao longo dos anos, a prática seguida pelos partidos pró-sistema foi a da imposição dos célebres «cordões sanitários» à volta de partidos acusados de defenderem posições vistas como desrespeitáveis, perigosas, ou moralmente condenáveis, impedindo-os de acederem ao poder. Embora desde a passagem para o século xxi tenha havido brechas neste ritual, o que é um facto é que a sua existência acaba por ser utilizada pelos populistas para confirmar a sua narrativa de que eles são de facto a única alternativa contra um sistema que, como se vê, une-se para os marginalizar. Para além de invalidar os votos dos seus eleitores (na prática ficam sem voz nas instituições democráticas), a política dos cordões valida o seu antielitismo.

A crise migratória, ou dos refugiados, que emergiu sobretudo a partir de 2015, veio naturalmente reforçar o campo da direita radical populista, não obstante os apelos, como o de Jean-Claude Juncker, para que os europeus «resistam» à «rejeição populista» dos migrantes24. A visão de uma imensa marcha, a perder de vista, de não europeus irrompendo pelas fronteiras da Europa, aumentou a saliência do tema da imigração, e da insegurança identitária e cultural a ela vinculados – os estudos de opinião mostram como o tema da imigração subiu precipitadamente no topo dos «assuntos mais importantes» que a UE teria de enfrentar – e à partida, e sem necessidade de teorizações complexas, iria sempre favorecer os partidos que fazem da anti-imigração um dos seus principais cavalos de batalha25. Mesmo assim, é importante não esquecer que, mesmo na presença de condições favoráveis, e em termos de possibilidade de sucesso eleitoral, o partido populista precisa também de ser visto como credível, em termos de liderança, organização e competência26.

Por fim, é impossível escapar ao simbolismo. Foi Anteu quem, na Divina Comédia, conduziu Dante ao último precipício do Inferno. Para os antipopulistas de toda a ordem a analogia não poderia ser mais certeira. Mas talvez para os populistas da direita radical o «inferno» seja, pelo contrário, uma alternativa «paradisíaca» de uma democracia antiuniversalista e desirmanada do liberalismo; um novo sistema em que a comunidade tem precedência relativamente à liberdade individual, livre do culto das minorias, e assente numa conceção mais fechada do povo soberano, em que a convergência entre éthnos e demos surge como a tal solução «salvífica» para as patologias sociais das sociedades contemporâneas.

 

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ZÚQUETE, José Pedro – «A Europa, a extrema-direita, e o islão». In Locus: Revista de História. Vol. 18, N.º 1, pp. 209-240, 2012. Disponível em: http://www.editoraufjf.com.br/revista/index.php/locus/ article/viewFile/1996/1441.

 

Data de receção: 28 de março de 2016 | Data de aprovação: 3 de maio de 2016

 

NOTAS

1 BERLIN, Isaiah – «To define populism». 1 de maio de 1967, p. 6. Disponível em: http://berlin.wolf.ox.ac.uk/lists/bibliography/bib111bLSE.pdf.

2 FREEDEN, Michael (org.) – Reassessing Political Ideologies: The Durability of Dissent. Londres: Routledge, 2001, p. 203.

3 KALTWASSER, Cristóbal Rovira – «Explaining the emergence of populism». In DE LA TORRE, Carlos – The Promise and Perils of Populism: Global Perspectives. Lexington: University Press of Kentucky, 2015, pp. 191-192.

4 OSTIGUY, Pierre – «Flaunting the “Low” in politics: a cultural-relational approach to Populism». In TAGGART, Paul et al.The Oxford Handbook on Populism. Nova York: Oxford University Press, 2017.

5 DE LA TORRE, Carlos – «Las tensiones no resueltas entre el populismo y la democracia procedimental». In Recso: Revista de Ciencias Sociales. Vol. 2, Ano 2, 2011, pp. 63-79.

6 ROBERTS, Kenneth, M. – «Populism, political mobilizations, and crises of political representation». In DE LA TORRE, Carlos – The Promise and Perils of Populism: Global Perspectives. Lexington: University Press of Kentucky, 2015, pp. 147-150.

7 MCCORMICK, John. P. – «Contemporary democracy in crisis and the populist cry of pain». 3 de junho de 2015, p. 3. Disponível em: https://www.academia.edu/22225287/Contemporary_democracy_in_crisis_and_the_populist_cry_of_pain_Public_Lecture_.

8 CANOVAN, Margaret – «Trust the people! Populism and the two faces of democracy». In Political Studies. 47, 1999, pp. 4-6.

9 CHWALISZ, Claudia – The Populist Signal: Why Politics and Democracy Need to Change. Londres: Policy Network, 2015, p. 97.

10 MUDDE, Cas, e KALTWASSER, Cristóbal Rovira – «Populism». In FREEDEN, Michael, SARGENT, Lyman Tower, e STEARS, Marc – The Oxford Handbook of Political Ideologies. Nova York: Oxford University Press, 2013, pp. 494-498.

11 LOWNDES, Joe, e WARREN, Dorian – «Occupy Wall Street: a twenty-first century populist movement?». In Dissent. Outubro de 21. Disponível em: https://www.dissentmagazine.org/online_articles/occupy-wall-street-a-twenty-first-century-populist-movement.

12 ABROMEIT, John, et al. – «Introduction» – Transformations of Populism in Europe and the Americas: History and Recent Tendencies. Londres: Bloomsbury, 2016, pp. XV-XIX.

13 ZÚQUETE, José Pedro – Missionary Politics in Contemporary Europe. Syracuse, NY: Syracuse University Press, 2007, p. 157.

14 TAGUIEFF, Pierre-André – Du diable en politique: Réflexions sur l’antilepénisme ordinaire. Paris: CNRS Editions, 2014, pp. 189, 271-272.

15 ZÚQUETE, José Pedro – Missionary Politics in Contemporary Europe, p. 78.

16 ZÚQUETE, José Pedro – «A Europa, a extrema-direita, e o islão». In Locus: Revista de História. Vol. 18, N.º 1, pp. 209--240, 2012. Disponível em: http://www.editoraufjf.com.br/revista/index.php/locus/ article/viewFile/1996/1441.

17 Este ponto é bem explicado, por exemplo, em MUDDE, Cas, e KALTWASSER, Cristóbal Rovira – «Populism». In FREEDEN, Michael, SARGENT, Lyman Tower, e STEARS, Marc – The Oxford Handbook of Political Ideologies. Nova York: Oxford University Press, 2013, p. 504.

18 PIRRO, Andrea L. P. – The Populist Radical Right in Central and Eastern Europe: Ideology, Impact, and Electoral Performance. Londres: Routledge, 2015, p. 15.

19 VAN KESSEL, Stijn – Populist Parties in Europe: Agents of Discontent?. Palgrave Macmillan, 2015, p. 24.

20 Citado em TAGUIEFF, Pierre-André – Du diable en politique: Réflexions sur l’antilepénisme ordinaire. Paris: CNRS Editions, 2014, p. 141.

21 PEW RESEARCH CENTER – Report – 12 de maio de 2014, p. 27. Disponível em: http://www.pewglobal.org/2014/05/12/a-fragile-rebound-for-eu-image-on-eve-of-european-parliament-elections/.

22 STANDARD EUROBAROMETER 84 – Public opinion in the European Union – outono de 2015, p. 9.

23 MUDDE, Cas – «Populist radical right parties in Europe today.» In Abromeit, John, et al., – Transformations of Populism in Europe and the Americas: History and Recent Tendencies. Londres: Bloomsbury, 2016, pp. 300-302.

24 AFP – «Juncker urges EU members to resist “populist” rejection of migrants». 5 de agosto de 2015.

25 STANDARD EUROBAROMETER 84 – Public opinion in the European Union, p. 13.

26 VAN KESSEL, Stijn – Populist Parties in Europe: Agents of Discontent?, p. 32.

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