SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número50Era uma vez o populismo… índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.50 Lisboa jun. 2016

 

POPULISMO E MIGRAÇÕES

 

Nota introdutória: Populismo e migrações

 

Filipa Raimundo* e Ana Santos Pinto**

* Doutorada em Ciências Políticas e Sociais pelo Instituto Universitário Europeu de Florença. Atualmente, é investigadora no ICS–UL onde coordena os seminários de pós-graduação em ciência política, e professora auxiliar convidada no ISCTE–IUL. É também cocoordenadora da rede de investigadores «Conexões Lusófonas. Ditadura e Democracia em Português». Os seus trabalhos têm sido publicados em revistas como Democratization, South European Society and Politics e Journal of Balkan and Near Eastern Studies e em livros publicados por editoras como Palgrave, Routledge e Columbia University Press. Os seus interesses de investigação incluem a justiça transicional, democratizações, qualidade da democracia, estudos legislativos e estudos europeus.

** Doutorada em Relações Internacionais pela Universidade NOVA de Lisboa, onde é professora auxiliar no Departamento de Estudos Políticos. É investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI–NOVA) e investigadora associada do Instituto da Defesa Nacional (IDN), tendo como interesses de investigação as identidades em política internacional, a política externa e de segurança da União Europeia e geopolítica do Médio Oriente.

 

Dias antes do referendo de 23 de junho de 2016, que haveria de ditar a saída do Reino Unido da União Europeia (UE), a deputada trabalhista Jo Cox foi assassinada por um cidadão britânico aparentemente ligado a um grupo extremista anti-imigração. A imigração parecia estar no cerne do debate sobre a decisão de abandonar ou não a UE, mas esteve mesmo?

As análises sobre a sociologia do voto produzidas no rescaldo do referendo revelaram que o voto pela saída do Reino Unido da UE foi maioritário em zonas predominantemente rurais ou em forte processo de desindustrialização, como Hatlepool ou Sunderland, onde os efeitos da imigração são menos sentidos. Também a análise da campanha pela saída da UE revelou que esta apostou fortemente num discurso contra o princípio da subsidiação das zonas menos desenvolvidas e contra a perda de soberania e dignidade que ela representaria, assim como num discurso contra as elites políticas dominantes e a sua incapacidade de conduzir à recuperação da economia na sequência da crise financeira de 2008, ao mesmo tempo que provavelmente beneficiaram com ela1. E foi neste sentido que o resultado do referendo foi encarado como sendo o triunfo da política populista simbolizada pelo discurso do líder do partido UKIP, Nigel Farage. Tudo isto, a somar ao facto de o UKIP ser um partido populista que defende uma imigração «controlada e limitada», sugere que a questão da imigração poderá não ter sido central para o Brexit e para a campanha do«Leave». Contudo, pode dizer-se que «a campanha de saída do Reino Unido da UE só ganhou ascendência quando colocou o problema da imigração no centro do debate. Até aí, tinha perdido o argumento económico e até o argumento político, exceto no que diz respeito à recuperação da soberania, ligada ao controlo das fronteiras»2.

É por isso importante compreender qual é exatamente o lugar das migrações nos discursos populistas contemporâneos. Por um lado, o discurso populista surge em ascensão num momento em que a crise dos refugiados atingiu uma dimensão inegável. Dados do Eurostat indicam que só em 2015 chegaram à UE 1,2 milhões de migrantes com pedidos de asilo político3, o que representa mais do dobro do número registado em 2014, no mesmo ano em que a agência europeia Frontex contabilizou a entrada de 978 mil migrantes irregulares nas fronteiras externas da UE4. Para além disso, estes fluxos têm tido repercussões significativas na UE, designadamente a incapacidade de uma resposta comum a uma urgência humanitária nas fronteiras da Europa, bem como na política doméstica dos estados-membros, trazendo ao debate questões relativas ao emprego, ao Estado social, à identidade e à segurança. Ao mesmo tempo, também nos Estados Unidos o tema das migrações assume particular relevância no discurso político, expresso num ambiente pré-eleitoral. Por outro lado, a sociologia do Brexit revela que a questão da imigração poderá não ser tão central para o discurso populista quanto seria de supor, ao contrário do que sucede com a extrema-direita, particularmente a extrema-direita «pós-industrial» desligada dos movimentos neofascistas.

Este dossiê especial procura refletir sobre a ascensão dos movimentos populistas em ambos os lados do Atlântico e sobre o papel das migrações na atual narrativa política. Estes dois fenómenos são frequentemente associados à presente intensificação dos fluxos migratórios, contudo, como demonstram os artigos que compõem este dossiê especial, as suas origens antecedem largamente a crise atual.

O primeiro artigo deste dossiê, da autoria de José Pedro Zúquete, e intitulado «Era uma vez o populismo…», faz uma incursão pelas origens do conceito, abordando várias questões essenciais acerca do populismo no século XXI. O artigo procura dar resposta a perguntas como: Será o populismo uma ideologia? Existe um populismo de esquerda e um populismo de direita? Qual a relação entre o populismo e os ideais da extrema-direita? Os movimentos populistas são nacionalistas? Na sua análise, Zúquete salienta que são as ideias em torno dos conceitos de «povo», «elites», «crise» e «democracia representativa» que estão no cerne da narrativa populista e que são elas que em larga medida nos permitem compreender de que forma é que o populismo se distingue dos ideais nacionalistas e de extrema-direita. Aqui, o tema da imigração ganha destaque. Historicamente, a não construção étnica do povo e a primazia da luta entre este e a elite colocavam a questão da imigração em segundo plano na narrativa populista. Contudo, conclui o autor, «por ideologia, desleixo, ou incúria dos partidos ditos não populistas, a direita radical populista apropriou-se, ao longo de décadas, do tema da imigração, tornando-o “seu” e enquadrando-o como peça principal da sua defesa da soberania popular».

À semelhança do anterior, também o artigo da autoria de George Michael nos oferece uma visão histórica do populismo, desta vez centrada nos Estados Unidos, onde, desde o início do século XIX, o movimento populista passou por «vários credos políticos ao longo de todo o espectro político». Desde o movimento antimaçónico que terá surgido com a passagem de uma economia agrícola para uma economia orientada para o comércio, até ao movimento Occupy Wall Street(à esquerda) ou o Tea Party (à direita), o autor demonstra que o populismo americano não surgiu com as eleições presidenciais de 2016. Contudo, Michael salienta uma importante diferença entre estes novos populismos e os seus antecessores:

«No passado, os movimentos populistas na América foram efémeros; no entanto, uma combinação de tendências, incluindo a incerteza económica, a globalização, a revolução tecnológica, a restruturação dos meios de comunicação social e a disfunção do Governo podem fazer do populismo uma característica regular da política americana.»

Esta previsão é naturalmente inspirada pela recente campanha presidencial americana, em que Bernie Sanders encarnou uma espécie de «populismo de esquerda» e Donald Trump uma espécie de «populismo de direita», este último apelando à luta contra a imigração ilegal. E é nesse ponto que o discurso populista de Trump se aproxima do discurso da extrema-direita europeia, levando mesmo a que Trump receba o apoio de líderes de partidos de extrema-direita da França, Holanda e Itália.

Os pontos de contacto entre o populismo e a extrema-direita, já abordados nos artigos anteriores, tornam inevitável uma análise mais detalhada dos temas que aproximam estas duas ideologias, assim como da importância da questão migratória para cada uma delas. O terceiro artigo, da autoria de Riccardo Marchi e Guido Bruno e intitulado «A extrema-direita europeia perante a crise dos refugiados», propõe-se analisar essa questão de um ponto de vista comparativo. Os autores demonstram a complexidade da questão ao porem em evidência a diversidade existente entre os vários partidos que se encontram na fronteira entre um e outro tipo. A título de exemplo, os autores sugerem que partidos como o UKIP (Reino Unido) ou o MoVimento 5 Estrelas (Itália) «comungam do euroceticismo próprio dos populismos de esquerda e de direita, mas abordam a questão migratória – central na extrema-direita – com muito mais moderação em comparação com outros incluídos no conjunto dos populistas de extrema-direita, como a Liga do Norte e a Frente Nacional». Apesar de concordarem com Zúquete na avaliação que fazem do moderado sucesso eleitoral destes partidos, Marchi e Bruno salientam que, em comparação com a extrema-direita dita «tradicional», a nova extrema-direita «pós-industrial», marcada por discursos xenófobos e anti-imigração, é hoje mais bem-sucedida. Mas também esta extrema-direita «pós-industrial» apresenta as suas variações. Segundo os autores, na luta que se propõem travar contra a «islamização» da Europa, estes partidos de extrema-direita apresentam visões distintas sobre o papel da religião: ora mais seculares, ora a favor do papel ativo da Igreja Católica, ora apontando a questão etno-racial como sendo mais importante do que a questão religiosa. Os autores atribuem a difusão da xenofobia, assim como do sentimento antieuropeísta, à ambiguidade discursiva da direita que em muitos casos procura capitalizar a insatisfação do eleitorado da extrema-direita.

Os dois artigos que se seguem oferecem uma visão clara das principais diferenças entre a extrema-direita e o populismo, mostrando como as questões da imigração são por vezes um ponto de união. Uma das melhores ilustrações do considerável sucesso eleitoral da extrema-direita e da relação entre esse desempenho e a atual crise dos refugiados é o partido de Marine Le Pen em França, a Frente Nacional. O quarto artigo, da autoria de João Carvalho e intitulado «Partidos de extrema-direita e a gestão da crise do asilo na Europa: o caso francês» ilustra bem este ponto. O autor vê no sucesso eleitoral da extrema-direita uma importante justificação para as «dificuldades observadas ao nível da UE para estabelecer um consenso relativamente à resposta a adotar face à crise de asilo». Partindo da ideia de que nas eleições presidenciais de 2012 Hollande ganhou com a transferência de votos da extrema-direita para o centro-esquerda e que nas eleições regionais de dezembro de 2015 a conquista do poder por parte da extrema-direita só foi travada pela incapacidade de formar coligações com os partidos moderados, João Carvalho mostra a estreita relação existente entre a ascensão da extrema-direita e a atual crise de asilo. Mais ainda, o autor salienta que a Frente Nacional tem liderado as várias sondagens sobre intenções de voto para as eleições presidenciais de 2017 e considera que essas previsões continuam a influenciar a forma como o Presidente e o Governo franceses têm gerido a atual crise de asilo – ainda que historicamente a Frente Nacional possa ter reduzidas hipóteses de vir a confirmar a sua vitória à segunda volta.

Do lado dos partidos populistas não-alinhados com a extrema-direita, o MoVimento 5 Estrelas italiano transformou-se recentemente num dos mais bem-sucedidos. No quinto artigo, da autoria de Goffredo Adinolfi intitulado «O MoVimento 5 Estrelas e a lei férrea da oligarquia», o autor salienta o facto de o partido italiano ter como principais bandeiras a luta contra a corrupção, as oligarquias, e a profissionalização da política. O autor analisa as origens do movimento, a sua trajetória de ascensão e oferece-nos um perfil do seu eleitorado, mostrando que uma parte significativa não se revê na escala esquerda/direita e que os restantes se dividem entre os dois lados do espetro político. Esta ambiguidade ideológica é vista pelo autor como uma das razões fundamentais para a dificuldade que o partido revela em definir posições firmes e coerentes em diversas áreas, entre elas a imigração.

Finalmente, o artigo de Susana Ferreira, subordinado ao tema «Orgulho e preconceito: a resposta europeia à crise de refugiados», analisa como a UE tem gerido os significativos fluxos migratórios registados em 2015, seja ao nível das políticas comuns de imigração e asilo da UE, seja através de iniciativas nacionais dos estados-membros. A autora argumenta, por um lado, que os mecanismos de gestão migratória da UE se revelaram ineficazes perante a crescente dimensão dos fluxos, sendo que as respostas encontradas ao nível europeu resultaram de acordos minimalistas, entre as instituições e estados-membros. Por outro lado, salienta que os estados mais afetados pelo intenso fluxo de migrantes adotaram medidas de contenção de fluxos, designadamente através da reintrodução, ainda que temporária, dos controles fronteiriços, da adoção de políticas nacionais de asilo cada vez mais restritivas e do reforço dos perímetros fronteiriços internos, o que condicionou a formulação de uma «resposta europeia como um todo».

Na análise à resposta da UE aos desafios colocados pela atual geografia das migrações irregulares no Mediterrâneo, Susana Ferreira considera que as negociações no contexto da União são marcadas por constantes tensões entre os países de chegada e trânsito e os países de acolhimento, acusações constantes de falta de compreensão e de solidariedade entre os parceiros europeus e pela existência de um debate mais centrado nos «encargos» do que nos princípios fundadores do projeto europeu. No que concerne às respostas nacionais, a autora salienta a adoção pelos estados-membros de políticas muito diferenciadas, «que vão da Wilkommenspolitik da Alemanha a uma política de portas fechadas», na Hungria e em outros países da Europa Oriental, concluindo que estas «refletem também o crescente triunfo da extrema-direita por toda a Europa, que tem na crise de refugiados um dos seus últimos trunfos».

O conjunto de artigos que formam o dossiê dedicado às questões do populismo, imigração e eleiçõesoferece um olhar multidisciplinar sobre alguns aspetos centrais do atual debate político na UE. Em particular, procura-se desmistificar o fenómeno do populismo emergente nos últimos anos e compreender as razões do seu maior ou menor sucesso eleitoral. Os vários artigos demonstram que a imigração não é central para os partidos populistas, particularmente no caso do «populismo de esquerda». Contudo, o fluxo migratório dos últimos dois anos, assim como os pontos de contacto entre estes partidos e os partidos extremistas, tem levado à sua apropriação do tema. 2017 será ano de eleições nalguns países onde o populismo e a extrema-direita têm tido considerável ascensão e até sucesso – como a Alemanha, a França, a Hungria e a Holanda. Será uma oportunidade para reavaliarmos qual a capacidade de captação de eleitorado dos partidos populistas e a forma como os seus discursos e narrativas os aproximam da extrema-direita, num contexto de incerteza sobre os efeitos do processo de saída do Reino Unido da UE e a evolução dos fluxos migratórios com destino à Europa.

 

NOTAS

1 HOPKIN, Jonathan – «Brexit backlash. The Populist rage fueling the Referendum». In Foreign Affairs. (Consultado em: 15 de julho de 2016). Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/united-kingdom/2016-06-21/brexit-backlash.

2 BETHENCOURT, Francisco – «Brexit e imigração». In Público. 21 de junho de 2016.

3 EUROSTAT – «Record number of over 1.2 million first time asylum seekers registered in 2015». (Consultado em: 10 de maio de 2016). Disponível em http://ec.europa.eu/eurostat/documents/2995521/7203832/3-04032016-AP-EN.pdf/790eba01-381c-4163-bcd2-a54959b99ed6).

4 FRONTEX – «Fran Quarterly Q4». Outubro-dezembro de 2015. (Consultado em: 19 de maio de 2016). Disponível em http://frontex.europa.eu/assets/Publications/Risk_Analysis/FRAN_Q4_2015.pdf.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons