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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.49 Lisboa mar. 2016

 

RECENSÕES

 

 Uma defesa da dupla hegemonia benigna

 

Bernardo Pires de Lima

Investigador do IPRI-UNL e do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins em Washington DC. É colunista de política internacional do Diário de Notícias e comentador na mesma área da rtp e da Antena 1. Autor de A Síria em Pedaços (2015), A Cimeira das Lajes (2013) e Blair, a Moral e o Poder (2008) e conferencista habitual em universidades e academias diplomáticas. Foi investigador do Instituto de Defesa Nacional e tem publicado regularmente na imprensa internacional, em títulos como o Huffington Post, The National Interest, Hurriyet Daily News ou The Diplomat.

 

Tiago Moreira De Sá

Política Externa Portuguesa Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015, 100 pp.

 

O livro de Tiago Moreira de Sá tem três qualidades notáveis. É sucintamente teórico no enquadramento feito à evolução da ordem internacional que baliza a política externa de um Estado como Portugal. É parcimoniosamente histórico no acompanhamento dos cinco principais regimes políticos portugueses em análise. E é pertinentemente político para interpretar o momento atual das opções na política externa portuguesa. Com este alinhamento intelectual, que aliás percorre o esqueleto do livro que integra a cada vez mais fundamental coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o professor e investigador do IPRI-NOVA consegue um resultado pouco comum na nossa literatura em relações internacionais: não cair numa vertigem teórica, num excesso historicista e numa motivação doutrinal.

A tese fundamental deste ensaio resulta do enquadramento dado pelo autor à política externa portuguesa na teoria das relações internacionais. Para Tiago Moreira de Sá a ordem ocidental do pós-guerra, cujas instituições vigoram e balizam as nossas orientações externas, é historicamente única. De facto, qualquer ordem internacional dominada por uma grande potência assenta numa combinação de coerção e de consentimento, mas a hegemonia dos Estados Unidos tem sido distinta, sendo mais liberal do que imperial e atipicamente mais acessível, legítima e duradoura. A agregação do maior número de democracias abertas e de estados democráticos não só se tornou um fator de acumulação de poder geopolítico, como alterou o equilíbrio em favor da ordem. Além disso, a ordem ocidental do pós-guerra apresenta um conjunto de instituições e um sistema de normas vastamente apoiado, invulgarmente denso e abrangente. O benefício mais importante destas características é o facto de elas conferirem ao Ocidente uma capacidade notável para acomodar as potências emergentes. A ordem democrática e pluralista é um poderoso círculo de durabilidade e de extensão geográfica: a posição global dos Estados Unidos até pode enfraquecer em muitas dimensões, mas é mais difícil que o sistema internacional liderado pelos norte-americanos não continue preponderante nas próximas décadas.

Os últimos trinta anos transformaram Portugal, modernizaram a sua economia, consolidaram os seus sistemas educativo e de saúde, normalizaram as relações entre a esfera civil e a militar, inserindo as Forças Armadas numa «comunidade de segurança pluralista» euro-atlântica, respeitando padrões de cooperação e sofisticação tecnológica, num quadro continental de aprofundamento da integração económica, financeira, comercial, educativa e militar. Por outras palavras, a adesão de Portugal à União Europeia (UE) foi vital para a normalização da democracia e para a adequação da nossa inserção internacional pós imperial. Contudo, o aprofundamento da integração europeia, nomeadamente a partir da criação da união monetária e da entrada em vigor da moeda única, consolidou a política europeia como uma dimensão absolutamente preponderante das várias políticas nacionais dos estados-membros. Basta dizer que 80 por cento do investimento público português tem origem nos fundos comunitários além de a esmagadora maioria da nossa legislação decorrer das instituições europeias.

Portugal viu naturalmente diluído o seu peso relativo no concerto europeu à medida que os alargamentos se deram a países de igual ou de superior dimensão, os quais por sua vez desviaram o centro gravitacional da UE para leste, oficializando Portugal também como a periferia ocidental da UE alargada. Mais: a reunificação alemã percorreu um caminho tão natural como previsível de colocação de Berlim como o verdadeiro centro político da UE, consolidando uma autêntica unipolaridade alemã no quadro das várias políticas europeias. Por outras palavras, se na ordem internacional do pós-guerra e do pós-Guerra Fria, os Estados Unidos detinham uma hegemonia sistémica, também na ordem regional europeia a Alemanha atravessa semelhante estatuto. É sobre esta dupla hegemonia que Tiago Moreira de Sá baliza a posição portuguesa e as suas opções em política externa.

Deve dizer-se que o autor está confortável com a dupla hegemonia, que considera benigna, estrutural e necessária à estabilidade das respetivas ordens, sendo que ambas são pilares do Ocidente pluralista e da sua liderança na economia e geopolítica internacionais. Mas vai mais longe. Considera que Portugal não tem interesse nem condições para disputar, através de alianças anti-hegemónicas, a primazia americana e alemã, e que deve consolidar-se como um aliado próximo para tentar influenciar as suas opções estratégicas. Dado o momento que a UE atravessa, é sensata a argumentação, embora o autor distinga proximidade com seguidismo. O que talvez merecesse outra exploração analítica é o facto de a Europa do Sul estar hoje a questionar com outra coordenação os termos do tratado orçamental e poder ser esse o mecanismo mais aproximado de «disputa» da hegemonia alemã. As consequências desse debate continuam por apurar, mas não podem escapar ao momento de pressão europeu que centraliza também na Alemanha a liderança da crise dos refugiados, com todas as implicações à segurança e coesão europeias a que temos assistido. Ou seja, a hegemonia alemã está a ser testada como nunca desde a reunificação e está em aberto o aparecimento de equilibradores concertados ou agentes perturbadores dessa primazia.

Precisamente por termos delegado a consolidação do nosso regime e da modernização da economia na UE, e porque o caminho supranacional percorrido por esta nos últimos vinte anos acabou por cristaliza-la como parte integrante da política interna portuguesa, ficou um vazio no desenho da política externa. Por um lado, as relações dentro da Europa passaram a ser do domínio interno português, expondo o País a períodos de recessão económica generalizada nesse espaço ou de desorientação política e financeira no quadro da moeda única; por outro, o facto de não termos trabalhado com outro vigor a vocação atlântica veio a restringir o leque de alternativas compensatórias. Este é, para Moreira de Sá, o grande desafio português sem pôr em causa o pilar europeu, embora o autor pudesse ter ousado na análise à necessidade (ou não) de ser revista a orgânica governativa como resposta à consolidação dos assuntos europeus mais como dimensão interna do que externa. Seria também interessante perceber como podem os órgãos de soberania interagir nessa arquitetura e que dinâmica de atrito pode gerar entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros, o gabinete do primeiro-ministro, o Parlamento, a Presidência da República e até o Tribunal Constitucional.

O autor, e bem, defende que os três círculos da política externa do Portugal democrático – Europa, Aliança Atlântica, Lusofonia – tenham uma continuidade e uma complementaridade reforçadas por um maior empenho de Lisboa nas suas instituições – UE, NATO e CPLP. Moreira de Sá é conclusivo sobre a inexistência de fórmulas compensatórias para a inserção de Portugal no mundo, além de defender que nenhum desses três pilares tem de colidir estrategicamente para sobreviver. Aliás, e mais uma vez bem, embora pudesse ter escalpelizado mais os seus termos, o autor advoga uma «unidade atlântica» como espaço de redimensionamento para a política externa portuguesa, não enquanto substituto da integração europeia, mas como vértice complementar. Um outro ponto fundamental levantado neste ensaio é a relação com Espanha, «a nossa política externa permanente», como afirmava o antigo embaixador em Madrid, Victor Cunha Rego. Moreira de Sá reconhece o nosso caminho paralelo desde a adesão às Comunidades, mas defende uma reavaliação do mesmo, menos dependente e subalternizado, mais diferenciador e personalizado, de forma a diluir a perceção externa, sobretudo em Washington, da existência de um bloco ibérico ou da desvalorização de Lisboa em função da ascensão de Madrid.

Uma política externa não deve ser um menu à la carte que se percorre de maneira diferente em função das nossas debilidades económicas. Uma política externa deve resistir às intempéries exatamente porque os seus alicerces protegem o país dos ciclos mais negativos na economia e não deixam o Estado fragilizado nas suas relações com o exterior. Valores políticos partilhados, interesses estratégicos complementares, economias interligadas, fazem da política externa de um país como Portugal um valor acrescentado para gerar confiança nos aliados, captar investimento estrangeiro sem deixar de defender os setores estratégicos nacionais, dinamizar a economia e proporcionar ao Estado um investimento sensato mas inevitável na defesa para poder exercer soberania. O ensaio de Tiago Moreira de Sá arruma estas causas de uma forma sóbria, elegante e corajosa.

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