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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.49 Lisboa mar. 2016

 

ENSAIO BIBLIOGRÁFICO

 

Colonial, internacional ou civil: Regressos à guerra africana

 

René Pelissier

Historiador. Autor de Les campagnes coloniales du Portugal, 1844-1941 (2004) e, com Douglas L. Wheeler, História de Angola (Tinta-da-China, 2009).

 

O que quer que seja que pretenda fazer, o crítico deve contentar se com o que recebe dos editores; como não é em Angola nem em Moçambique que os editores mais longínquos se querem dar a conhecer, aperceber nos emos rapidamente, aqui, que hoje os lusófonos estão mais tímidos que os seus confrades anglófonos. Efeito da crise, provavelmente. Assim, poucos títulos em português, com os antigos combatentes menos bem aceites pelos leitores, chegados à saturação das memórias de uniforme, após anos de abundância. Rarefação não significa descida perigosa na qualidade dos relatos. Prova disso, no género epistolar, as Cartas do Mato de Daniel Gouveia oferecem, para além de uma qualidade literária inegável, um testemunho bastante pouco frequente sobre a situação militar no distrito do Zaire (Tomboco, Lufico, Zau-Évua, São Salvador, Quiximba, em 1968 1969) e sobretudo na fronteira nordeste da Baixa de Cassange (Marimba, Mangando, Brito Godins, em 1969-1970). Dezoito meses numa zona com reputação de perigosa no Zaire angolano são seguidos de um «descanso» num setor onde a influência da upa-FNLA é espasmódica, apesar dos seus campos do outro lado do Cuango, a fronteira fluvial e internacional. É aí que se revela a originalidade do livro. Vemos o nosso jovem alferes Gouveia, a «autoridade suprema» de Mangando, passar a fronteira para consolidar as suas relações amigáveis com a autoridade zairense francófona, muito perto das cataratas do Imperador Guilherme. Ficamos a saber que as tropas auxiliares angolanas (os Hungos dos Grupos Especiais) atravessaram o rio e destruíram um campo da upa (início de 1969?) matando perto de 150 (?) pessoas, mulheres e crianças incluídos (p. 131). Talvez seja muito exagerado, mas é claro que a inépcia e a incapacidade dos quadros da upa, já patentes no Zaire e no Uíge, próximos de Kinshasa, se intensificou nesta região descentrada. Curiosamente, o autor1 nada nos diz acerca da revolta da Baixa de Cassange em 1960.1961.

Esta periferia do distrito de Malange é tudo, salvo um terreno onde a beneficência do colonialismo português se faz sentir «há séculos», como Gouveia a estudara no liceu. Os mitos saem caro quando acordamos. Recomendamos este livro, onde o alferes Gouveia entrou na realidade da história colonial, como centenas de milhares de soldados metropolitanos. Um livro útil porque desmistificador.

Mas se pretendemos um olhar exterior sobre os conflitos que se desenrolaram na África portuguesa, agora simplesmente lusográfica, devemos procurá lo junto de um editor britânico. Em poucos anos, a Helion & Company, editora de todo o género de obra sobre os confrontos armados no mundo (desde as campanhas do exército sérvio ao corpo expedicionário de Sua Graciosa Majestade em qualquer canto «perdido» do globo, passando pela batalha de Kursk na URSS ou o Vietname), tornou-se o mais generoso fornecedor de textos acerca de Angola e Moçambique em guerra. Vamos dedicar-nos a apresentar cinco livros surgidos no primeiro semestre de 2014-2015.

O primeiro deve-se à pluma de um professor de ciências e história militares nos Estados Unidos, lusófilo não só tocado pela Graça como o maior admirador incondicional das Forças Armadas Portuguesas (Exército, Marinha e Força Aérea em África nas suas campanhas de 1961-1974), das quais se tornou o historiador mais profundo do ponto de vista técnico. Inútil explicar que esta posição abriu lhe os arquivos pertinentes em Lisboa e assegurou-lhe a entrada nos estados-maiores atualmente em funções. Para ele, apenas conta a visão do alto comando e os relatórios redigidos pelos oficiais superiores em Bissau, Luanda e Nampula. Jamais cita as dezenas de testemunhos publicados pelos oficiais subalternos nem, a fortiori, os dos simples mobilizados que estavam contra a guerra colonial. Esta ausência pode pesar perigosamente sobre os seus juízos, mas reconhecemos-lhe as novidades que traz à avaliação do panorama militar do Estado Novo, que não hesita em declarar tecnicamente vencedor, apesar da modéstia de recursos em homens e materiais; tem razão em compará-lo com a riqueza das forças americanas no Vietname, por exemplo.

John P. Cann2 entrega-nos um estudo fundamental sobre a utilização da aviação portuguesa na redução das resistências nacionalistas e sobre o sucesso das contramedidas de resposta aos mísseis soviéticos. Na Força Aérea portuguesa em África havia apenas seis mil homens, dos quais cerca de 1900 paraquedistas em 1973. Examina as operações, nomeadamente na Baixa de Cassange, a propósito das quais destrói a propaganda ultrajante da upa e mesmo do MPLA. Minimiza as perdas dos miseráveis sublevados contra a cotonocracia local. Se é superficial acerca dos acontecimentos de Luanda de fevereiro de 1961, pelos quais responsabiliza apenas o MPLA (questão bem mais complicada e controversa), atribui ao general Kaúlza de Arriaga dons de grande estratega, que a história desmentiu (cf. Operação Nó Górdio). Conhece bem a doutrina portuguesa em matéria de emprego da aviação (nomeadamente a utilização intensiva de helicópteros), inspirada na experiência francesa na Argélia. Os capítulos acerca da Força Aérea na Guiné (pp. 234-281, 422-444) são muito bons, ainda que admita que a defesa antiaérea do PAIGC no Sudeste fosse excelente (ajuda cubana). Devemos lhe a primeira descrição minuciosa das operações aéreas na Guiné.

A secção acerca das operações em Moçambique é também original, mesmo que nunca retenha as críticas formuladas por certas fontes rodesianas. Precisa, entretanto, que em 1974 faltavam pilotos e pessoal de manutenção em terra à Força Aérea. Para Angola, examina em detalhe as operações nos três meses seguintes ao 25 de Abril de 1974 mas, prisioneiro do unilateralismo das suas fontes, avança perigosamente ao escrever que a Revolução dos Cravos teve pouca influência imediata sobre os combates em Angola. Ainda que seja talvez verdadeiro para os paraquedistas, não o é para a infantaria nos vários postos, que já não quer combater. Ficamos a saber que em dez dias, na primavera de 1973, os Strela soviéticos do PAIGC abatem quatro pilotos, cerca de 10 por cento dos comandantes de bordo da Força Aérea na Guiné.

Em resumo, o que fascina John P. Cann é a utilização maximal e a eficácia relativa desta aviação pobre, face a uma ameaça desmoralizante emanada do PAIGC. Mas ao recusar levar em conta a impopularidade do regime e a fadiga operacional dos oficiais no terreno (dos alferes aos capitães), o autor não explica porque é que este exército que considera constantemente vitorioso colapsou como um castelo de cartas. Como muitos especialistas em muitos domínios que não querem ver senão o que lhes convém enquanto técnicos, o autor é um pioneiro e devemos felicitá-lo. Mas as suas conclusões são desequilibradas.

Sempre com a mesma editora britânica, veremos a prova dessa asserção numa espécie de reportagem em que a imagem tem tanta importância quanto os textos, do antigo redator-chefe da agência de notícias sul africana Argus Africa News Service, Wilf Nussey3. O que lhe interessa é documentar e demonstrar a artificialidade da «vitória» das Forças Armadas Portuguesas em Angola e Moçambique, a partir do momento (25 de abril de 1974) em que uma parte dos oficiais já não quer combater por colonos que vivem de mitos e, nalguns casos, desprezam os próprios defensores. É o tempo da grande barafunda batizada, justamente, de «a confusão». Dez repórteres fotográficos sul-africanos, muito mais críticos e lúcidos do que John P. Cann em relação à combatitividade dos seus ex aliados portugueses, cobrem o caos angolano e moçambicano em 1974-1975.

A seleção de fotografias e de descrições de cenas mostra a incapacidade dos movimentos nacionalistas e das tropas portuguesas para conter as vagas de violência étnica e racial que desembocarão na guerra civil em Angola, e no êxodo apocalíptico da grande maioria dos colonos dos dois territórios. Os repórteres frequentavam mais os musseques de Luanda do que a sarabanda de oficiais portugueses que desabam, impotentes, nas duas antigas pérolas do Império. Trágico e único fim de ciclo para um poder colonial está documentado primeiro em Moçambique (Mueda nos finais de 1973; o colapso em Lourenço Marques e Tete; a tentativa de rebelião de certos colonos em Lourenço Marques e na Beira em setembro de 1974; a proclamação da independência, a 25 de junho de 1975). A seguir em Angola (a situação em Luanda a partir de 4 de novembro de 1974: a chegada da FNLA; de 8 de novembro de 1974: a chegada do MPLA; de 10 de novembro de 1974: a chegada da UNITA). Depois, no início de 1975, começam as batalhas nos musseques e o caos. Argus fica até 11 de novembro de 1975 na capital. Finalmente, em janeiro de 1976, faz a última visita a Savimbi, no Huambo. O álbum não cobre a guerra civil e internacional. Passemos imediatamente para um texto que tudo tem para agradar a John P. Cann.

Trata de super-heróis: não de génios de estado-maior mas de homens-rã sul-africanos. Iron Fist from the Sea4é um livro consagrado a uma pequena elite: apenas 45 homens nos 480 membros das Recces (unidades de reconhecimento das forças especiais sul-africanas) de 1978 a 1989. Na grande tradição britânica e dos comandos bóeres, são sabotadores-fantasma que chegam de submarino e destroem as instalações inimigas nos portos e arredores. Os adversários de Pretória são Angola, Moçambique, Tanzânia, a SWAPO namibiana, o ANC sul-africano, Cuba e a URSS. Estes soldados, que surgem do mar e da noite, intervêm em Cabinda, Luanda, Lobito, Namíbia, Maputo, Beira, Quelimane e Dar es Salaam. Depósitos petroleiros, navios que transportam material, armamento e munições, pontes de caminhos de ferro ou rodoviárias, bases de opositores, pilões elétricos, o braço da Marinha sul-africana é muito longo. Com uma profusão de detalhes antes desconhecidos, entramos na engrenagem da colaboração entre a Marinha e as Recces, os preparativos, a execução das missões e a recuperação dos sabotadores. Mais do que seguir passo a passo cada golpe de mão, limitar-nos-emos a dois exemplos extraídos do Sul de Angola. Em junho de 1986, no porto de Namibe (antiga Moçâmedes), a África do Sul, na versão «Os dentes do mar», regista (pp. 332-357) a sua maior vitória. Um punhado de homens-rã coloca minas-ventosas nos flancos imersos de três navios de carga, dois soviéticos e um cubano. O cargueiro enviado por Fidel Castro afunda-se e os navios soviéticos encalham na baía. Os três juntos transportavam trinta mil (?) toneladas de armas, materiais e munições. Os dois autores estimam que o êxito da ação tenha impedido em 1986 o sucesso da grande ofensiva das autoridades de Luanda contra a UNITA. É, de facto, um dos elementos a ter em conta.

Mas é muito longe do mar que observamos o mais inesperado desta série de operações mais ou menos secretas (pp.393-403): um ataque «fluvial» confiado a estes «super-homens anfíbios» contra a ponte sobre o Cuíto, que assegurava a sobrevivência do cordão umbilical logístico das FAPLA (forças armada do MPLA) entre o Cuíto Cuanavale e Mavinga, e a ofensiva dos blindados do MPLA contra as bases de retaguarda da UNITA, na Jamba, no Sudeste de Angola. Eram necessários mergulhadores excelentes, chegados por terra mas capazes de nadar com 15 a 20 quilos de explosivos às costas, durante dezenas de quilómetros num rio rápido, infestado de crocodilos. O comando, indetetado, chega debaixo da ponte e consegue fazer explodir alguns pilares. Os soldados das FAPLA, alertados, metralham os nadadores que se escapam a jusante. Um oficial é ferido, enquanto um suboficial é mordido por um crocodilo, que o arrasta para o fundo. O soldado está prestes a afogar-se quando consegue miraculosamente acertar com um punho num olho do monstro, que o larga: 40 metros do tabuleiro da ponte (90 metros) caem no rio em agosto de 1987. Os soviéticos conseguirão construir um passadiço, mas será necessário esperar mais um ano para que a ponte provisória suporte o peso dos tanques das FAPLA.

Entrados no pitoresco, continuemos nesta veia da mesma editora, com os Bushmen Soldiers5, sobreviventes dos massacres de represálias cometidos pelo MPLA, depois da evacuação dos portugueses e do «desaparecimento» dos Flechas do Sul de Angola.

Os sul-africanos compreenderam rapidamente que ao salvá-los do extermínio e ao incorporá-los num batalhão (e depois dois) muito especial, iriam recuperar as suas qualidades de pisteiros e de combatentes aguerridos. É bastante irónico para um exército então criticado por defender o apartheid. Mas o pragmatismo sul-africano acabara por admitir que quanto mais numerosas e eficazes fossem as unidades de mercenários, menos perdas registariam os soldados brancos. Na literatura destinada ao grande público anglófono da África Negra insiste-se no «romantismo» dado a estas «relíquias inocentes», resgatadas da idade da pedra. Jan Uys, autor do livro, não os comandou mas, a partir de testemunhos de antigos oficiais e dos próprios bosquímanos, retraça o seu percurso até à evacuação de Angola com as últimas tropas sul-africanas, em 1988. Nessa data, incluindo as famílias, seriam um grupo de 4500 pessoas. A transferência da Namíbia para a África do Sul, o quase abandono pelas novas autoridades militares pós-apartheid, o declínio social (alcoolismo, pequena criminalidade, etc.), constituem um episódio negro destes joguetes da história das relações internacionais na África Austral. Ao acumular detalhes sobre a estranheza inicial e a adaptabilidade de seres inteligentes, o autor conseguiu tornar simpáticas e patéticas estas vítimas atuais de uma outra forma de apartheid, não codificado mas tão pernicioso como o anterior. A propósito, o apartheid não existia nos serviços da pide, mas não nos recordamos de ter lido como é que o – ou os criadores – dos Flechas lhes «deram folga» em 1974. Quem os «desmobilizou»? Onde e como?

Battle of the Lomba, 19876de David Mannall é uma ilustração anti-heroica dos desgastes infligidos no psiquismo dos jovens obrigados a combater contra sua vontade, como os portugueses entre 1961 e 1974. São recordações de um soldado, promovido aos 19 anos a comandante de um carro de combate (Ratel) envolvido na maior batalha de blindados desenrolada na África Austral, e constituem um livro importante. Estamos longe das mises en scène montadas por Jonas Savimbi na Jamba para impressionar os financiadores. Na batalha do Lomba (afluente do Cuando), a 3 de outubro de 1987, o pelotão do autor, composto por 12 tanques, carros de combate de 18 toneladas, demoliu em grande parte a 59.ª brigada blindada (T.55) do MPLA. Foi uma catástrofe para as FAPLA. Saído incólume, Mannall sentiu que se tornara, aos 19 anos, um herói «invencível». O sentimento não iria durar muito tempo. A 8 de outubro, dois MIG cubanos atacaram os tanques sul-africanos mal dissimulados numa floresta. As bombas caídas de paraquedas fizeram detonar uma tonelada de explosivos antes de tocar no solo, esventrando qualquer Ratel atingido. A imagem de um amigo agonizante durante horas será suficiente para o assombrar durante os vinte e quatro anos que durará a sua depressão.

Angola nunca afrouxou facilmente o domínio sobre a psique de centenas de milhares de antigos combatentes. De 1961 aos nossos dias, vencedores e vencidos sofreram torturas mentais mais ou menos reconhecidas e tratadas na África do Sul, em Portugal e em Cuba, mas ignoradas ou negligenciadas na maioria dos sobreviventes africanos, carne para canhão involuntária, esquecida pelas autoridades atuais. Guerras coloniais primeiro, guerras pelo poder a seguir, terão feito poucos mortos entre os brancos que as conduziram; mas a sua inutilidade terá causado bem mais devastação mental ao retardador do que as sepulturas contadas nos cemitérios militares. Outra prova? O autor de Back to Angola7, Paul Morris, é um psicoterapeuta branco, anglófono de 45 anos, que sofre de stress pós-traumático, devido à participação como tanquista na grande batalha de blindados que se digladiavam a 40 50 metros de distância que acabámos de evocar. O seu relato não se enquadra exatamente na clientela que compra os livros da Helion & Company; em junho de 2012, a título curativo, começa um périplo solitário de bicicleta pelo Sul de Angola. Não poderá revisitar o lugar do confronto de outubro de 1987, ainda não desminado. Aproveita, mesmo assim, para se lançar numa virulenta denúncia das SADF, o exército do apartheid. Vai ainda mais longe e reabilita as autoridades angolanas (em primeiro lugar, a polícia), em geral desacreditadas pela grande maioria dos autores estrangeiros que viajaram para o Sul de Angola após a independência.

É, portanto, um herói ao contrário que deseja purgar a sua vida, os seus medos, a sua angústia e a sua memória do sentimento de culpabilidade com que convive há mais de um quarto de século, por ter participado, malgré lui, numa guerra iníqua.

Como um converso a um credo ou a uma causa, qualquer que ela seja, «acrescenta» e apresenta os cubanos e os antigos guerrilheiros da SWAPO e do ANC a uma luz constante e absolutamente positiva. Viaja lentamente e está sempre muito próximo das populações rurais angolanas que o acolhem, não como um antigo inimigo, mas como um amigo estrangeiro a quem se oferece em geral hospitalidade. Em menos de um mês, terminará o raid de Menongue ao Cuito Cuanavale, a nova Estalinegrado dos cubanos MPLA, e efetuará um grande circuito passando por Lubango (ex-Sá da Bandeira) e o país ovambo, para voltar a entrar na Namíbia. Este texto, apesar das lacunas e do carácter terapêutico, é original, pois contrasta com a superficialidade ou os preconceitos políticos de numerosos autores sul-africanos. É o anti-Paul Theroux de viagem no Sul de Angola!

A viragem iniciada com este autor torna se realmente radical com uma sul-africana e o seu Fractured Lives8. Entramos no domínio da propaganda política a favor do ANC e contra o apartheid. Oriunda de uma grande família de militantes comunistas de origem russa, e interditada de viver na África do Sul, instala-se no exílio na Grã-Bretanha em 1965. Nesta obra refaz o percurso de documentarista (=cineasta que realiza filmes documentais) e exalta o papel dos países e dos governos da Linha da Frente que lutam contra o «Mal» nos anos 1980 e no início dos anos 1990. O diário relata as numerosas viagens no Zimbabué, na Tanzânia, em Angola e em Moçambique onde realizou filmes para a causa emancipadora. Todavia, o comprometimento marxista não a torna completamente cega aos desvios e às falhas na moral revolucionária de muitas autoridades na periferia do bastião branco. Vemo-la batalhar contra a incapacidade, a venalidade e a preguiça proverbiais que caracterizavam os funcionários da informação em Luanda, que dirigiam os repórteres e os cineastas estrangeiros que visitavam a Angola oficial do MPLA, entre 1981 e 1995. Não o escreve, mas podemos comparar com os serviços da propaganda da UNITA, um modelo de eficácia e de competências militarizadas – e aterrorizadas –, encarregados de montar as mises en scène de Savimbi na Jamba. Aprecia mais a Frelimo que os «parasitas» de Luanda. E provavelmente desiludida com a orientação dos hierarcas do ANC depois da subida ao poder em Pretória, redirigiu o combate para causas humanitárias a favor das crianças e dos deslocados, e a favor da sobrevivência dos elefantes e dos rinocerontes vítimas das máfias internacionais.

Aos leitores que queiram penetrar as cortinas de fumo que durante muito tempo ocultaram o funcionamento, as derivas e as lutas intestinas de um movimento nacionalista sul-africano no exílio, recomendamos fortemente a autópsia impiedosa de Stephen Ellis. Analisa a partir do interior (dos arquivos e de certos testemunhos) a evolução do ANC, largamente impotente sobre o terreno militar, refugiado nos estados da Linha da Frente (na Tanzânia, na Zâmbia e sobretudo em Angola e em Moçambique). A venerável formação era incapaz de ameaçar seriamente a máquina de guerra do apartheid, mas mostrava se relativamente eficaz na propaganda exterior. O seu combate era moralmente justificado pela ignomínia de que a população não branca era vítima na África do Sul. O autor de External Mission9não procura a provocação, mas não parece que conserve muitos admiradores no seio do Partido Comunista Sul-Africano, se é que alguma vez os teve. Demole sistematicamente a versão oficial do ANC e mostra que Mandela era um membro – morno – do Comité Central do PC sul-africano (de maioria inicial branca), até o PC pôr o pé no ANC, no início partidário de uma luta não-violenta. Foi então o PC que, com os seus cavalos de Troia, empurrou o ANC para a luta armada e a criação do braço militar (o Umkonto we Sizwe, abreviado MK). De acordo com Ellis, os verdadeiros estrategistas do ANC eram os comunistas brancos como Joe Slovo e seus congéneres, descendentes de emigrantes russos (ou mais propriamente de estirpe lituana). A questão racial aparece no coração das disfunções do ANC no exílio. O texto é muito claro e observamos uma estranha semelhança com o MPLA. São os minoritários (aqui, os brancos anglófonos, os mestiços e os indianos) que detêm os lugares de comando, e as tropas são fornecidas pelos africanos negros (em vinte e oito anos, mais de dois mil membros serão treinados na URSS). Para um público lusófono, tudo o que diz o autor a propósito da abertura, em 1976, dos campos e das bases em Angola e em Moçambique é esclarecedor. Purgas, comissários políticos, corrupção, cisões, intervenção das FAPLA contra os motins nos campos, execuções, tráfico de diamantes, de droga, de marfim, recrutamento de criminosos para o MK, não combatividade (menos de uma centena de mortos contra a UNITA), etc.; o quadro é devastador para o ANC e explica bem, em certa medida, os males atualmente apontados não só na África do Sul como na Angola independente. Mas Mandela impediu que se cometesse o erro fatal de Angola: deixar desenraizar quase totalmente o motor branco dos serviços e da economia de um país maior e já complexo.

Dos nacionalistas sul-africanos no exílio passaremos facilmente aos nacionalistas namibianos – muito maioritariamente ovambo – em guerra contra o exército sul-africano SADF, a partir das bases também em Angola. Martha Akawa10 defendeu a tese na Universidade de Basileia e, muito naturalmente, foi acolhida no programa das publicações do centro de investigação local, organicamente consagrado à documentação sobre a Namíbia. A autora segue uma acentuada inclinação feminista cada vez mais na moda nas universidades do mundo ocidental. Demonstra que as mulheres desempenharam um papel capital na SWAPO, pelo menos na propaganda exterior, enquanto no interior eram sexualmente exploradas pelos oficiais, pelos quadros e pela polícia política da organização. Fala bastante dos abusos sexuais, em especial nos campos, prisões e bases angolanos. Dá abundantes exemplos e detalhes, apesar das declarações destinadas à opinião internacional, «para inglês ver»11. Tudo isto faz estranhamente lembrar as práticas correntes nos campos dos nacionalistas do Zimbabué, implantadas em Moçambique ou mesmo, posteriormente, na UNITA de Savimbi. O que quer que seja que pensemos das atividades militares do MPLA entre 1966 e 1974, a literatura que lhes é consagrada é bastante avara em pormenores destes. Talvez as normas evangélicas e marxistas (até certo ponto) que o enquadramento do MPLA tenta aplicar nos seus maquis constituísse um freio às tendências libidinosas dos guerrilheiros. Ou talvez a censura e a autocensura dos camaradas jornalistas não deixasse passar as queixas das mulheres. Martha Akawa não hesitou em passar a barreira e o quadro da discriminação sexual não deixa ficar bem a SWAPO, durante a luta e depois da independência. É uma obra que vai provavelmente suscitar polémica em Windhoek, o que é saudável.

Menos controverso, o papel das igrejas protestantes no nascimento e evolução da Frelimo (e, em particular, de Eduardo Mondlane) é examinado por um antigo missionário em Moçambique (Seminário de Ricatla). O tema não é inteiramente novo; todos os especialistas parecem estar de acordo em estimar que os antepassados da Frelimo beberam as referências iniciais nas missões protestantes do Sul de Moçambique, desde pelo menos o final do século XIX. Contudo, antes da tese de Robert Faris12 ninguém tinha tratado tão profundamente os laços primeiros quadros da Frelimo, na sua maioria sulistas, à cabeça de um partido nacionalista em que os guerrilheiros eram, antes de tudo, nortistas pouco ou nada tocados por uma qualquer evangelização, que não, marginalmente, católica. A situação mudará evidentemente quando a luta ganhar o Niassa e, depois, o vale do Zambeze. Esta tese não pretende dar um panorama completo da Frelimo, mostra simplesmente o impacto do religioso no seu primeiro presidente e na sua conduta política.

De um local de edição já muito afastado (o Oregon) de Moçambique, vamos agora e audaciosamente saltar para o Pacífico com o que consideramos ser o primeiro livro neozelandês sobre Angola em guerra ou, simplesmente, Angola. É preciso olhar sempre para além dos horizontes rotineiros e os editores e o público português deveriam livrar se das dobras do manto do infante D. Henrique para, com ou sem crise, recordarem ou aprenderem que no fim do século XIX havia mais emigrantes portugueses na Oceânia (no Havai) do que em Angola. Elusive Peace13tem como autor um oficial reformado das Forças Armadas neozelandesas com uma carreira bastante eclética: começou como conservador de museu e historiador militar. A sua autobiografia complica-se se soubermos que publicou um livro crítico e muito contestado acerca dos soldados neozelandeses durante a Segunda Guerra Mundial que fez remoinhos no país. Profere acusações fortes e graves a propósito dos erros cometidos por alguns oficiais superiores. No pequeno mundo corporativo do exército local o livro caiu mal e o autor foi acusado de nunca ter comandado uma verdadeira batalha. Para se desculpar e, talvez, conseguir uma promoção (em 1998 era, mesmo assim, tenente-coronel), pede para ver uma guerra real. É enviado como observador das Nações Unidas para a implementação do Protocolo de Lusaka, assinado entre o MPLA e a Unita.

E aí não se trata de fazer figuração na rodagem de um filme retirado dos romances de Tolkien: estamos na Angola da guerra civil a partir de abril de 1998. McLeod começa por Saurimo, na província da Lunda Sul, vigiado pela burocracia de pesadelo da ONU: o mosaico internacional do recrutamento pretendido pelos estados-membros traduz-se muitas vezes na repartição das tarefas e das missões segundo o grau de incompetência ou de esperteza dos observadores (não armados). Na época o MPLA detinha o Nordeste e a UNITA preparava-se para retomar as hostilidades. O leitor admitirá que fazer sair um kiwi do casulo dos décors dos adaptadores de Tolkien para o mergulhar nos horrores dos massacres de um Terceiro Mundo diamantífero é uma experiência brutal. Só os mercenários sul africanos, antigos soldados das forças especiais, estarão física e psicologicamente preparados para sobreviver e vencer neste inferno como em 1994. Se lhes pagarem! O autor quer defender a reputação do seu país neste meio minado, em que bandidos, prospetores de diamantes e unidades regulares da UNITA fazem a lei nas aldeias. O diário de McLeod é extremamente detalhado e durante umas boas centenas de páginas vamos segui lo nas patrulhas (em helicópteros soviéticos) a partir de Saurimo e depois de Malange, onde comanda a base dos observadores da ONU. Malange – pró-MPLA – foi sitiada e deixada a morrer à fome durante seis meses em 1993. A cidade está ainda em convalescença, os polícias do MPLA embriagam-se com frequência e os ataques às aldeias na Baixa de Cassange são progressivamente retomados. Uma patrulha de capacetes azuis é desviada pela UNITA e os mortos começam a acumular-se em volta do tenente-coronel, que se interroga sobre a pertinência e as consequências das suas ordens. A dúvida instala se e não mais o deixará: terá estado à altura? O historiador, o homem das exposições nos museus, não é um destes «durões» que amam a guerra. E esta foi retomada no verão de 1998 em todos os lados, nas duas províncias da Lunda (diamantes), para onde é novamente transferido. A malária deixa o prostrado. Não suporta o espetáculo do acumular de cadáveres de aldeãos massacrados pela UNITA. Está à beira de um ataque de nervos e no fim das forças, e fica muito contente por transmitir as suas funções e regressar à Nova Zelândia em dezembro de 1998. Começa então uma luta contra o stress pós-traumático, que perderá. Acabará mais calmamente como coronel e adido militar em Djakarta e Díli, e depois Ancara.

O seu livro deve fazer companhia ao de Mannall e ao de Morris (sem o arrependimento, no caso deste último) pelas extensões curativas. Mas para o leitor, seja ou não historiador, o interesse reside na ilustração da incapacidade da ONU para regular seja o que for em conflitos insanáveis como a guerra civil e tribalista em Angola, que durará até à morte de Savimbi, em 2002, especialmente porque o autor viveu-a no novo feudo da UNITA. Quanto a Savimbi, não tinha depressões, sobretudo não na Lunda e em Malange, que constituíam o seu último reduto e para o qual McLeod escreveu um livro patético e único, e por isso importante, mesmo que nos chegue dos antípodas.

 

NOTAS

1GOUVEIA, Daniel – Cartas do mato. Correspondência pacífica de guerra, Lisboa: Âncora Editora, 2015, 167 páginas, fotografias a preto e branco.

2CANN, John P. – Flight Plan Africa. Portuguese Airpower in counterinsurgency 1961-1974, Solihull (Reino Unido): Helion & Company, 2015, XXIX-447 páginas, fotografias a preto e branco, índice.

3NUSSEY, Wilf – Watershed. Angola and Mozambique A Photo History: The Portuguese Collapse in Africa, 1974-1975, Solihull (Reino Unido): Helion & Company; Pinetown (África do Sul), 30º South Publishers, 2014, 144 páginas, cerca de duas centenas de fotografias a preto e branco.

4STEIN, Douw & SÖDERLUND Arnè – Iron Fist from the Sea. South Africa’s Seaborne Raiders 1978-1988, Solihull (Grã-Bretanha): Helion & Company; Rugby, GG Books UK, 2015, XX-420 páginas, fotografias a preto e branco e a cores, índice.

5UYS, Ian – Bushmen Soldiers. The History of 31, 201 &203 Battalions During the Border War 1974-90, Solihull (Reino Unido): Helion & Company; Rugby, GG Books UK, 2014, 344 páginas, fotografias a preto e branco, índice.

6MANNALL, David – Battle of the Lomba, 1987. The day a South African Armoured Battalion shattered Angola’s last mechanized offensive. A crew commander’s account, Solihull (Reino Unido): Helion & Company, 2014, XXXIV-212 páginas + 16 páginas de fotografias e postais a cores, fotografias a preto e branco.

7MORRIS, Paul – Back to Angola. A Journey from War to Peace, Capetown: Zebra Press/Random House Struik, 2014, Xii-259 páginas + 8 páginas de pranchas a cores, índice.

8STRASBURG, Toni – Fractured Lives, Athlone (África do Sul): Modjaji Books, 2013, 314 páginas, fotografias a preto e branco. Distribuído na Europa por Africa Books Collective em Oxford.

9ELLIS, Stephen – External Mission. The ANC in Exile, 1960-1990, Londres: Hurst & Company, 2012, XII-384 p. + 16 páginas de pranchas a preto e branco, índice.

10AKAWA, Martha – The Gender Politics of the Namibian Liberation Struggle, Basileia: Basler Afrika Bibliographien, 2014, XVI-230 páginas, fotografias a preto e branco.

11Em português no original, N. da T.

12FARIS, Robert – Liberating Mission in Mozambique. Faith and Revolution in the Life of Eduardo Mondlane, Eugene (Oregon): Pickwick Publication, 2014, XI-218 páginas.

13MCLEOD, John – Elusive Peace. A Kiwi Peacekeeper in Angola, Wellington (Nova Zelândia): Steele Roberts Publishers, 2015, 232 páginas, fotografias a cores, índice.

 

TRADUÇÃO: MARTA AMARAL

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