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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.49 Lisboa mar. 2016

 

40 ANOS DA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA: DINÂMICAS INTERNAS E EXTERNAS

 

A Constituição portuguesa e a separação de poderes em matéria de política externa

The Portuguese Constitution and the separation of powers concerning foreign policy

 

José Matos Correia

Licenciado em Direito (Ciências Jurídico-Políticas) pela Universidade Lusíada de Lisboa. Tem em preparação o seu doutoramento, com uma investigação que incide sobre «As Relações Externas na Ordem Constitucional Portuguesa». Professor auxiliar convidado das faculdades de Direito e de Ciências Humanas da Universidade Lusíada de Lisboa, onde leciona as disciplinas de Direito Constitucional, Direito Internacional Público e Organizações Internacionais. É advogado especialista em direito constitucional, exercendo a sua atividade na CMS/Rui Pena & Arnaut.

 

RESUMO

O artigo visa apreender, ainda que de forma breve, os contornos do estatuto de que em Portugal gozam, no quadro da ação externa do Estado (e também das relações externas da defesa), os diversos órgãos de soberania. Tal avaliação pressupõe uma indagação no plano da estática jurídico-constitucional mas requer, ao mesmo tempo, a compreensão da evolução que quarenta anos de prática política têm permitido. Referência especial merece, ainda, o desafio específico que o princípio da separação de poderes enfrenta hoje, por força das dinâmicas próprias induzidas pela integração na União Europeia.

Palavras-chave: Constituição, separação de poderes, política externa, União Europeia.

 

ABSTRACT

The article aims to capture, albeit briefly, the statute of the Portuguese sovereign institutions in the context of the external action of the state. Such an assessment requires an inquiry into the legal and constitutional dimension but entails at the same time, an understanding of the evolution that forty years of political practice have allowed. Special mention should also be made to the specific challenge that the principle of separation of powers is facing today, by virtue of their own dynamics induced by integration into the European Union.

Keywords: Constitution, separations of powers, foreign policy, European Union.

 

INTRODUÇÃO1

O problema da repartição de competências entre os órgãos de soberania, que com frequência se coloca a propósito da análise da configuração do sistema semipresidencialista2, assume especial acuidade naquilo que à ação externa do Estado respeita3. Com efeito, se no que toca à dimensão interna os textos constitucionais são, de um modo geral, mais expressos, o tratamento que neles é dado à condução da ação externa é habitualmente menos elaborado, muitas vezes remetendo para conceitos vagos, abrangentes ou mesmo indeterminados. Uma opção que tende a gerar, em quaisquer situações, indesejadas e indesejáveis dúvidas interpretativas, mas que dá lugar a dificuldades acrescidas no caso dos sistemas de governo construídos na base de equilíbrios mais delicados ou mais instáveis, como é precisamente o caso do semipresidencialismo.

Não surpreende, por isso, que os elementos determinantes para a compreensão, em concreto, de cada semipresidencialismo, se delimitem em larga medida através dos comportamentos dos agentes político-constitucionais – os quais dependem, por sua vez, do «estilo» de cada um e das condições concretas de exercício dos poderes que lhe são cometidos – e não apenas em função da terminologia usada ao nível dos normativos constitucionais e legais.

Não queremos, com isto, significar que o desiderato daqueles agentes seja o de construir, por força de uma interpretação extensiva – ou, porventura, até para lá dela –, uma evolução «nominalista», neste domínio, do texto constitucional4. O que entendemos, isso sim, é que, ainda que desenvolvendo comportamentos dentro do âmbito da «normatividade», estes acabam por conduzir a resultados que objetivamente os favorecem e que, nessa medida, vão para além daquela que é a intenção expressa no texto constitucional.

Neste particular, o exemplo francês apresenta-se especialmente revelador. De facto, o acréscimo de poderes presidenciais em matéria, por exemplo, de defesa nacional, que deu origem àquilo que Samy Cohen sugestivamente designa por «monarquia nuclear»5, sustenta-se sobretudo em desenvolvimentos de direito ordinário e em concretizações de ordem prática. E, no entanto, a Constituição de 1958 resolve tudo em «duas palavras»6, ao estabelecer no artigo 15.º que o Presidente da República é o chefe dos exércitos. Ora, também a nossa Constituição afirma, de modo até mais compreensivo, que o Presidente da República é o «Comandante Supremo das Forças Armadas» (artigo 120.º), mas dificilmente a diferença de estatuto entre os dois chefes de Estado podia, nesta matéria, ser mais evidente.

É, assim, no quadro de preocupações deste teor que importa compreender o tema da ação externa do Estado português. E a verdade é que, tratando-se de uma área de importância decisiva, lidando com questões consideradas de especial melindre, por natureza envoltas numa reserva fundada na necessidade de não fragilizar a posição de um Estado perante terceiros, rodeada por um véu de misticismo próprio de assuntos que parecem escapar à compreensão do cidadão comum, a ação externa colocou-se, aburbe condita, à margem da lógica habitual da ação política interna, conduzindo inclusive, nos estados de direito democráticos, à flexibilização da interpretação do princípio constitucional da separação de poderes7.

Este cenário ajuda, aliás, a compreender o tradicional reconhecimento de uma especial autonomia às entidades políticas responsáveis pela sua definição e condução e à consequente fuga – tolerada, se não mesmo aceite – aos indispensáveis mecanismos de controlo típicos de uma democracia: por um lado, a fiscalização política a cabo do Parlamento, que não seria desejável porquanto questionaria o indispensável secretismo aqui exigido; por outro, o controlo jurisdicional que com frequência é eludido, por via da índole política da generalidade dos atos em que a ação externa se traduz e que dificulta sobremaneira a sua sindicabilidade.

Noutras paragens jurídico-políticas, como os Estados Unidos, o cenário surge-nos significativamente distinto: é que, independentemente da centralidade do poder «real» do Presidente, a repartição de poderes concretiza-se e a sujeição a mecanismos apropriados de controlo constitui a regra, bastando para isso lembrar o papel decisivo das comissões de Relações Externas e das comissões de Forças Armadas do Congresso (em particular do Senado)8. Diferentemente, na generalidade dos sistemas políticos (incluindo no nosso), a preeminência do Executivo vai de par com as constantes exceções ao escrutínio do seu comportamento. Liberdade e discrição: eis, pois, as palavras de ordem vigentes.

Consolidou-se, destarte, nestas paragens constitucionais, uma espécie de domínio reservado do poder executivo – consoante as situações, ao nível do Chefe de Estado ou ao nível governamental (aqui com destaque particular para a preeminência do primeiro-ministro) – que torna cada vez mais difícil a sua sujeição a um «normal» controlo jurídico-político (quando não chega mesmo a inviabilizá-lo materialmente). Uma situação propiciada, renove-se, pela própria natureza que a política externa apresenta, mas que tende a acentuar-se em países que, como Portugal, conheceram longos períodos de regime autocrático e têm, consequentemente, uma prática e, até, uma cultura democrática historicamente menos enraizadas.

Apreender, ainda que de forma breve, os contornos do estatuto de que em Portugal gozam, neste quadro, os diversos intervenientes, pressupõe que se empreenda uma indagação no plano da estática jurídico-constitucional. Mas requer que, em simultâneo, se compreenda o(s) sentido(s) de evolução que quarenta anos de prática política têm permitido consolidar. Será essa a orientação, dual, da análise que a seguir se empreenderá.

 

O PLANO DA ESTÁTICA JURÍDICO-CONSTITUCIONAL (E JURÍDICO-LEGAL)

No que à dimensão externa respeita, a Lei Fundamental portuguesa atribui ao Presidente da República as funções de representação da República, de garante da independência nacional e de comandante supremo das Forças Armadas (artigo 120.º). E concretiza (alíneas a), b) e c) do artigo 135.º), conferindo lhe poderes concretos, ainda que de natureza partilhada: a nomeação, sob proposta do Governo, dos embaixadores e enviados plenipotenciários9e a acreditação10 dos representantes diplomáticos estrangeiros; a ratificação de tratados internacionais, depois de devidamente aprovados; o decretamento da guerra em caso de agressão efetiva ou iminente e a feitura da paz, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República11.

Por seu turno, no domínio da defesa nacional, o exercício de funções como comandante supremo das Forças Armadas (alínea a) do artigo 134.º) tem como consequências, inter alia, a presidência do Conselho Superior de Defesa Nacional (alínea o) do artigo 133.º), bem como a nomeação e exoneração, sob proposta do Governo, do chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, do vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (existindo) e dos chefes do Estado-Maior dos três ramos (nos dois últimos casos, ouvido o chefe do Estado Maior General das Forças Armadas) – alínea p) do artigo 133.º.

É debatido, entre nós, o tema da eventual inconstitucionalidade da atribuição, ao Presidente da República, de competências que não estejam expressamente previstas no catálogo traçado pela Lei Fundamental12. Ainda assim, não tem merecido contestação a alocação de poderes que lhe é feita em sede de Lei de Defesa Nacional (Lei Orgânica n.º 1 B/2009, de 7 de julho, alterada pela Lei Orgânica n.º 5/2014, de 29 de agosto – adiante identificada como LDN) a qual, v.g., lhe confere o poder de assumir, em conjunto com o Governo, a direção superior da guerra (alínea c) do n.º 2 do artigo 9.º), algo que, a nosso ver, não pode ser lido em sentido literal, mas antes analisado com particular cuidado13.

De referir, ainda, que o Presidente da República tem o direito de ser informado pelo primeiro-ministro (sobre o qual impende o correlativo dever) acerca dos assuntos respeitantes à condução da política do País, seja na sua dimensão interna, seja na dimensão externa (alínea c) do n.º 1 do artigo 201.º)14.

Nota ainda para a possível intervenção, na área externa, se bem que no desempenho de funções enquanto órgãos consultivos do Presidente da República, do Conselho de Estado e do Conselho Superior de Defesa Nacional.

No que toca ao Conselho de Estado, para além da sua obrigatória audição em matéria de declaração de guerra e de feitura de paz (alínea c) do artigo 145.º), cabe-lhe aconselhar genericamente o Presidente da República no exercício das suas funções, a pedido deste (alínea e) do artigo 145.º)15. Daí que tenha sido, por vezes, chamado a pronunciar-se sobre questões relacionadas com a dimensão externa, como sucedeu, em 2003, com a questão do Iraque16.

O Conselho Superior de Defesa Nacional, órgão de consulta no âmbito específico da defesa nacional e das Forças Armadas (artigo 274.º da Constituição e n.º 1 do artigo 16.º da LDN), tem poderes de pronúncia17, v.g., em matéria de tratados internacionais sobre questões de defesa (alínea e) do n.º 1 do artigo 17.º da LDN) ou no que toca ao envio daquilo que tem vindo a ser designado por «forças nacionais destacadas» (alínea g) do mesmo normativo). Esta última constitui, de resto, matéria relativamente à qual é frequente aquela pronúncia, uma vez que pelas suas reuniões passa, quer a apreciação do plano anual de envio de contingentes militares (seja no âmbito da ONU, da nato ou da UE/PESC), quer as suas frequentes alterações.

No que toca à Assembleia da República e no plano do controlo político, os poderes que lhe são alocados pela Lei Fundamental podem dividir se em quatro categorias:

  • fiscalização geral da atividade do Governo e da Administração (alínea a) do artigo 162.º);

  • autorização para a declaração da guerra e para a feitura da paz (alínea l) do artigo 161.º);

  • intervenção nas questões relacionadas com a União Europeia (UE), seja para efeitos de pronúncia, nos termos da lei, sobre as matérias pendentes de decisão em órgãos daquela que incidam na esfera da sua competência legislativa (alínea n) do artigo 161.º), seja para efeitos de acompanhamento e apreciação, também nos termos da lei, da participação nacional no processo de construção europeia (alínea f) do artigo 163.º);

  • acompanhamento, igualmente nos termos da lei, do envolvimento de contingentes militares e de forças de segurança no estrangeiro (alínea i) do artigo 163.º).

Dando cumprimento àquelas imposições constitucionais, a Lei n.º 43/2006, de 25 de agosto (modificada pela Lei n.º 21/2012, de 17 de maio), regula hoje o acompanhamento, apreciação e pronúncia, por parte do Parlamento, no âmbito do processo de construção europeia. E a Lei n.º 46/2003, de 22 de agosto, delimita os termos do acompanhamento, pela Assembleia da República, do envolvimento de contingentes militares e de forças de segurança portugueses no estrangeiro18. Em ambos os casos, porém, embora detalhando-se as formas diversas de intervenção da Assembleia da República nos dois domínios e assim se reforçando os seus poderes de escrutínio (sobretudo no que à dimensão europeia respeita, tema a que adiante se regressará), não são conferidas a esta efetivas competências decisórias que possam condicionar, de forma expressa, a margem de atuação do Governo.

Nota merece, ainda, o reforço dos poderes jurídicos do Parlamento em matéria de Conceito Estratégico de Defesa Nacional, decorrente da revisão da LDN ocorrida em 2014. Assim, enquanto anteriormente cabia à Assembleia da República, apenas, realizar um debate sobre as grandes opções desse conceito, prévio à aprovação pelo Governo do próprio Conceito Estratégico, doravante passa a competir-lhe a aprovação dessas grandes opções (nova redação do n.º 2 do artigo 7.º).

Já no domínio normativo, a intervenção mais relevante do Parlamento situa-se no plano da aprovação de convenções internacionais, pois que muito limitadas são as circunstâncias que conduzirão à edição de leis relacionadas com a ação externa do Estado19. Aí, cabe-lhe, nos termos da alínea i) do artigo 161.º da Constituição, a aprovação de todos os tratados internacionais20, independentemente, portanto, da matéria a que respeitem, bem como de acordos internacionais, mas não de todos: apenas daqueles que versam matéria da sua competência legislativa reservada ou dos que o Governo entenda submeter à sua aprovação21.

Não cabe, porém, dúvida que, de acordo com o nosso quadro constitucional, o lugar central em matéria de ação externa é ocupado pelo Governo. Trata-se, aliás, de consequência lógica do facto de a opção da nossa Lei Fundamental ter sido a consagração de um Presidente da República que não exerce qualquer tipo de funções executivas, isto é, para recorrer a uma imagem que provém da monarquia constitucional e que, entretanto, se consagrou, um Presidente que «preside», mas que não governa.

A norma-chave para compreender o «lugar constitucional» do Governo é, sem dúvida, o artigo 182.º, que o define, numa lógica bifuncional, como o órgão de condução da política geral do País e como órgão superior da Administração Pública. Ora, como sugere Jorge Miranda, «a condução da política geral do País compreende quer a política interna, quer a política externa, uma e outra, pelo seu entrosamento cada vez mais forte e nítido na época atual, indissociáveis e necessariamente congruentes. Governar não se compadece com fracionamentos ou compartimentações»22. E daí, por exemplo, que a dimensão externa da ação do Estado seja, prima facie, da responsabilidade do Executivo, trate-se da política externa strictu sensu, trate-se das relações externas da defesa.

Este é, de resto, um sentido interpretativo confirmado por várias disposições de âmbito legal. Na primeira dimensão, para isso aponta o artigo 1.º da Lei Orgânica do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que o qualifica como o departamento governamental responsável por formular, coordenar e executar a política externa portuguesa. No que à segunda dimensão toca, parecem especialmente relevantes alguns dispositivos da LDN, como o n.º 2 do artigo 10.º (e a alínea d) do n.º 2 do artigo 13.º), que prevê que o emprego das Forças Armadas, e de outras forças, quando integradas em operações militares no exterior do território nacional é, apenas, precedido de comunicação fundamentada dirigida pelo primeiro-ministro ao Presidente da República, ou da alínea q) do artigo 11.º, que estabelece competir à Assembleia da República, tão-só, a apreciação da decisão governamental de envolvimento de contingentes ou forças militares nacionais no estrangeiro (a qual lhe deve ser previamente comunicada), bem como o acompanhamento dessa mesma participação. Posta a questão noutros termos: do lado do Governo, decisão; do lado do Presidente da República e da Assembleia da República, informação e acompanhamento.

Para além daquele que lhe confere a responsabilidade pela condução da política geral do País, são contudo escassos os normativos constitucionais que diretamente se referem à dimensão externa da atuação do Governo. Ainda assim, merecem destaque a alínea b) do n.º 1 do artigo 197.º, que lhe comete o poder de negociar e ajustar convenções internacionais, e a alínea c) seguinte, que lhe outorga competência para aprovar acordos internacionais que não sejam da competência do Parlamento ou que a este entenda não submeter.

No plano dos órgãos de soberania, há ainda que referir as competências dos tribunais. Como é óbvio, não porque assumam poderes de intervenção no plano externo, mas na medida em que as suas decisões se podem aí projetar. E isto em dois patamares: no domínio da fiscalização da constitucionalidade, uma vez que a Constituição portuguesa prevê a possibilidade de controlo preventivo, com possíveis repercussões negativas no processo de vinculação internacional do Estado, caso a pronúncia seja no sentido da inconstitucionalidade (n.º 1 do artigo 278.º e artigo 279.º); no que toca à fiscalização sucessiva abstrata, que pode conduzir à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (artigo 281.º e 282.º) ou à fiscalização concreta, uma vez que os tribunais gozam do poder-dever de recusar a aplicação de normas inconstitucionais (artigo 204.º), algo que é apto a gerar, em ambas as situações, problemas de responsabilidade internacional ou de desrespeito pelo direito europeu.

As intervenções mais visíveis nesse domínio prendem-se, contudo, com um tipo específico de fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade: a das propostas de referendo (n.º 8 do artigo 115.º). De facto, a natureza obrigatória desse controlo conduziu já à inviabilização de propostas de realização de referendos nacionais que tinham sido objeto de aprovação parlamentar: referimo-nos às consultas incidentes, em 1998, sobre o Tratado de Amesterdão23 e, em 2004, sobre o Tratado Constitucional24. Tais decisões negativas estiveram, de resto, na origem da revisão constitucional levada a cabo em 2005, cujo âmbito se limitou à introdução do novo artigo 295.º que, em exceção a quanto se dispõe no n.º 3 do artigo 115.º, veio permitir a realização de referendo sobre a aprovação qua tale de tratados, embora apenas no âmbito da construção e aprofundamento da UE.

Referência derradeira a uma questão que decorre da natureza unitária regional do Estado português: trata-se das competências constitucionalmente cometidas às regiões autónomas dos Açores e da Madeira em matéria de ação externa. Assim, de acordo com o artigo 227.º, são-lhes conferidos poderes para25: participar nas negociações de convenções internacionais em matérias que lhes digam diretamente respeito26; estabelecer, de acordo com as orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa, cooperação com outras entidades regionais estrangeiras e participar em organizações que visem fomentar o diálogo e a cooperação inter-regional; pronunciar-se (seja a pedido, seja por iniciativa própria), sobre questões da competência dos órgãos de soberania que lhes digam respeito, bem como na definição das posições do Estado português no âmbito da construção europeia, em matérias do seu interesse específico; participar na construção europeia, mediante representação nas respetivas instituições regionais e nas delegações envolvidas em processos de decisão no âmbito da UE, sempre que em causa estejam matérias que lhes digam respeito.

Não se trata, como facilmente se apreende, de poderes substantivos de decisão. Mas a sua atribuição não deixa de representar uma real possibilidade de influência em processos externos, além de que, no caso específico das negociações de convenções internacionais, caso os direitos de participação não sejam respeitados, pode mesmo gerar-se um problema de inconstitucionalidade.

 

A DINÂMICA JURÍDICO-POLÍTICA: CERTEZA, EQUÍVOCOS E INTERROGAÇÕES

Independentemente de, aqui ou ali, poderem ocorrer naturais dissonâncias no que diz respeito a aspectos concretos da nossa política externa ou das relações externas de defesa, não se registam hoje significativos conflitos, nestes domínios, entre os diferentes órgãos de soberania. Mas nem sempre assim foi na história constitucional recente. Com efeito, sobretudo no período de coabitação entre o Presidente Ramalho Eanes e o Governo da Aliança Democrática, pode mesmo dizer-se que um dos principais pontos de atrito se centrou no domínio da política externa, ao ponto de se chegar a falar numa espécie de diplomacia paralela presidencial. E os exemplos foram múltiplos, entre os quais se podem citar a questão da invasão soviética do Afeganistão, as querelas em torno da nomeação e demissão de embaixadores, a visita a Portugal de alguns chefes de Estado estrangeiros (com particular destaque para a do Presidente James Carter) ou a realização de algumas visitas presidenciais (nomeadamente à Itália e à Noruega)27.

Em tempos mais recentes, algumas divergências foram publicamente transparecendo, como sucedeu no consulado do Presidente Mário Soares, em particular com a questão do processo de paz em Angola, queixando-se o Chefe de Estado de ter sido completamente colocado à margem do mesmo. E, no mandato do Presidente Jorge Sampaio, as dissensões em torno da invasão do Iraque em 2003 existiram e são do conhecimento público, ao ponto de o Presidente ter manifestado a sua oposição ao envio de forças militares portuguesas, o que levou o primeiro-ministro Durão Barroso, numa lógica de compromisso, a optar pela presença de um contingente da GNR.

Trata-se, sem dúvida, de episódios relevantes, naquilo que poderíamos considerar como um processo de delimitação recíproca das fronteiras das competências constitucionais e que se presenciou, também, no domínio da política interna. Mas, insista-se, a sua ocorrência não põe em causa uma tendência geral – e cada vez mais seguida – que é a de os órgãos de soberania se concertarem na defesa do interesse nacional externo.

No plano da interpretação jurídico constitucional continua, porém, a não existir unanimidade acerca deste tema, nomeadamente na definição dos termos da relação entre o Presidente da República e o Governo. E por isso nos deparamos, por vezes, com leituras extensivas do acervo de poderes presidenciais28que, do nosso ponto de vista, se alicerçam no recurso – ainda que não assumido – à teoria dos poderes implícitos29. Trata-se de uma linha argumentativa que leva ao extremo a subjectivização interpretativa da Lei Fundamental, ao pretender deduzir do conceito de representação da República – constante do artigo 120.º da Constituição – um conjunto de novos poderes e competências que não são compatíveis com a arquitetura constitucional de separação de poderes. E que, de resto, tem por desiderato alargar o campo de intervenção presidencial, evidentemente em detrimento dos demais órgãos de soberania – maxime o Governo –, por essa via colocando em crise o próprio equilíbrio subjacente às opções inseridas na nossa Lei Fundamental.

Há que dizê-lo, com clareza: se semelhante linha analítica não encontra sustentação na própria conformação que a Lei Fundamental dá ao sistema de governo, ela suscita ainda maiores reservas quando analisada à luz da evolução histórica dos poderes presidenciais, nomeadamente face à rutura que o documento de 1976 quis introduzir na orientação instituída pela Constituição de 1933 – mais especificamente pelo seu artigo 81.º n.º 7 – que estabelecia competir ao Presidente da República a representação do Estado, a direção da política externa (que a atual Lei Fundamental entregou ao Governo, nos termos do citado artigo 182.º) e o ajuste e negociação de convenções internacionais (também transferido para o Governo, nos termos da já referida alínea b) do n.º 1 do artigo 197.º). E daí que se deva concluir, como o faz Cristina Queiroz, que «o Presidente da República não detém, entre nós, o foreign affairs power»30, com todo o rol de evidentes consequências que daí decorrem, no que diz respeito à contração das suas possibilidades jurídico-constitucionais de intervenção.

Assim, independentemente da evolução que as condições políticas concretas determinaram, e que esteve na base de uma evidente diluição dos poderes presidenciais ao longo de todo o período do Estado Novo, não pode ser pura e simplesmente ignorada a profunda restrição que a Constituição contempla, quando retira ao Presidente da República as funções de direção e de negociação e lhe deixa tão-só a de representação31. Dito de outra forma: no plano da ação externa do Estado, não é possível formatar uma juridicamente sustentada configuração dos poderes presidenciais, sem valorar adequadamente todos esses dados. Daí que importe partir de um pressuposto básico: o de que o artigo 135.º da Constituição é, ele próprio, em larga medida – e embora não a consumindo integralmente – o desenvolvimento e concretização da noção de representação da República.

Com isso em mente, há que rejeitar a identificada tendência para uma certa gaulização do sistema de governo, no que à política externa diz respeito. De facto, o nosso semipresidencialismo afasta se do francês, em larga medida, quando coloca o assento tónico das competências presidenciais de conformação política na vertente interna, conferindo lhe o poder de demitir o Governo (alínea g) do artigo 133.º e n.º 2 do artigo 195.º) – prerrogativa de que o residente do Eliseu não goza; reconhecendo lhe significativa latitude jurídica na escolha do primeiro-ministro (alínea f) do artigo 133.º e n.º 1 do artigo 187.º); dotando-o do direito de veto, por vezes com eficácia absoluta (n.º 4 do artigo 136.º) – o que também não é reconhecido ao Chefe de Estado gaulês; ou concedendo lhe o direito exclusivo de decidir quanto à convocação de referendos nacionais e regionais (n.º 1 do artigo 115.º).

Em simultâneo, porém, a Lei Fundamental de 1976 desvaloriza conscientemente o papel do Presidente da República em matéria de ação externa, acantonando o em poderes muito mais limitados – que, de resto, e como já se disse, revestem normalmente a natureza de poderes partilhados32–, ao passo que a V República faz do Presidente a verdadeira sede do poder, tanto em matéria de política externa quanto de política de defesa.

Mas, se a Constituição portuguesa atribui ao Governo, sem equívocos, a condução também da política externa, é evidente, também, que isso não significa que a este caiba definir, de forma isolada, as grandes opções dessa área de ação. Desde logo, porque estas têm de constar, obrigatoriamente, do seu programa (artigo 188.º), a ser objeto de imperativa apreciação – e necessária não rejeição – pela Assembleia da República33.

Depois, porque se encontra permanentemente sujeito à fiscalização política desta. E não esquecendo, ainda, como foi antes sublinhado, que o texto fundamental impõe ao primeiro ministro o dever de manter o Presidente da República informado acerca dos assuntos respeitantes à condução da política externa.

Em suma: cada órgão de soberania tem constitucionalmente as suas funções e, por isso mesmo, os planos não podem ser confundidos – quem dirige a política externa é o Governo, que assume, pela sua condução, plena responsabilidade política. Assim, e fora dos casos em que a Constituição expressamente atribua uma competência de atuação a um outro órgão de soberania, deve entender-se – numa lógica de subsidiariedade – que o detentor de um determinado poder relevando da área de ação externa é o Governo. E, nessa linha, parece igualmente impor se a ideia de que a intervenção presidencial ou do Parlamento só deverá ocorrer caso se encontre diretamente titulada no texto constitucional e esteja em concordância com a filosofia geral da arquitetura do nosso sistema de governo.

A esta luz, afiguram-se-nos como especialmente infundadas sugestões como as apontadas por Gomes Canotilho e Vital Moreira, para quem caberia ao Presidente da República o direito de estar presente em todas as cerimónias que envolvam a representação formal do Estado ou, ainda, a sua participação, eventualmente acompanhado pelo primeiro-ministro e/ou pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, em todas as instâncias internacionais em que estejam em causa os grandes interesses nacionais34.

É que, no nosso entendimento, surge como por demais evidente que a liderança presidencial das delegações do Estado português, por exemplo, nas reuniões do Conselho Europeu – à semelhança daquilo que acontece com a França – não pode ser sustentada no conceito de representação da República, que o artigo 120.º da Constituição afirma. E isso na medida em que aí está em causa, até pela índole dos poderes que aquele órgão europeu exerce, o desenvolvimento de uma ação que releva de tarefas governativas, constitucionalmente não partilhadas, entre nós, pelo Presidente da República35.

Na mesma linha, não deixa igualmente de causar perplexidade o facto de os mesmos autores alicerçarem a sua posição favorável ao alargamento do estatuto do Presidente da República no facto de a este estarem alocados específicos e concretos poderes de intervenção na área externa, por exemplo, para nomear os embaixadores e os enviados extraordinários, o que não sucederia em nenhum outro domínio (artigo 133.º e artigo 135.º)36. É que, entre outras situações, o Presidente da República nomeia o primeiro ministro (alínea f) do artigo 133.º) e os demais membros do Governo (alínea h) do mesmo normativo) e não intervém diretamente na atividade governativa; nomeia o presidente do Tribunal de Contas (alínea m) do artigo 133.º) e não participa na verificação da legalidade das contas públicas; nomeia o procurador-geral da República (mesma norma) e não interfere no exercício da ação penal. Por que razão, então, seria legítimo concluir que a titularidade do poder – que partilha com o Governo – de nomear embaixadores e proceder à respetiva acreditação, deve ser encarada como traduzindo a existência de poderes especiais de ação no domínio da política externa?

A este propósito, seja-nos permitido deixar aqui uma breve indagação acerca de algumas vicissitudes registadas pelo percurso do atual texto constitucional, que se afigura útil para lançar mais alguma luz sobre a ilegitimidade da tese que pretende estender os poderes presidenciais. Especial significado assumem, em tal contexto, os trabalhos da revisão ordinária que teve lugar em 1989, por se ter aí assistido à expressa rejeição de todas as propostas que visavam alargar, ou até meramente precisar, o conteúdo das competências do Presidente da República no que à ação externa respeita. Foi esse, v.g., o destino da proposta avançada pelo Partido Comunista Português, que visava incluir uma nova alínea no artigo 135.º (à época 138.º), estabelecendo caber-lhe a representação externa da República, o acompanhamento da negociação e do ajuste de quaisquer acordos internacionais e a pronúncia sobre as grandes orientações de Portugal no plano internacional; ou da proposta do Partido Socialista, que pretendia a inclusão de uma disposição definindo que lhe competiria representar o Estado na ordem externa37.

Particularmente relevante se afigura, contudo, a recusa de aceitar, na ocasião, ideias que pretendiam reconhecer ao Presidente da República capacidade para participar na própria definição da política externa38. E algumas intervenções então produzidas são especialmente claras quanto aos motivos que estiveram subjacentes a tal atitude, bem como ao entendimento dos poderes presidenciais maioritariamente sufragado, de acordo com o qual

a atribuição de competências reforçadas de intervenção ao Presidente da República significaria, concomitantemente, uma perda de capacidade de fiscalização da Assembleia da República, uma vez que, na repartição de atribuições entre órgãos de soberania, não compete à Assembleia da República fiscalizar os actos do Presidente, mas meramente os do Governo»39.

Até porque, sublinhava-se um pouco mais adiante, ao se aludir à natureza do sistema de governo:

se admitíssemos, porventura, em matéria de política externa, como em matéria de defesa nacional, um acréscimo de competência do Presidente da República, sempre isso significaria uma diminuição inaceitável das atribuições de fiscalização do Parlamento e um manifesto desequilíbrio de poderes»40.

Curiosamente, ao mesmo tempo que por vezes se insiste, em matéria de ação externa, numa leitura dos poderes que a Constituição não apoia, ignora-se a existência de desvios significativos entre aquilo que o direito positivo estatui e o que a prática sistematicamente indica. Nessa medida, o problema coloca-se assim, muitas vezes, mais no campo da Prudentia e menos no domínio da Scientia, tornando indispensável encontrar soluções adequadas a compreender esses desafios colocados pelo agir concreto.

Justifica-se, assim, plenamente, uma observação que, de forma atenta e detalhada, ilustre, v.g., os aspectos dinâmicos da vinculação internacional do Estado. De facto, qual é, aí, a verdadeira influência do Presidente da República e não, apenas, a que decorre dos poderes formais de intervenção? Quantas vezes o Presidente da República recusou – ou impôs condições – a ratificação de um tratado internacional ou a assinatura do ato interno de aprovação de um acordo em forma simplificada? Que poderes substantivos exerce em matéria de formulação de reservas? E a Assembleia da República? Vai ela para lá da ritual aprovação dos textos dos tratados e dos acordos? Quantas vezes, por exemplo, o Parlamento obstaculizou a vinculação a instrumentos internacionais livremente negociados pelo Governo? E que papel substantivo desempenha, igualmente, na formulação de reservas?

Pelo que representa em termos de desvalor do papel do Parlamento, afigura se aqui especialmente emblemático o episódio relativo à vinculação ao Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional. Com efeito, sem que o Governo alguma vez tenha informado, formal ou mesmo informalmente, o Presidente da República ou a Assembleia da República, o Estado português participou nas negociações, assinou o texto e desencadeou o processo da respetiva vinculação, remetendo o documento para o Parlamento41, apesar de este conter normas materialmente desrespeitadoras da Lei Fundamental, facto que, só por si, obviava a essa vinculação, a qual só foi possível após o processo de revisão constitucional extraordinária de 200142.

Por outro lado, também no plano do estrito controlo político, é manifesta a subalterni zação do papel do Parlamento em matéria e relações externas. Com isso não se quer dizer, evidentemente, que este não disponha dos habituais meios de fiscalização e que a eles não recorra. De facto, seja ao nível do plenário, seja ao nível das comissões – de Negócios Estrangeiros, Cooperação e Comunidades Portuguesas, de Defesa Nacional e de Assuntos Europeus, com natural destaque para a primeira –, o Governo é submetido ao escrutínio que a sua responsabilidade política determina. E também o recurso a mecanismos como as perguntas e os requerimentos dos deputados é, aqui, frequente.

A questão é, porém, a da real utilidade dessas intervenções no condicionamento ou, ao menos, na influência sobre a ação do Executivo que, como a prática demonstra, é aqui bastante mais reduzida que nas áreas internas da governação. E, mesmo no plano formal, o modo de funcionamento da Assembleia tem sido claramente diferenciado, uma vez que, em assumida fuga à regra geral de transparência e de abertura dos trabalhos parlamentares, até há pouco tempo os trabalhos das comissões de Negócios Estrangeiros e de Defesa Nacional – e apenas delas – corriam sempre à porta fechada. E ainda hoje, embora de forma ocasional, tal ocorre, numa exceção que só conhece paralelo no funcionamento das comissões parlamentares de inquérito.

À luz destas circunstâncias particulares, ligadas à conceção especial das matérias internacionais a que anteriormente se fez referência, não surpreende, por isso, que com pouca frequência a agenda parlamentar seja ocupada por temas substantivos de natureza externa – com exceção dos assuntos relacionados com a UE, tema a que adiante se voltará – e que, mais ainda, sejam escassos os exemplos em que o desencadear dos mecanismos de efetivação da responsabilidade política do Governo tenha na sua origem matérias dessa natureza. A situação mais relevante em que essa dimensão se colocou terá provavelmente sido a questão da invasão do Iraque e do apoio português à política norte-americana, que conduziu à apresentação de quatro moções de censura, por parte do Partido Socialista43, do Partido Comunista Português44, do Bloco de Esquerda45e do Partido Ecologista «Os Verdes»46ao Governo de Durão Barroso, todas elas rejeitadas pela maioria parlamentar.

Tudo analisado, é porventura a propósito das discussões, relativamente frequentes aliás, de votos47 ou, em menor número, de projetos de resolução de recomendação ao Governo, que as questões externas adquirem maior visibilidade ao nível dos trabalhos do Plenário. Mas tais iniciativas visam, habitualmente, a criação de espaços retóricos de crítica política e de afirmação de posições partidárias alternativas, naturais e desejáveis até no plano parlamentar, mas com pouco ou nenhum efeito prático48.

Dir-se-á, contudo, que se está a comparar dimensões incomparáveis, pois que uma coisa é a titularidade de uma determinada competência e outra, bem diversa, são as condições do seu exercício. Evidentemente que sim. Tal não invalida, contudo, que assim se defina um certo padrão de evolução do sistema de governo e do concreto acervo dos poderes dos diversos órgãos de soberania, o qual pode, no limite, conduzir a uma interpretação evolutiva do real conteúdo das respetivas competências – ex facto oritur jus – e alterar a posição relativa em que se encontram. Circunstância em que não pode nunca olvidar-se, porém, que no domínio do direito público rege um princípio de indisponibilidade das competências, e que, como indica Jorge Miranda, nenhuma autoridade do Estado pode «dispor delas, transmiti las a outra autoridade ou conformá-las de modo diferente»49.

 

OS DESAFIOS ESPECÍFICOS COLOCADOS PELA UNIÃO EUROPEIA

A sobrevalorização do papel e da função do Executivo está hoje sobremaneira ligada ao facto de a defesa dos interesses nacionais repousar, em grau elevado, na capacidade de desempenho externo do Estado. Assiste se aqui, há que reconhecê lo, a uma situação de contornos inovadores – não na sua essência, mas na dimensão que assume, bem como na forma e nos procedimentos que envolve. É certo que a política externa e a política de defesa constituíram sempre o «núcleo duro» da soberania estadual, entendida esta, na aceção originária e clássica que lhe deu Jean Bodin, como um poder que, sendo supremo na ordem interna, é, em simultâneo, independente na ordem internacional. Mas não é menos certo que o sentido de evolução das funções do Estado e o desenvolvimento de distintos processos políticos e económicos internacionais trouxeram, nuns casos mais que noutros, significativas mudanças às concretas condições fácticas de atuação dos órgãos de soberania.

Para este statu quo contribuíram, em larga medida, os movimentos de globalização induzidos, quer pelos novos processos tecnológicos, quer pelas consequências do apaziguamento ideológico que caracterizou a parte final do século xx e se prolonga, evidentemente, na atual centúria. Notar-se-á, contudo, que este não é um fenómeno inteiramente novo. Em prévios momentos históricos, percursos comparáveis estiveram na origem de inovações fundamentais no plano do direito, tanto interno quanto internacional. Atente-se, a título meramente exemplificativo, na contemporaneidade entre os descobrimentos portugueses, a evolução do processo de centralização do poder real e a luta pela afirmação do princípio da igualdade entre os estados, mais tarde formalmente reconhecido com a Paz de Vestefália. Ou observem-se as consequências da revolução industrial, seja na disseminação de novos movimentos políticos de tipo democrático, seja na construção das primeiras formas de cooperação internacional.

Mau grado o seu indesmentível interesse, trata-se de dimensão teórica que não há aqui espaço para explorar. Na verdade, as dúvidas e interrogações que aquela nova realidade suscita relevam ainda, essencialmente, do universo da ciência política e da ciência das relações internacionais. E o objeto das presentes reflexões situa-se no plano da ciência jurídica, prima facie no domínio do direito constitucional.

Tal linha de raciocínio não colhe, contudo, quando se equacionam as consequências do processo de integração europeia, uma vez que este apresenta já influências plenamente percetíveis, formal ou informalmente, no que ao direito e à prática constitucional portuguesa respeita50.

Ao dizê-lo, não queremos apenas referir-nos às mais visíveis manifestações dessa tendência, como aquela que se prende com a aceitação da supremacia política do processo europeu face ao quadro constitucional português – algo que teve tradução concreta na efetivação de revisões «preventivas» da Constituição, com o objetivo implícito (1982 e, embora menos, 1989) ou explícito (1992), de a subordinar ao direito comunitário, ou até (2005) com o fito de resolver, de uma só vez, qualquer eventual incompatibilidade entre os tratados europeus e a Lei Fundamental, por via da decisão referendária.

Se a relevância específica desses momentos não se questiona, muito mais importantes se revelam, contudo, as mudanças induzidas, na concreta conformação do princípio da separação de poderes, pelos mecanismos próprios de decisão da UE. E isto na medida em que o aprofundamento desse processo integratório tem originado, de forma sistemática, uma progressiva «virtualização» do equilíbrio da relação constitucionalmente tecida entre os diferentes órgãos de soberania, afetando especialmente o estatuto e os poderes dos parlamentos nacionais. De resto, foi sem dúvida a constatação dessa realidade que levou a que, no quadro do Tratado de Lisboa, se tenha querido consagrar algumas soluções destinadas a inverter ou, ao menos, a minimizar tal situação (v.g., através do Protocolo n.º 1, relativo ao papel dos parlamentos nacionais na UE e do Protocolo n.º 2, relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, ambos figurando atualmente em anexo ao Tratado sobre o Funcionamento da UE).

Deparamo-nos aqui com uma tendência que é geral a que Portugal não podia ficar evidentemente imune, mas que, no nosso caso, assume contornos muito relevantes, já que os contornos específicos da arquitetura política europeia – predominância do Conselho (Europeu e de Ministros) e aplicabilidade direta das principais fontes de direito derivado – estão na base de um muito significativo reforço da posição governamental e de uma correspondente degradação progressiva do real papel da Assembleia da República (para já não falar do estatuto do Presidente da República).

A consagração das normas constantes da alínea n) do artigo 161.º e da alínea f) do artigo 163.º, ambos da Constituição, ou a aprovação da já referida Lei n.º 43/2006, de 25 de agosto51apontam, é certo, na direção correta. Mas estão longe de consagrar uma linha de orientação apta a contrariar, de forma consistente, tal processo de decaimento dos poderes parlamentares. Vale a pena, por isso, deixar aqui um olhar, ainda que necessariamente breve, sobre os mecanismos que aquele diploma legal institui.

Assim, o exercício das competências parlamentares baseia-se, antes de mais, num processo regular de consultas com o Governo (n.º 2 do artigo 1.º), lançando sobre este a obrigação de fornecer, em tempo útil, informação sobre os assuntos e posições a defender no plano da UE, bem como sobre as propostas em discussão e as negociações em curso (n.º 1 do artigo 5.º).

A Assembleia da República pronuncia se sobre decisões incidentes na esfera da sua competência legislativa reservada, que se encontram pendentes de decisão em órgãos da ue, bem como sobre outras iniciativas das instituições europeias, procedendo à análise do seu conteúdo e assegurando, quando disso for caso, o respeito pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade (artigos 2.º e 3.º). Trata se, assim, de uma intervenção sobretudo política, mas sem consequências jurídicas diretas, uma vez que se traduz na emissão de pareceres.

Nessa linha, a maior visibilidade política do acompanhamento e apreciação da participação nacional na UE decorre, fundamentalmente, da realização obrigatória de um conjunto de debates com o Executivo, seja no Plenário – como é o caso do debate, com a participação do primeiro-ministro, previamente a cada reunião do Conselho Europeu (alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º), ou dos debates, com a participação do Governo, no início de cada presidência (alínea b) do mesmo normativo), sobre o Estado da União (alínea c) do mesmo normativo), ou sobre os instrumentos de governação económica, designadamente o Programa de Estabilidade e Crescimento (alínea d) do mesmo normativo) –, seja na Comissão de Assuntos Europeus – a propósito, v.g., da apreciação do programa de trabalho da Comissão Europeia (alínea e) do mesmo normativo) ou posteriormente à realização de cada Conselho Europeu (alínea f) do mesmo normativo). É indiscutível que tais momentos, normais e justificados no âmbito da prestação de contas do Governo face a um órgão perante o qual politicamente responde, permitem à Assembleia da República manter, não só um olhar atualizado sobre os desenvolvimentos no âmbito da UE mas, igualmente, sobre as posições aí defendidas por Portugal. Não é menos certo, contudo, que, tal como a prática se tem encarregado de comprovar, a possibilidade efetiva de o Parlamento influir, de modo relevante, na definição da nossa política face à Europa é bastante limitada. Até porque, diferentemente daquilo que sucede noutros estados-membros, a Assembleia da República, nos termos da lei que ela própria editou, optou por desconsiderar soluções que lhe possibilitariam impor ao Governo orientações que este ficasse obrigado a cumprir no âmbito dos processos de decisão internos da UE, maxime no Conselho52.

À luz de quanto fica dito, não nos parece exagerado afirmar que aquilo que hoje se encontra em causa não é apenas – e tal seria, por si só, muito significativo – um reequacionamento da posição relativa dos órgãos do poder político, no que diz respeito à intervenção no plano da política europeia. As consequências que o sistema jurídico-constitucional enfrenta são muito mais profundas: em causa pode estar uma verdadeira revisão constitucional implícita (ou sub-reptícia), geradora de um progressivo esvaziamento da reserva política e legislativa parlamentar.

Para reforçar essa ideia, atente-se num exemplo simples: caso um ato legislativo se inclua no universo das matérias previstas nos artigos 164.º e 165.º, terá obrigatoriamente de provir da Assembleia da República, exceto se, no segundo caso, se recorrer à figura da autorização parlamentar, a qual terá sempre, contudo, de delimitar os parâmetros, materiais e temporais, a que a posterior intervenção legiferante do Governo ficará submetida (n.º 2 do artigo 165.º). Mas, se uma decisão sobre matéria idêntica for adotada no plano europeu, a intervenção parlamentar esfuma-se, porque de três, uma: ou a participação nacional não existe, enquanto tal, por se tratar, por exemplo, de uma decisão proveniente da Comissão Europeia; ou a decisão é assumida, com amplíssima discricionariedade, pelo Governo, agindo no contexto do Conselho; ou a decisão é adotada pela maioria-regra que os tratados preveem, que é, como se sabe, a maioria qualificada, e ela será vinculativa apesar do voto contrário nacional que pode até resultar, eventualmente, de um entendimento comum entre o Executivo e o Parlamento (e, até, com o Presidente da República). E, no final da linha, existe até a possibilidade de a Assembleia da República ser chamada a introduzir, na nossa ordem jurídica, diretivas de cujo conteúdo discorda ou acerca de cujo teor final nunca foi, sequer, consultada (n.º 8 do artigo 112.º da Constituição).

Afigura-se-nos aqui especialmente reveladora a comparação com aquilo que ocorre, por regra, no âmbito do processo de vinculação internacional do Estado. Aí está reservada à Assembleia da República, ao menos no plano formal, uma palavra determinante, por via da sujeição à sua aprovação de todos os tratados solenes e dos mais significativos acordos em forma simplificada. Mas, no plano das questões europeias, a sua competência é sistematicamente eludida, por via de uma constante assunção de poderes – real e concreta, ainda que não necessariamente jurídico-constitucionalmente tutelada – por parte do Governo.

Quanto fica dito a propósito dos poderes parlamentares pode ser aplicado, mutatis mutandis, ao que sucede em matéria das competências do Presidente da República, uma vez que este se vê, na grande maioria dos casos, privado de qualquer possibilidade de efetiva intervenção que inviabilize a criação de uma obrigação para o Estado português – não pode recusar a ratificação, porque esta não é requerida; não pode impor um veto, porque a promulgação é desnecessária; não pode pedir a fiscalização preventiva, porque a isso obsta a aplicabilidade direta. Ao ponto de autores como Jorge Miranda aludirem, sugestivamente, a uma «relativa obnubilação do Presidente da República»53. Só que, como acima se assinalou, tais modificações jurídico políticas apresentam uma diferença central face a quanto ocorre com a «tradicional» ação externa: se, no domínio da política europeia, estão criados os pressupostos para uma efetiva translação dos poderes constitucionalmente alocados – trata-se de um problema de titularidade real –, no âmbito da política externa strictu sensu observa-se, apenas, uma tolerada distorção do texto constitucional, com o papel fundamental a ser assumido pelo Governo em virtude da passividade demonstrada pelos outros órgãos de soberania no que toca à utilização do acervo de competências de que são detentores – é, portanto, uma questão que apenas afeta as condições específicas de exercício dos seus poderes.

Isto é, assistimos a uma verdadeira desconstrução das soluções constitucionalmente acolhidas em matéria de separação de poderes que é, contudo, muito difícil – se é que mesmo possível – de inverter, uma vez que ela decorre, em larga medida, da própria natureza do processo europeu de decisão. E é altamente provável que futuros aprofundamentos – de resto previsíveis –, desse processo, tendam a agravar o presente desequilíbrio dos pratos da balança.

 

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Data de receção: 11 de janeiro de 2016 | Data de aprovação: 25 de fevereiro de 2016

 

NOTAS

1Sobre o tema geral deste artigo, pode ver-se QUEIROZ, Cristina – «A República e o direito internacional». In Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. A.8 (2011), pp. 9-30; QUADROS, Fausto de, e Gouveia, Jorge Bacelar – As Relações Externas de Portugal (Aspetos Jurídico-Políticos). Lisboa: Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2001; MIRANDA, Jorge – Direito Constitucional III (Integração Europeia, Direito Eleitoral, Direito Parlamentar). Lisboa: AAFDL, 2001, pp. 7-33; Araújo, António de – «Competências constitucionais relativas à Defesa Nacional: as suas implicações no sistema de governo». In MORAIS, Carlos Blanco de, ARAÚJO, António de, e LEITÃO, Alexandra – O Direito da Defesa Nacional e das Forças Armadas. Lisboa: Edições Cosmos/ Instituto de Defesa Nacional, 2000, pp. 135-240; CASTRO, Paulo Canelas de – «Portugal’s world outlook in the Constitution of 1976». In Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. N.º 71, 1995, pp. 469-543; GUEDES, Armando Marques – «Os Iura Maiestatis relativos à atuação externa do Estado». In Polis. Ano I/II, N.º 4/5, 1995, pp. 59-73; CANOTILHO, José Joaquim Gomes, e MOREIRA, Vital – Os Poderes do Presidente da República (Especialmente em Matéria de Política Externa e de Política de Defesa). Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 27 e segs.; COSTA, António – «A Constituição e as relações externas». In COELHO, Mário Batista (org.) – Portugal – O Sistema Político e Constitucional (1974-1987). Lisboa: ICS, 1989, pp. 675-682; MOTA, Henrique – «A direcção da política externa no constitucionalismo português». In Nação e Defesa. N.º 41, janeiro-março 1987, pp. 23-52; MIRANDA, Jorge – «As competências constitucionais no domínio da política externa». In Nação e Defesa. N.º 14, abril-junho de 1980, pp. 35-42.

2Embora a doutrina nacional seja maioritariamente favorável à inserção do sis-tema de governo português na categoria do semipresidencialismo, é sabido que autores há que preferem qualificá-lo como misto parlamentar-presidencial (como sucede com CANOTILHO, José Joaquim Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 597 e segs.). Como resulta do pensamento expresso no texto, incluímo-nos no primeiro grupo (cf. PINTO, Ricardo Leite, CORREIA, José de Matos, e SEARA, Fernando Roboredo – Ciência Política e Direito Constitucional. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2013, p. 363 e segs.). Sobre a questão da natureza do sistema de governo português, pode ver-se, entre muitos outros, NOVAIS, Jorge Reis – Semipresidencialismo (Teoria do Sistema de Governo Semipresidencial). Coimbra: Almedina, 2007; QUEIROZ, Cristina – O Sistema de Governo Semipresidencial. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

3Neste âmbito, não pode esquecer-se que as questões relevando do domínio da política de defesa nacional – a qual sempre teve uma projeção internacional específica, ligada como está ao exercício da soberania – têm vindo a assumir uma crescente importância enquanto instrumento dessa mesma ação externa. Para o comprovar basta atentar, v.g., no frequente envolvimento de contingentes militares portugueses em operações internacionais.

4Os conceitos de «nominalidade» e de «normatividade» usados no texto remetem para os de constituição normativa e de constituição nominal da clássica classificação tripartida das constituições apresentada por Loewenstein (cf. LOEWENSTEIN, Karl – Teoria de la Constitución. Barcelona: Ediciones Ariel, 1964, p. 216 e segs.).

5COHEN, Sammy – La Monarchie Nucléaire: Les Coulisses de la Politique Étrangère sous la Ve République. Paris: Hachette, 1986.

6GICQUEL, Jean, e GICQUEL, Jean-Éric – Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Paris: Paris, Montchrestien, 2009, p. 599.

7CORREIA, José de Matos – «A integração europeia e o papel do Ministério dos Negócios Estrangeiros». In Nação e Defesa. Lisboa. N.º 115, outono-inverno de 2006, p. 31.

8Sobre a questão, pode ver-se HAMILTON, Lee, e TOMA, Jordan – A Creative Tension: The Foreign Policy Roles of the President and the Congress. Washington: Wilson Forum, 2002, ou NATHAN, James A., e OLIVER, James K. – Foreign Policy Making and the American Political System. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994, em especial p. 72 e segs.

9A Lei Orgânica do Ministério dos Negócios Estrangeiros (Decreto-Lei n.º 121/2011, de 29 de dezembro) vai mais longe neste domínio, atribuindo também ao Presidente o poder de nomear outros chefes de missão diplomática (como, v.g., os representantes permanentes junto de organizações internacionais) – n.º 1 do artigo 12.º, algo que, diga-se, tem plena justificação. De resto, na mesma linha, também a LDN confere ao Presidente da República o direito de nomear, sob proposta do Governo, os representantes militares junto de organizações internacionais de que Portugal faça parte (alínea h) do n.º 2 do artigo 9.º).

10Trata-se de manifesto lapso, que tarda em ser corrigido, uma vez que, como é sabido, quem é acreditado é o embaixador do próprio país. No que se refere a representantes diplomáticos estrangeiros, o Presidente da República recebe as respetivas cartas credenciais (sobre o assunto, cf. MATOS CORREIA, José – «Direito das relações externas: o “parente pobre” da Constituição de 1976?». In Polis. Lisboa. Ano VI, janeiro-dezembro de 1999, p. 7 e segs.).

11Até 20 de dezembro de 1999, um domínio havia em que os poderes presidenciais em matéria de relações externas assumiam especial relevo, com consequente restrição das competências do Governo. Referimo-nos à situação do território de Macau. Com efeito, o então n.º 1 do artigo 292.º da Constituição estabelecia competir ao Presidente da República, relativamente a esse território, a prática dos atos previstos no respetivo Estatuto. E este (aprovado pela Lei n.º 1/76, de 17 de fevereiro) atribuía-lhe, v.g., o direito de representar o território nas relações com outros países ou na celebração de tratados e acordos internacionais (n.º 2 do artigo 3.º) ou a responsabilidade pelos assuntos respeitantes à segurança externa (n.º 1 do artigo 12.º) – sobre o tema, cf. PINTO, Ricardo Leite, CORREIA, José de Matos, e SEARA, Fernando Roboredo – Ciência Política e Direito Constitucional, p. 130 e segs. Autores havia que, adicionalmente, reconheciam ao Presidente da República um estatuto especial no contexto da situação particular de Timor-Leste. Por nós, não entendíamos que assim fosse (Ciência Política e Direito Constitucional, p. 144).

12Discussão que arranca da constatação de que, enquanto no caso da Assembleia da República e do Governo, a Constituição inclui uma norma permissiva da ampliação legislativa de competências (respetivamente, a alínea o) do artigo 161.º e a alínea j) do n.º 1 do artigo 197.º), no caso do Presidente da República tal possibilidade não foi acolhida.

13Ver, a este respeito, as considerações expendidas por RODRIGUES, Luís Barbosa – O Primeiro-Ministro. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2012, p. 343.

14No âmbito do dever de informação, deve referir-se que o primeiro-ministro tem, igualmente, a obrigação, desta feita densificada a nível legal, de dar conhecimento ao Presidente da República, diretamente ou através do respetivo secretário-geral, dos assuntos relacionados com a condução da atividade do Sistema de Informações da República Portuguesa (alínea a) do artigo 17.º da Lei n.º 30/84, de 5 de setembro, na redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 4/2013, de 13 de agosto). Tal dever tem uma concreta dimensão externa, uma vez que abrangida está a atividade do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), ao qual cabe, nos termos do artigo 20.º daquele diploma, produzir informações que contribuam para a salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança externa do Estado.

15Sem esquecer que, nas situações em que se encontre em funções um Presidente da República interino, a prática de certos atos com dimensão externa, como é o caso da nomeação de embaixadores, exige sempre prévia audição do Conselho de Estado.

16Sobre a questão, cf. LIMA, Bernardo Pires de – A Cimeira das Lajes. Lisboa: Tinta-da-China, 2013, em especial p. 114 e segs.

17No espaço público, gera-se, com frequência, a ideia de que o CSDN autoriza certo tipo de ações, muito particularmente no que toca ao envio de forças nacionais no quadro de intervenções levadas a cabo por organizações internacionais. Nada de mais enganoso. Os seus pareceres – porque é apenas disso que se trata – são apenas de natureza consultiva, embora não deixem, em muitas matérias, de constituir uma formalidade que terá de ser legalmente respeitada e que, no plano político, reforça a legitimidade da decisão final, atenta a natureza da composição daquele órgão.

18Sobre o tema, pode consultar-se GODINHO, Maria João – «O papel do Parlamento no envolvimento de contingentes militares e de forças de segurança no estrangeiro». In Revista Militar. Lisboa. N.º 2520, janeiro de 2012, p. 117 e segs.

19Apesar de, nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 136.º da Constituição, e por vicissitudes do processo revolucionário que aqui não cabe analisar, os decretos da Assembleia da República que versem sobre relações externas serem dos poucos que requerem, para efeitos de confirmação, maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções.

20Daí que a enumeração que consta desse normativo e que inclui os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, de amizade, de paz, de defesa, de retificação de fronteiras e os respeitantes a assuntos militares, deva ter-se por meramente exemplificativa, como decorre da utilização do advérbio «designadamente». De notar que esta competência foi significativamente alargada por via da revisão constitucional ocorrida em 1997, porquanto até aí cabia--lhe, apenas, em matéria de tratados, a aprovação dos que incidiam sobre matéria incluída na sua competência legislativa reservada.

21Esta possibilidade decorre, claramente, de uma opção mais política do que jurídica. E assenta na ideia de que, em certas situações, pode o Governo entender que um acordo internacional, cuja competência de aprovação se inclua na sua órbita de competências, deve ser submetido à Assembleia da República para, v.g., aí obter um consenso político mais alargado, que reforce as condições da sua aplicação.

22MIRANDA, Jorge, e MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, tomo ii, p. 630.

23Acórdão n.º 531/98 do Tribunal Constitucional.

24Acórdão n.º 704/2004 do Tribunal Constitucional.

25Sobre o tema pode ver-se, entre nós, RAMOS, Rui Moura – «Le Droit de la Coopération Décentralisée au Portugal». In Le Droit Appliqué à la Coopération Interrégionale en Europe. Paris: LGDJ, 1993, p. 155 e segs.

26A mais conhecida situação sendo aquela que diz respeito ao envolvimento dos Açores nas negociações, com os Estados Unidos, a propósito da Base das Lajes.

27Cf. LOPES, Pedro Santana, e BARROSO, José Durão – Sistema de Governo e Sistema Partidário. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, pp. 80-81; FRAIN, Maritheresa – «Relações entre o Presidente e o primeiro-ministro: 1985-1995». In Análise Social. xxx (133), 1995, pp. 653-678.

28É o caso, especificamente, de Gomes Canotilho e Vital Moreira (GOMES CANOTILHO, JOSÉ JOAQUIM, e VITAL MOREIRA – Os Poderes do Presidente da República, em especial p. 27 e segs.).

29Como sugestivamente alerta Jorge Miranda, «a afirmação de poderes implícitos de certo órgão é muitas vezes feita para aumentar a sua influência ou a sua competência em detrimento de outros órgãos. Tal intuito é, porém, inadmissível» (MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, tomo V, p. 58).

30QUEIROZ, Cristina, – O Sistema de Governo Semipresidencial, p. 17.

31Cf. CAMPINOS, Jorge – O Ministro dos Negócios Estrangeiros (Estudo de Direito Internacional Público e de Direito Constitucional Comparado). Lisboa: Moraes Editores, 1977, p. 40.

32A natureza partilhada dos poderes presidenciais em matéria de política externa – e de política de defesa – não lhes retira, evidentemente, relevância, mas condiciona fortemente a dimensão real do seu alcance. Por exemplo, se é ao Presidente da República que cabe ratificar os tratados internacionais, sendo a sua decisão definitiva (e traduza-se ela na ratificação ou na recusa da mesma), é também inquestionável que o Presidente não é chamado a desempenhar qualquer papel no processo da respetiva negociação e conclusão, o que significa que, ainda que entenda que Portugal se deve vincular a uma determinada convenção internacional ou deve desencadear o processo de elaboração de outra, nada lhe é possível fazer perante uma recusa do Executivo. O mesmo se diga, também, da declaração de guerra e da feitura da paz (poderes que, de resto, só excecionalmente serão exercidos), pois se é verdade que, sem a vontade presidencial, nenhum desses atos pode ver a luz do dia, não é menos certo que, se o Presidente estiver convencido da necessidade de declarar a guerra ou de fazer a paz, tal não acontecerá se o Governo o não propuser e se a Assembleia da República o não autorizar. Na nossa perspetiva, em matéria de relações internacionais a dimensão em que os poderes presidenciais mais se fazem sentir é, inegavelmente, a da nomeação de embaixadores e chefes de missão diplomática, sendo de resto de conhecimento público a intervenção que cabe ao Presidente no chamado «movimento diplomático», que regularmente se realiza. De facto, nesse âmbito são frequentes os entendimentos entre o Presidente e o Governo, que conduzem a modificações na proposta inicial do Executivo, pois se o Presidente da República pretender que uma determinada pessoa seja colocada em certo posto, terá de convencer o Governo (isto é, o primeiro-ministro) a fazer-lhe tal proposta. Este, por seu lado, está consciente que uma proposta que mereça a rejeição presidencial não poderá, pura e simplesmente, concretizar-se. E isso cria, evidentemente, um espaço – e até, uma obrigação negocial.

33Como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira, «se ao Governo compete a condução da política geral do País, já a sua definição não cabe exclusivamente ao Governo, envolvendo designadamente também o Presidente da República e a Assembleia da República» (CANOTILHO, José Joaquim Gomes, e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa Anotada. 4.ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, vol. II, p. 414).

34CANOTILHO, José Joaquim Gomes, e MOREIRA, Vital – Os Poderes do Presidente da República, p. 85.

35Situações há, como sucede com a CPLP e com a Cimeira Ibero-Americana, em que a representação nacional ao mais alto nível é assegurada, em simultâneo, pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro. Mas daí não se pode retirar qualquer conclusão útil para a questão subiudicio. Com efeito, essa circunstância está ligada à própria composição dos órgãos máximos dessas entidades, tal como definida nos seus documentos institutivos e é largamente condicionada pela própria natureza dos sistemas de governo dos demais países integrantes, habitualmente de tipo presidencialista, os quais encarariam com perplexidade e, porventura, incómodo, a ausência do Chefe de Estado de outro país membro. De resto, o facto de, v.g., em Espanha a representação ser partilhada pelo Rei e pelo presidente do Governo (no caso da Cimeira Ibero-Americana), é bem demonstrativo da impossibilidade de daí se retirarem conclusões constitucionalmente úteis para o caso português.

36Ibidem, p. 79.

37Outras tentativas em sentido idêntico, também do Partido Comunista Português, foram rejeitadas no âmbito das revisões constitucionais de 1997 e de 2004.

38Que constavam do rol de propostas então formuladas pelo Partido Renovador Democrático.

39Deputado Jorge Lacão (ps) (Diário da Assembleia da República. II Série, 30 de setembro de 1988, p. 1231.

40Ibidem.

41Proposta de Resolução n.º 41/VIII.

42Sobre a questão ver Correia, José Matos – «Notas para a história da revisão constitucional de 2001». In Polis. N.º 9/12, 2003, p. 113 e segs.

43Moção de Censura n.º 1/IX – Censura o Governo pelo «Apoio ao desencadear de ações militares contra o Iraque de forma unilateral e sem apoio em resolução específica do Conselho de Segurança”.

44Moção de Censura n.º 2/IX – Censura o Governo «Por a Guerra contra o Iraque violar a Carta das Nações Unidas e ser realizada à margem e contra o direito internacional».

45Moção de Censura n.º 3/IX – Censura o Governo pelo «Apoio à guerra ilegal dos Estados Unidos da América e do Reino Unido contra o Iraque».

46Moção de Censura n.º 4/IX – Censura o Governo pela «Atitude de apoio à intervenção militar dos Estados Unidos da América à margem de qualquer resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas».

47Que podem assumir as modalidades de congratulação, de protesto, de condenação, de saudação ou de pesar – n.º 1 do artigo 75.º do Regimento da Assembleia da República.

48Um caso paradigmático dessa falta de consequências foi a aprovação, em 12 de dezembro de 2014, de um voto recomendando o reconhecimento do Estado da Palestina, que gerou, aliás, amplo consenso. O Governo saudou o facto e limitou--se a dizer, na altura, que tal reconhecimento ocorreria no momento que fosse por ele considerado mais oportuno.

49MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional, vol. v, p. 57.

50Não que, evidentemente, processos similares não ocorram noutros estados--membros. Mas isso excede o propósito do presente contributo reflexivo.

51As anteriores regras sobre o acompanhamento parlamentar da integração europeia foram definidas pelos seguintes diplomas: Lei n.º 28/87, de 29 de junho; Lei n.º 11/88, de 15 de dezembro; e Lei n.º 20/94, de 15 de junho. Sobre o assunto, cf. MIRANDA, João – O Papel da Assembleia da República na Construção Europeia. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, em especial p. 45 e segs.

52Sobre os modelos de participação parlamentar na construção europeia, pode ver-se KIIVER, Philipp – The National Parliaments in the European Union: A Critical View on European Union Constitutional Building. A Haia: Kluwer Law International, 2006, pp. 43-70; ou, entre nós, FRAGA, Ana – Os Parlamentos Nacionais e a Legitimidade da Construção Europeia. Lisboa: Edições Cosmos, 2001, em especial p. 65 e segs.

53MIRANDA, Jorge – Direito Constitucional III, p. 35.

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