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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.49 Lisboa mar. 2016

 

40 ANOS DA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA: DINÂMICAS INTERNAS E EXTERNAS

 

Nota introdutória: 40 anos da Constituição portuguesa – dinâmicas internas e externas

 

Daniel Marcos* e Marco Lisi**

* Doutorado em História Moderna e Contemporânea, especialidade em História das Relações Internacionais no Período Contemporâneo pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa (2011). Actualmente, é investigador de pós-doutoramento do IPRI-NOVA, onde desenvolve uma investigação sobre a participação de Portugal na NATO entre 1949 e 1976 (financiada pela FCT). É professor auxiliar convidado do Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

** Professor auxiliar no Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigador no IPRI. Tem publicado vários artigos sobre partidos e comportamento eleitoral em revistas nacionais e estrangeiras. A sua obra mais recente é Party Change, Recent Democracies and Portugal: Comparative Perspectives (Lexington, 2015).

 

Os textos constitucionais são elementos fundamentais para caracterizar e avaliar o funcionamento dos sistemas políticos. Como base da ordem democrática, as constituições modernas garantem não apenas um poder negativo – delimitar o exercício do poder político –, mas também positivo, por exemplo, através da ênfase posta nas liberdades e direitos dos cidadãos. Neste sentido, as constituições representam uma garantia da ordem democrática a três diferentes níveis: em termos de princípios e direitos que orientam a forma política do Estado e da sociedade; ao nível da organização e separação de poderes, que faz com que a organização do poder seja efetiva e instrumental aos objetivos estabelecidos; finalmente, na garantia de representação, ou seja, na igualdade de participação e influência sobre as escolhas a nível político. Em geral, as constituições compõem a base da ordem normativa, apresentando por isso um «carácter absoluto» que faz com que sejam documentos que geram legitimidade, canalizam o conflito político e regulam a produção de bens públicos.

O debate acerca da maior ou menor atualidade das constituições e da necessidade de reformar os textos fundamentais é um tema constante nas ciências sociais, sobretudo na perspetiva do (neo)institucionalismo. A complexidade desta questão relaciona se com a tensão entre regras e organizações, por um lado, e a ação dos atores políticos, por outro; no carácter rígido e, ao mesmo tempo, flexível, da Lei Fundamental; assim como pela incerteza que caracteriza os processos de revisão quando começa a negociação entre diferentes atores envolvidos.

Recentemente, o debate sobre a importância das constituições adquiriu um novo dinamismo e relevância não apenas pelo processo de integração europeia, mas também pelas novas modalidades adotadas para proceder à revisão dos textos fundamentais. As «convenções constituintes» ou «constituições do povo»1– termos utilizados para identificar os documentos recentemente elaborados na Islândia, na Irlanda ou nalgumas províncias do Canadá –, caracterizam se por uma intensa mobilização da sociedade, pela seleção aleatória dos «constituintes» e pelo carácter aberto e deliberativo das discussões. Neste sentido, estes processos inovaram as práticas de elaboração e aprovação das constituições que caracterizaram a época moderna do constitucionalismo, contrariando o carácter mais elitista dos procedimentos adotados nas anteriores vagas de democratização.

Forma e conteúdo dos processos de revisão são dois aspectos interligados que procuram oferecer novas soluções às patologias que afetam o funcionamento das democracias contemporâneas. Um dos problemas fundamentais das atuais democracias é a crise da legitimidade e de participação, um fenómeno que se agravou com a emergência da «Grande recessão». No caso português, o aumento da abstenção e da desconfiança em relação às instituições e atores do sistema político tem despertado preocupações, dando origem a várias propostas de reformas. Como vários autores evidenciam, o processo de elaboração da constituição tem efeitos relevantes em termos de estabilidade institucional, resolução de conflitos e eficácia das políticas2. Deste ponto de vista, um debate mais alargado e aberto sobre o legado da Constituição portuguesa e a sua interpretação, utilizando perspetivas e abordagens de análise distintas, é importante para avaliar a qualidade da democracia e discutir como as instituições democráticas podem recuperar os baixos níveis de legitimidade e de desempenho do regime político.

O tema principal desenvolvido neste número temático relaciona se com o legado da Constituição portuguesa em várias áreas do sistema político, tanto na dimensão interna quanto externa. Algumas características do contexto político, social e cultural tiveram um impacto determinante para as especificidades da Constituição aprovada em 2 de abril de 1976. Em primeiro lugar, pelo poder criador, ou seja, pela intervenção dos militares na esfera política e pelos constrangimentos que projetaram na ação dos partidos políticos3. Em segundo lugar, pelas orientações programáticas adotadas em diversos setores, nomeadamente no caso das políticas económicas, sociais e culturais. Em terceiro lugar, é importante ressaltar a especificidade da mobilização social que Portugal experimentou nos anos de transição, na intensidade e nas modalidades únicas de participação e de interação entre sociedade e poder político. Finalmente, o ambiente internacional colocou também Portugal no centro de tensões e negociações que influenciaram a elaboração da Constituição e o caminho seguido pelo novo regime político.

O intuito deste número especial da ri não é apenas oferecer elementos de reflexão sobre a importância e o legado da Constituição, mas também abrir a perspetiva de análise a algumas questões de atualidade, nomeadamente em relação à capacidade do texto fundamental da democracia em oferecer uma bússola para ultrapassar os desafios da atual crise económica, melhorar o funcionamento das instituições representativas, lidar com os problemas e ameaças do contexto internacional e acompanhar as mudanças e evolução da sociedade em diferentes domínios.

Um dos campos nos quais esta dinâmica se pode observar com particular pertinência é ao nível da política externa. O fim do regime autoritário do Estado Novo abriu espaço para a emergência de uma rutura a este nível. Os trabalhos desenvolvidos por José Medeiros Ferreira, António José Telo e Nuno Severiano Teixeira mostram que a transição para a democracia, em 1974, mudou a perceção tradicional de pfp4. A partir deste momento e até 1986 assistiu-se a uma mudança estratégica que desviou Portugal de uma dimensão essencialmente atlântica – tanto colonial e transatlântica – para uma dimensão europeia5. A rutura promovida pelo golpe militar de 25 de abril de 1974, alimentou o processo simultâneo de descolonização e de democratização. Com a Revolução a ocorrer no auge da Guerra Fria, Portugal passou por uma crise do Estado, seguida por uma intensa mobilização social e política da esquerda, para a qual os partidos moderados só conseguiram sobreviver com a ajuda externa dos Estados Unidos e dos países da Europa Ocidental.

Esta transição não deixou de ter impacto na Constituição portuguesa de 1976, como Ana Mónica Fonseca claramente demonstra no artigo deste dossiê. Como a autora refere, a aprovação da Constituição marca o início do processo de consolidação democrática em Portugal, trazendo consigo uma crescente normalização política à vida do País. Todo este processo foi acompanhado de perto pelos diferentes atores internacionais, fossem eles estados ou organizações multilaterais. No caso particular da República Federal da Alemanha, um dos principais parceiros no apoio às forças moderadas em Portugal, a aprovação constitucional significou a consagração de um regime democrático, pluralista e parlamentar, de estilo ocidental.

Esta evolução não se fez, contudo, sem que Bona seguisse com receio a evolução do processo revolucionário português durante o período pré constitucional. Em primeiro lugar, devido à incerteza quanto à convocação de eleições para uma futura assembleia constituinte após o golpe de 25 de abril de 1974. Depois, porque mesmo após a entrada em funções dessa Assembleia, o seu trabalho foi sempre limitado quer pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), quer pelo Conselho da Revolução. Em última instância, foi a legitimidade eleitoral da Assembleia Constituinte, garantida pelo sufrágio universal nas eleições de 25 de abril de 1975, que lhe garantiu uma legitimidade democrática indiscutível. Finalmente, após o 25 de Novembro de 1975, porque a Assembleia Constituinte ganhou definitivamente o seu espaço no panorama político português, contribuindo para assegurar a participação do MFA na vida política portuguesa, ao mesmo tempo que mantinha a sua independência e autonomia.

A consolidação da democracia portuguesa é caracterizada por uma clara opção para reafirmar a posição externa de Portugal como um país cuja identidade é tanto atlântica quanto europeia6. Isto é exposto cabalmente pelo artigo de Maria Inácia Rezola, incluído neste dossiê. Na verdade, a queda da ditadura veio colocar novos desafios a Portugal, tanto ao nível interno como externo. Neste campo, o fim do ciclo imperial, alcançado com a descolonização levada a cabo em 1975, abriu espaço para o reforço das ligações de Portugal com a Europa. Neste processo, José Medeiros Ferreira teve um papel de destaque, uma vez que desempenhou funções como secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros no VI Governo Provisório, desde setembro de 1975, e porque foi o ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional, entre julho de 1976 e outubro de 1977.

Em parte, as principais linhas de política externa da Democracia ficaram definidas por Medeiros Ferreira. Ainda no seu percurso como secretário de Estado, procurou assumir a defesa de uma linha atlantista e europeísta em oposição às derivas neutralistas e africanistas que dominavam alguns setores do Governo, em particular do ministro dos Negócios Estrangeiros, Ernesto Melo Antunes. Já como ministro, Medeiros Ferreira pode reforçar esta dinâmica, contribuindo para a definição do posicionamento externo de Portugal como país ocidental, europeu e atlântico. São estas linhas que perduram até à atualidade.

Para a saída de José Medeiros Ferreira do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) muito contribuiu a sua visão sobre a representação internacional do Estado português, em particular a forma como interpretou as cláusulas constitucionais sobre o papel do Presidente da República nesse campo. Defensor de uma representação partilhada, em que o Presidente da República e o Governo, em particular o MNE, deveriam ter um papel de monta, Medeiros Ferreira viu com apreensão o reforço da ação do primeiro-ministro, no campo externo.

Assim, faz todo o sentido terminarmos este dossiê com uma reflexão sobre a separação de poderes em matéria de política externa. No artigo de José Matos Correia, fica claro que, em regra, o tratamento dado pelos textos constitucionais às questões externas é habitualmente vago e pouco elaborado. Esta situação leva a que, muitas vezes, os agentes político-constitucionais acabem por construir e delimitar a sua ação muito para além do que as próprias constituições estabelecem. Em Portugal, os últimos quarenta anos foram de consolidação de uma dinâmica em que a representação externa do Estado cabe, sobretudo, ao poder executivo e, em particular, ao primeiro-ministro. Fragiliza-se, assim, o necessário controlo jurídico e político.

Ao nível interno, as especificidades da transição democrática e da rutura com o regime anterior emergiram sobretudo na área dos direitos sociais. Como é evidenciado no texto de Filipe Carreira da Silva e Mónica Brito Vieira, a Constituição portuguesa caracteriza-se pela extensa inclusão de direitos sociais e económicos nas garantias estabelecidas pela Lei Fundamental. Depois da revisão crítica das principais abordagens teóricas, os autores enfatizam a importância de analisar o papel de atores extra-institucionais, tais como os militares e os movimentos sociais, para interpretar o conteúdo da Constituição de 1976. Estas conclusões são relevantes não apenas para interpretar o caso português, mas também outros momentos constituintes como, por exemplo, os que emergiram da «primavera árabe». As implicações desta análise refletem se também na crescente jurisdicionalização da política em Portugal, como se verificou recentemente nas intervenções do Tribunal Constitucional em matéria de direitos sociais e económicos e na questão da redefinição das políticas sociais. Neste sentido, este estudo é um contributo fundamental para compreender melhor a génese da segunda geração de direitos e o legado desta constitucionalização sobre a legitimidade e o desempenho do regime democrático.

Quarenta anos depois de aprovada, a Constituição da República Portuguesa continua, assim, a moldar indiscutivelmente o sistema político português, tanto ao nível interno, como externo.

 

BIBLIOGRAFIA

CRAVO, Teresa, e FREIRE, Maria Raquel – «La politique étrangère du Portugal: européanisme, atlantisme, ou les deux?». In Revue internationale et stratégique. Vol. 62, N.º 2, 2006, pp. 23-30.

FERREIRA, José Medeiros – Cinco Regimes na Política Internacional. Lisboa: Editorial Presença, 2006.

GALLIGAN, Denis, e VERSTEEG, Mila (eds.) – Social and Political Foundations of Constitutions. Nova York: Cambridge University Press, 2013.

GINSBURG, Tom, ELKINS, Zachary, e BLOUNT, Justin – «Does the process of constitution-making matter?». In Annual Review of Law and Social Science. N.º 5, 2009, pp. 201-223.

GÓMEZ FORTES, Braulio – O Controlo Político dos Processos Constituintes. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009.

O’DOWD, John, e FERRARI, Giuseppe (eds.) – Comparative Reflections on 75 Years of the Irish Constitution. Dublin: Clarus Press, 2014.

SMITH, Graham – Democratic Innovations: Designing Institutions for Citizen Participation. Cambridge: Cambridge University Press, 2009

TEIXEIRA, Nuno Severiano, e Pinto, António Costa (eds.) – The Europeanization of Portuguese Democracy. Boulder: Social Sciences Monographs, 2012.

Teixeira, Nuno Severiano – «Breve ensaio sobre a política externa portuguesa». In Relações Internacionais. N.º 28, 2010, pp. 51-60.

TELO, António José – História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Atualidade. Lisboa: Editorial Presença, 2008, vol. II.

 

NOTAS

1SMITH, Graham – Democratic Innovations: Designing Institutions for Citizen Participation, Cambridge: Cambridge University Press, 2009; FARRELL, David – «The 2013 Irish Constitutional Convention». In O’DOWD, John, e FERRARI, Giuseppe (eds.) – Comparative Reflections on 75 Years of the Irish Constitution. Dublin: Clarus Press, 2014, pp. 197-213.

2GINSBURG, Tom, ELKINS, Zachary, e BLOUNT, Justin – «Does the process of constitution-making matter?». In Annual Review of Law and Social Science. N.º 5, 2009, pp. 201-223; GALLIGAN, Denis, e VERSTEEG, Mila (eds.) – Social and Political Foundations of Constitutions. Nova York: Cambridge University Press, 2013.

3GÓMEZ FORTES, Braulio – O Controlo Político dos Processos Constituintes. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009.

4FERREIRA, José Medeiros – Cinco Regimes na Política Internacional. Lisboa: Editorial Presença, 2006; TELO, António José – História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Atualidade. Lisboa: Editorial Presença, 2008, vol. II; e TEIXEIRA, Nuno Severiano – «Breve ensaio sobre a política externa portuguesa». In Relações Internacionais. N.º 28, 2010, pp. 51-60.

5CRAVO, Teresa, e FREIRE, Maria Raquel – «La politique étrangère du Portugal: européanisme, atlantisme, ou les deux?». In Revue internationale et stratégique. 62-2, 2006, pp. 23-30.

6TEIXEIRA, Nuno Severiano – «Introduction: Portugal and European Integration, 1974-2010». In TEIXEIRA, Nuno Severiano, e PINTO, António Costa (eds.) – The Europeanization of Portuguese Democracy. Boulder: Social Sciences Monographs, 2012, pp. 7-26.

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