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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.48 Lisboa dez. 2015

 

RECENSÃO

O futuro da representação política democrática em uma Europa em crise

Mayra Goulart*

 

Professora de Teoria Política e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Brasil).

 

Publicado pela editora Nova Vega em julho de 2015, o livro organizado por André Freire, O Futuro da Representação Política Democrática, é o resultado de um projeto ambicioso, como são todas as empreitadas acadêmicas que visam ir além da mera descrição dos fatos. O livro é composto por sete artigos de diferentes autores, articulados pela perspectiva de que a Europa, bastião das principais conquistas da modernidade ocidental e vitrine dos seus experimentos políticos mais bem sucedidos, vive hoje uma crise de representação que ameaça suas principais conquistas. Sendo assim, a partir deste diagnóstico comum, os textos buscam traçar diferentes prognósticos, relacionados às distintas dimensões nas quais se consubstancia o que entendemos por representação política democrática, nomeadamente: os parlamentos, os partidos, os sindicatos, os movimentos sociais, a Unia~o Europeia e a globalizacão.

 

 

A despeito de sua independência os textos observam uma estrutura comum que abarca duas etapas (descritiva e propositiva).

Na primeira, identifica-se um padrão de tica democrática, nomeadamente: os evolução, capaz de explicar como as coisas chegaram até aqui, delineando a cadeia causal que compõe o fenômeno a ser analisado, isto é, a articulação entre (i) A despeito de sua independência os textos liberalismo, (ii) capitalismo e (iii) democracia, engendrando aquilo que se entende abarca duas etapas (descritiva e propositiva). por representação política democrática.

Ao trazer à tona essa problemática o livro já delineia uma segunda singularidade face a uma literatura que observa tal articulação como resultado de uma necessária confluência axiológica. Daí a importância da ênfase dada ao caráter histórico-conjuntural desta articulação, uma vez que os elementos reunidos no conceito de democracia representativa se desenvolvem a partir de três dimensões distintas e, em muitos aspectos, antagônicas: (i) a proteção das minorias através da instituição de direitos individuais, garantidos por uma dinâmica institucional que limita a ação estatal sobre a esfera privada, através de mecanismos como a divisão de poderes; (ii) um sistema econômico cuja ultima ratio consiste na acumulação dos recursos sociais e, por conseguinte, na concentração de poder nas mãos de elites econômicas; e, por fim, (iii) um sistema político capaz de agir em prol dos interesses majoritários dos cidadãos – mesmo em face de pressões contrárias por parte das minorias detentoras do capital – que, a despeito de delegarem as funções de governo para uma elite, retém consigo o poder de substituí-las periodicamente.

Na segunda etapa de cada texto, a cadeia causal que compõe a crise atual é extrapolada tendo em vista a composição de cenários futuros. Nessa extrapolação reside a principal virtude da obra que, sem se perder em divagações filosóficas, impõe à observação dos fatos o imperativo da afirmação de valores. Mediante este propósito, em vez de recorrer à empiria para justificar a ausência de alternativas, ou para reduzir o papel das escolhas e dos atores perante os ditames sistêmicos, os autores o fazem com o propósito contrário: reafirmar a importância dos sujeitos e das escolhas daqueles que lutaram e continuam lutando para que as conquistas dos povos europeus não sejam alienadas em prol de interesses exógenos aos seus cidadãos.

Em comum com boa parte da literatura sobre o tema, o livro apresenta a identificação dos limites fáticos do Estado Social europeu que, por sua vez, estão atrelados a três de seus atributos: (i) seu caráter contingente, na medida em que este experimento não encontrou terreno fértil em muitos países fora da Europa, com poucas exceções na Ásia e na América do Norte; (ii) seu caráter efêmero, uma vez que a era de ouro do Welfare State é limitada a um par de décadas (do pós-guerra aos anos 1970); e, por fim, (iii) seu caráter insustentável, haja vista a pressão que o aumento nos gastos sociais exerce sobre os cofres públicos.

Não obstante este desencantado diagnóstico comum, os artigos que compõem a obra aqui apresentada compartilham o desafio de, assumindo uma perspectiva normativa e valorativa, vislumbrar formas de superar esses mesmos limites, almejando a preservação das conquistas obtidas pelos povos europeus, que ainda resplandecem no horizonte de expectativas dos cidadãos de inúmeros países periféricos, como é o caso do Brasil.

Essa preocupação revela uma outra singularidade da obra. Pois, em um contexto intelectual que absorve o achatamento da política a sua dimensão formal, reduzindo a participação e a cidadania a um conjunto de práticas cuja dimensão simbólica ultrapassa seus efeitos materiais, os autores reivindicam uma recuperação de seus fundamentos. Afinal, independentemente de qualquer gincana conceitual, a representação dos interesses do demos, no contexto atual, implica na garantia de suas condições materiais de existência, através de um conjunto de mecanismos redistributivos operacionalizados pelo que restou do Estado Social.

Deste modo, como observado através da leitura dos artigos que compõem a coletânea, qualquer tentativa de refletir sobre o futuro da democracia liberal face a uma crise de representação, só faz sentido quando consideramos seu componente econômico, que radica na incapacidade da maioria de ter suas preferências efetivamente representadas por um poder público, que parece refém de interesses oligárquicos, independentemente de quem o ocupa. Sob essa perspectiva, a crise experimentada pelos europeus não apresenta grandes novidades conquanto as suas causas elementares, podendo ser entendida à luz do que na historiografia clássica é apontada como a principal causa da ruína de uma cidade: a stasis.

Palavra grega usada para denominar crises profundas e/ou guerras civis, na maioria dos casos a stasis era o resultado de um agravamento da discórdia entre facções, em especial, a dos «bem nascidos», por um lado, e a dos pobres, por outro1. As investidas oligárquicas sobre o demos são, portanto, um fenômeno tão longevo como a própria política, como já alertava Aristóteles no século IV a.C., «como normalmente os pobres estão em maioria e os ricos em minoria, [eles] são considerados como elementos políticos completamente opostos»2.

No entanto, se a espoliação do demos por minorias poderosas não é novidade, a crise atual possui um agravante supranacional, tendo em vista a frustração daqueles que, acreditando na União Europeia como mecanismo institucional capaz de aumentar a força dos estados nacionais perante os imperativos sistêmicos de um mundo globalizado, toleraram abdicar do controle sobre suas instituições. E assim, incentivados por um longo período de prosperidade econômica, assistiram em silêncio a transferência de competências nacionais para instâncias supranacionais que se revelaram operadores destes mesmos imperativos oligárquicos – o que em parte explica a ascensão de novos movimentos e partidos eurocéticos e/ou «populistas» como resposta dos sistemas nacionais a esta crescente frustração, que muitas vezes não encontra escoadouro nos atores políticos tradicionais (partidos e sindicatos).

Por fim, para aqueles que observam a crise de fora da Europa, em países onde a conjunção entre democracia, capitalismo e liberalismo jamais foi devidamente viabilizada, parece ainda mais interessante o esforço dos autores em ressaltar o caráter excepcional do experimento levado a cabo pelos europeus, que em um pacto civilizacional motivado pelo trauma de duas grandes guerras conseguiram conformar, em menor ou maior escala, um sistema político voltado ao bem-estar de seus cidadãos. Resta-nos torcer para que a nova investida oligárquica encontre no velho continente um demos capaz de resistir à espoliação, pois só assim a Europa poderá seguir alimentando as esperanças de que em algum momento um sistema de representação política efetivamente democrático também seja possível além-mar.

 

Notas

1FINLEY, M. I. – Democracia Antiga e Moderna. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1988, p. 60.         [ Links ]

2ARISTÓTELES – Política. Madrid: Gredos, 1988, p. 80.         [ Links ]

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