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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.47 Lisboa set. 2015

 

RECENSÕES

 

Uma reflexão oportuna a propósito do projeto europeu

 

Luís Lobo-Fernandes

Professor catedrático na Universidade do Minho e titular da cátedra internacional Jean Monnet de integração política europeia

 

Isabel Camisão, Comissão Europeia: Líder ou Seguidora? – O Papel da Instituição no Processo de Reforma dos Tratados, Juruá Editora, Lisboa, 2015, 304 páginas.

 

A Comissão é porventura o exemplo mais sui generis da construção institucional europeia. Definida comummente como a guardiã dos tratados, sendo tecnicamente independente dos estados-membros, constitui no plano internacional uma intrigante formação histórica de cariz pós-vestefaliano. É esta independência da Comissão em relação aos governos nacionais – um dos seus mais característicos atributos – que a distingue, aliás, de outras instituições internacionais. Funcionando como o órgão executivo da União Europeia (UE), os papéis mais complexos da Comissão estão normalmente associados às suas importantes prerrogativas autónomas de iniciativa e de propositura de políticas comuns, e de lhes conferir conteúdo e coerência. Responsável por impulsionar e fazer prevalecer os objetivos fundamentais do projeto europeu, atua como uma espécie de consciência do interesse geral.

Refira-se que até julho de 1967, as três comunidades – CECA, CEE e Euratom – tinham comissões executivas distintas (sendo o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça já comuns às instituições comunitárias). Somente a partir da fusão de 1967 passa a existir uma comissão conjunta – tal como um só Conselho – exercendo a totalidade das atribuições estipuladas nos tratados. Nas palavras de Émile Noël, o seu primeiro prestigiado secretário-geral, a Comissão mantém um trabalho de «cão de guarda» devendo velar pelo interesse comunitário no quadro da ação geral das instituições, ao mesmo tempo que assegura a manutenção de um clima de confiança entre elas, tendo ainda a responsabilidade de contribuir decisivamente para a harmonização diligente dos vários pontos de vista. Por outro lado, enquanto organismo imparcial, compete à Comissão investigar e pronunciar-se de maneira objetiva sobre a correta aplicação e cumprimento das disposições dos tratados e, em articulação com o Tribunal de Justiça, dar a conhecer as medidas necessárias à regularização de eventuais faltas e inobservâncias dos princípios e normas comuns, com especial relevância no âmbito do direito de livre concorrência e do mercado interno. Por seu turno, o presidente da Comissão detém uma posição nuclear de liderança e influência, competindo-lhe articular o exercício e a implementação das políticas acordadas.

O funcionamento adequado do edifício comunitário implica um diálogo intenso e permanente com todas as outras instituições, nomeadamente com o Conselho, que reúne os representantes dos estados-membros, e com o Parlamento Europeu, que detém hoje significativas competências. Concomitantemente, o Conselho Europeu – que integra os chefes de Estado e de governo e é coordenado por um presidente designado cada dois anos e meio – tem um peso político que não cessou de aumentar desde a sua criação em 1974, fixando orientações gerais e impulsionando a agenda global da União. Na arquitetura da atual UE, o concurso das várias instituições torna-se, assim, imprescindível para se alcançarem decisões mais eficazes, no âmbito dos existentes procedimentos de codecisão.

Ora, este quadro institucional de iniludível complexidade tem sido marcado por novos debates e controvérsias, não só no seio da vasta comunidade de especialistas, mas também entre os próprios estados-membros, sobre o lugar da Comissão no processo de integração europeia e enquanto entidade nuclear no estabelecimento e preservação dos necessários equilíbrios internos. É precisamente neste esforço crítico de dilucidação dos vários papéis da Comissão que o oportuno livro da professora Isabel Camisão se apresenta ao leitor. A obra, que tem na sua génese a tese de doutorado cuja elaboração tivemos o privilégio de orientar, ínsita numa linha de investigação rigorosa da evidência empírica disponível, coloca a necessidade de ultrapassar alguma circularidade argumentativa em que, não raras vezes, desaguam os estudos europeus. A linha seguida por Camisão visa ultrapassar as insuficiências dos argumentos teóricos tradicionais, procurando estabelecer novas vias explicativas dos dilemas e das importantes transformações ocorridas no processo de integração, centrando‑se mais especificamente na avaliação da ação multimodal da Comissão Europeia na reforma dos tratados – o centro de gravidade da sua pesquisa.

Mas a presente publicação assume, na nossa ótica, uma pertinência ainda maior no atual cenário de bifurcação institucional, porquanto é fundamental compreender que o «método do Conselho» substituiu, numa medida não despicienda, o convencional «método da Comissão» no processo de decisão, reforçando o pendor intergovernamental embora numa lógica paradoxal, no qual a Alemanha detém uma ascendência ímpar. Por outro lado, as mais recentes iniciativas conducentes à criação de uma união bancária representam um importante passo para a salvaguarda e o desenvolvimento do projeto comum no sentido do aperfeiçoamento de um sistema financeiro europeu, alargando a pertinência do aprofundamento dos estudos europeus numa fase especialmente delicada da sua existência, decorrente da governação monetária – o euro – e da chamada crise das dívidas soberanas.

O aprofundamento atípico da integração europeia na atual fase levado a cabo, diga-se, sob a quase exclusiva liderança da Alemanha, pode constituir não obstante uma oportunidade de reforço institucional e político da UE. Em que medida? Os desafios globais com que a Europa está confrontada não podem ser resolvidos por um único Estado-membro, antes exigem respostas concertadas. Só a UE, no quadro europeu contemporâneo, aparenta ter a experiência acumulada suficiente capaz de empreender políticas para além do Estado-nação, e para manter uma posição de relevo no palco mundial, sendo fundamental que os seus membros explorem aquilo que já possuem: um modelo virtuoso de soberanias compartilhadas, mas cuja coerência é propiciada justamente pelo elemento motor e agregador da Comissão. Como sublinha a autora, a chave para a «centralidade especial da Comissão» está principalmente na sua capacidade para se metamorfosear e ajustar à dinâmica evolutiva do próprio processo de integração. O sistema de governação comunitário põe em evidência, segundo Camisão, um menor grau de utilidade do conceito monístico de soberanias territoriais, pensado no âmbito do sistema clássico de estados, com um número limitado de atores, mas que só muito parcialmente tem correspondência na realidade internacional contemporânea. Num quadro político de grande complexidade, marcado, de novo, por ímpetos nacionalistas exacerbados, a UE concebe-se a si mesma como força estabilizadora a nível mundial, beneficiando de uma imagem civilista. Podemos considerar que a UE é, por conseguinte, uma importante preventora de instabilidade e um fator de moderação no sistema das relações internacionais.

Aquilo que poderíamos definir, nesta instância, como o critério da UE, tem precisamente na ação da Comissão um dos seus «cais» mais seguros, na medida em que o seu trabalho corporiza maioritariamente a articulação do interesse comum, ainda que de delicada prossecução, que podemos caracterizar como extraordinariamente positivo, assegurando permanência e continuidade à ação europeia. A governação global tem, assim, na Comissão Europeia uma das suas expressões pioneiras mais interessantes.

Num tempo em que, de novo, a regra mais vesga dos interesses nacionais e as manifestações populistas de vários matizes reemergem no horizonte europeu, a sociedade internacional pode encontrar no modelo aberto da UE uma visão inspiradora no sentido do respeito dos direitos humanos, das aspirações societais de modernização e dos anseios de uma prosperidade global mais compartilhada. É este porventura o sentido mais forte deste livro, publicado simultaneamente em Portugal e no Brasil, e que representa mais um contributo importante da Universidade do Minho para a reflexão sobre alguns dos atuais dilemas europeus.

Pode, em suma, o leitor atento encontrar nesta obra um dos contributos mais interessantes sobre uma entidade que talvez constitua a primeira manifestação verdadeiramente pós-nacional de governança.

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