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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.47 Lisboa set. 2015

 

PORTUGAL E AS NAÇÕES UNIDAS

 

As Nações Unidas e os direitos humanos

The United Nations and human rights

 

António Costa Lobo

Licenciado em Direito na Universidade de Coimbra (1954). Entrou na carreira diplomática em 1956, tendo ocupado postos em Havana, Haia, São Francisco, Nova Iorque, Estrasburgo, Pequim, Genebra, Moscovo e Londres, bem como o lugar de Secretário geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Exerceu funções docentes no ISCSP, UNL e UCP nas áreas do Direito Internacional e das Relações Internacionais

 

RESUMO

A Organização das Nações Unidas (Nações Unidas), como está amplamente refletido na respetiva Carta, inclui entre os seus objetivos principais a proteção dos direitos humanos. Para o desempenho desta função ela lançou mão, entre outros, dos seguintes meios: 1) a proclamação de direitos humanos em declarações e acordos; 2) a criação de órgãos com responsabilidades específicas na área em questão; 3) a identificação e aprofundamento de princípios com relevância na proteção dos direitos humanos, como é o caso da responsabilidade de proteger; 4) o apoio à criação e funcionamento de instituições que prosseguem objetivos convergentes, de que é exemplo o Tribunal Penal Internacional.

Palavras-chave: Nações Unidas, direitos humanos, princípios, mecanismos.

 

ABSTRACT

The United Nations Organisation, as it is reflected in its Charter, includes among its main objectives the protection of human rights. To fulfil this aim the un resorts to the following means: 1) the proclamation of human rights in declarations and covenants; 2) the creation of bodies with special responsibilities in this area; 3) the identification and enhancement of principles pertinent to the protection of human rights such as the responsibility to protect; 4) the support to institutions which pursue similar objectives of which the International Criminal Court is an example.

Keywords: United Nations, human rights, principles, mechanisms.

 

A PRESENÇA DOS DIREITOS HUMANOS NO MUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS

Se pode considerar‑se que a criação das Nações Unidas teve como objetivo principal a manutenção da paz e da segurança internacionais, creio que deve colocar‑se em posição de quase igualdade a proteção dos direitos humanos. Não é de estranhar que assim tivesse sido, dado o horror causado pela dimensão e gravidade da violação daqueles direitos durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos que a precederam.

A importância atribuída a este tema manifestou‑se logo no início dos trabalhos preparatórios da Carta das Nações Unidas, mas as posições quanto ao grau de proteção a dar aos direitos humanos e relativamente aos mecanismos que deviam ser adotados para esse efeito apresentavam algumas divergências.

O artigo 2 (7) da Carta das Nações Unidas estabelece que esta organização não pode intervir «em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado», mas esta formulação não nos fornece uma fronteira clara e precisa do que deve entender‑se por aquela expressão. Assim, a referida disposição foi frequentemente utilizada por alguns estados para que as Nações Unidas não pudessem exercer qualquer forma de proteção dos direitos humanos, ainda que de natureza puramente verbal, no interior dos respetivos territórios. A evolução registada foi no entanto, em termos globais, no sentido de as Nações Unidas alargarem a sua competência e reforçarem os seus meios de ação na proteção dos direitos humanos. Esta evolução resultou, em grande parte, da política de alguns estados e da ação de organizações não-governamentais e de militantes agindo a título individual, mas o sucesso deste esforço conjunto só foi possível por poder apoiar‑se em princípios consagrados na Carta das Nações Unidas.

Uma outra questão em que as opiniões se dividiram dizia respeito à composição dos órgãos responsáveis pela proteção dos direitos humanos, designadamente sobre se os membros de tais órgãos devem ser representantes dos estados ou peritos independentes.

Qualquer destas duas correntes de opinião pode apresentar argumentos a seu favor. Um dos méritos dos órgãos compostos por peritos independentes é o de neles ser menor o peso de considerações de ordem política e de existir um maior profissionalismo na escolha de caminhos e remédios para combater situações onde estejam a ocorrer violações de direitos humanos. Mas a participação de representantes dos estados no sistema de proteção também é importante, pois implica um maior envolvimento dos respetivos governos nesta tarefa com reflexos positivos na política e ações concretas no âmbito da mesma.

No conjunto das ações das Nações Unidas na área dos direitos humanos aquela que alcançou maior projeção e, ao mesmo tempo, constitui a base para todos os outros tipos de ação dentro desta área, foi a elaboração e adoção de textos legais proclamando tais direitos e abrindo caminhos para a sua proteção. Entre eles sobressai a Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. E, entre os setores específicos abrangidos por esta atividade legislativa podem mencionar‑se os direitos económicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos, os direitos da mulher, os direitos da criança e a prevenção e punição do crime de genocídio, devendo registar‑se que todo este edifício jurídico teve enorme influência nos sistemas regionais e nacionais de proteção dos direitos humanos.

Outro importante desenvolvimento neste setor foi a criação, conforme previsto no artigo 68 da Carta das Nações Unidas, de uma comissão encarregada especificamente da proteção dos direitos humanos. Este órgão será objeto da secção seguinte.

Abordarei ainda temas relativos a um princípio – a responsabilidade de proteger – e a uma instituição – o Tribunal Penal Internacional – ambos com uma grande ligação às Nações Unidas e com importância crescente na proteção dos direitos humanos.

 

O CONSELHO DOS DIREITOS HUMANOS

Trata‑se do atual nome do órgão criado pelo Conselho Económico e Social das Nações Unidas em cumprimento do acima citado artigo 68 da Carta e ao qual inicialmente foi dada a designação de Comissão. Não se tratou, aliás, de uma alteração meramente formal, pois coincidiu com uma ampla reforma do órgão em questão. De qualquer modo, e tendo em conta que nessa altura chegou a considerar‑se a sua inclusão no grupo restrito dos órgãos principais das Nações Unidas, o que aliás não chegou a ser feito talvez porque isso implicasse uma revisão da Carta, a sua designação como Conselho pode ser vista como um índice da importância que se pretendeu atribuir‑lhe. Na vasta lista de tarefas atribuídas a este órgão destaca‑se a análise periódica da situação em matéria de direitos humanos de todos os estados‑membros. Trata‑se de um exercício cujo interesse não parece necessitar de demonstração e que denota a preocupação de dar igual tratamento a todos os estados.

Outra atividade que merece uma referência especial é o processo de queixas, que em larga medida se baseia no processo 1503, também conhecido pelo nome de processo confidencial, que existia antes da acima referida reforma. Alguns autores têm manifestado a opinião de que a confidencialidade deste processo facilita a cooperação por parte dos estados envolvidos, efeito este que fica reforçado pelo facto de o Conselho ter poderes para pôr termo à confidencialidade e os estados pretenderem evitar a concretização desta ameaça. Por outras palavras, e como observou o professor Weissbrodt, «Verifica‑se que a ameaça de publicidade é muitas vezes mais eficaz para obrigar os governos a cumprir as suas obrigações em matéria de direitos humanos do que a da própria publicidade»1.

Junto do Conselho funciona um órgão intitulado Comité Consultivo do Conselho de Direitos Humanos que é composto por peritos independentes o que, pelas razões anteriormente aduzidas ao referir‑me a este tipo de órgãos, me parece muito positivo. Devo no entanto observar que, se ele tem muitas semelhanças com a anterior Subcomissão para a Luta contra a Discriminação e a Proteção de Minorias, apresenta também algumas diferenças, em particular o facto de não poder adotar resoluções ou decisões. Antes, porém, de formular uma opinião sobre esta característica do Comité Consultivo, com a qual concluirei a secção relativa ao Conselho dos Direitos Humanos, gostaria de incluir algumas palavras acerca da referida Subcomissão.

Da minha observação dos trabalhos da Subcomissão entre 1985 e 1990 retirei uma impressão muito favorável da sua contribuição para a atividade das Nações Unidas na proteção dos direitos humanos. É claro que nem tudo era perfeito. E deve ser reconhecido que o nível dos seus membros em termos de competência profissional e de independência em relação aos respetivos governos estava longe de ser homogéneo. Mas, globalmente, o nível do trabalho produzido era bom e, num plano individual, mencionarei que um dos peritos tinha anteriormente desempenhado as funções de diretor do Departamento de Direitos Humanos das Nações Unidas (não existia ainda o lugar de alto comissário) e outro veio a ser presidente da própria Comissão. Ainda quanto à Subcomissão recordarei que ela aprovou, em anos sucessivos, resoluções relativas à situação dos direitos humanos em Timor‑Leste, num período em que os órgãos intergovernamentais exibiam uma atitude muito tímida em relação ao que se passava naquele território.

Voltando ao Comité Consultivo, reconheço que o facto de não lhe ter sido atribuída competência para adotar resoluções ou decisões me levantou a dúvida sobre se se trataria de uma boa opção, não tanto por considerar que aquele órgão em concreto deveria ter a referida competência mas por me parecer que na estrutura das Nações Unidas especificamente responsável pela proteção dos direitos humanos era útil que existisse um órgão composto por peritos independentes com capacidade para aprovar resoluções relativas a situações concretas. Tenho por outro lado a consciência de que a dimensão e complexidade da reforma levada a cabo nesta área deve ter implicado, até por razões de coerência dentro do sistema, a alteração, ou inclusive a eliminação, de regras ou práticas que, em contextos diferentes, se tinham revelado úteis. Mas uma avaliação desta natureza exigiria uma análise detalhada e ponderada de todo o sistema, a qual está fora dos objetivos do presente artigo.

 

A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER

O princípio da responsabilidade de proteger pode ser visto como uma resposta da comunidade internacional ao problema de conciliar a proteção dos direitos humanos com o respeito pela soberania dos estados. Este princípio foi objeto de um relatório elaborado por uma comissão nomeada pelo primeiro-ministro do Canadá em resposta a um desafio lançado pelo secretário-geral das Nações Unidas. A comissão foi copresidida por Gareth Evans, ex‑ministro dos Negócios Estrangeiros da Austrália, e Mohamed Sahnoun, de nacionalidade argelina e consultor especial do secretário‑geral das Nações Unidas, sendo constituída por um total de 12 membros e incluindo vários nomes de prestígio nos mundos político e académico. O relatório foi intitulado «A Responsabilidade de Proteger», tendo sido entregue ao secretário-geral das Nações Unidas em 18 de dezembro de 2001.

Na origem deste princípio está talvez a constatação de que em casos de violações particularmente graves e de carácter sistemático de direitos humanos os métodos a que tradicionalmente se recorria para proteger aqueles direitos – tais como condenações, gestos simbólicos e eventualmente sanções económicas – não eram suficientes para pôr fim às referidas violações. Por outro lado, o recurso a meios mais eficazes esbarrava normalmente com a soberania dos estados e com a proibição do recurso à força nas relações internacionais. Houve portanto que procurar caminhos que, sem destruir princípios em que assenta a paz e segurança no mundo e contribuem para a estabilidade nas relações internacionais, permitissem combater com alguma possibilidade de sucesso aquele tipo de situações. Isto implicava alguma reinterpretação de certos conceitos, mas não havia outro caminho.

Este percurso foi efetuado de forma progressiva, tendo sido feito recurso a conceitos e ações, tais como a intervenção humanitária e o dever de ingerência, com base nos quais se pretendia alcançar o objetivo descrito no anterior parágrafo. Penso no entanto que a conceção em que assenta o acima referido relatório e as soluções nele propostas apresentam sérias vantagens em relação a outras possíveis formas de lidar com esta questão. Entre tais vantagens apontarei as seguintes:

  • Assenta numa estratégia que prevê uma graduação da resposta em função das características da situação, e que coloca o emprego da força como hipótese de último recurso.
  • Esclarece que a ação a empreender ao abrigo deste princípio constitui um dever, e não um direito a que possa recorrer‑se de forma discricionária e de acordo com as conveniências.
  • Foi objeto de aprovação em documentos oficiais das Nações Unidas, designadamente o Documento Final da Cimeira de 2005, aprovado pela Assembleia Geral em 24 de outubro do mesmo ano e a Resolução do Conselho de Segurança 1674, de 28 de abril de 2006.

• Tem sido objeto de reuniões efetuadas por iniciativa das Nações Unidas visando a sua consolidação e aperfeiçoamento.

Farei seguidamente referência a algumas situações nas quais se pode ver uma certa relação com o princípio em análise, independentemente de ele ter sido ou não invocado para justificar determinada ação.

Uma delas, que se situa no início dos anos 1970, dizia respeito a uma situação extremamente grave em termos de violações de direitos humanos no Paquistão Oriental que veio a dar origem à entrada na Índia de milhares de refugiados e à penetração no território do Paquistão de forças armadas indianas. O assunto foi discutido no Conselho de Segurança, ao qual foram apresentados dois projetos de resolução de sinal contrário, não tendo nenhum deles sido aprovado. A questão passou depois para a Assembleia Geral onde foi aprovada uma resolução, mas em termos práticos esta limitou-se a pedir um cessar‑fogo imediato, não se pronunciando sobre a natureza do problema nem sobre as ações da Índia e do Paquistão quanto à sua conformidade com o direito internacional.

Em 1992, portanto já em período que podemos considerar pós-Guerra Fria, o Conselho de Segurança pronunciou-se no sentido de que a grave situação humanitária que se registava na Somália constituía uma ameaça à paz e segurança internacionais e autorizou o recurso a todos os meios necessários para que fosse possível prestar auxílio às vítimas daquela catástrofe. A decisão constituiu um importante passo na proteção dos direitos humanos, mas a ação no terreno não correu bem, o que pode ter contribuído para o retraimento dos estados e das Nações Unidas quando da crise, com características de genocídio, que veio a ter lugar no Ruanda em 1994.

Escolhi ainda para incluir nesta curta lista de situações concretas a intervenção no Kosovo em 1992 por me parecer que contém elementos de particular interesse para o tema da responsabilidade de proteger.

Em presença do conflito entre a Sérvia e o Kosovo que, para além da sua dimensão política, estava a provocar uma dramática situação humanitária caracterizada por um muito elevado número de vítimas mortais, e na ausência de progressos na Conferência de Rambouillet, na qual se procurava alcançar um acordo entre as duas partes, a NATO decidiu realizar uma intervenção militar destinada a pôr fim ao conflito e às atrocidades a que o mesmo estava a dar origem. Esta intervenção não tinha sido autorizada pelo Conselho de Segurança, que aliás nem sequer tinha chegado a receber um pedido nesse sentido em virtude de a NATO saber de antemão que qualquer projeto de resolução autorizando a intervenção seria vetado pela Rússia. Assim, de acordo com a Carta das Nações Unidas, designadamente com a disposição que proíbe o recurso à força nas relações internacionais, a ação da NATO deve ser considerada ilegal. Mas, tendo em conta, por um lado, a forma como esta questão estava a ser tratada pelo Conselho de Segurança e, por outro, a evolução que se vinha processando na área da proteção dos direitos humanos, talvez a questão da legalidade da intervenção exija uma reflexão com um âmbito mais vasto. Entre os estados que participaram na intervenção a maior parte justificou aquela ação alegando que a autorização do Conselho de Segurança estava implícita em anteriores resoluções do mesmo órgão relativas à situação no Kosovo, acrescentando alguns que a violação de tais resoluções por parte da Sérvia também justificava a intervenção. Pronunciou-se também sobre a intervenção da NATO a «Comissão Independente para o Kosovo», que elaborou um relatório que se refere à questão da legalidade da intervenção nos termos que seguidamente se transcrevem:

«The Commission considers that the NATO military intervention was illegal but legitimate. It was illegal because it did not receive prior approval from the United Nations Security Council. However, the Commission considers that the intervention was justified because all the diplomatic avenues had been exhausted and because the intervention had the effect of liberating the majority population of Kosovo from long period of oppression under Serbian rule.»2

Esta comissão tinha sido formada por iniciativa do primeiro‑ministro da Suécia e incluía entre os seus membros conhecidos internacionalistas de várias nacionalidades. Concluirei esta parte relativa à responsabilidade de proteger com algumas considerações acerca da situação atual deste princípio.

Creio poder considerar-se que o princípio decorrente da responsabilidade de proteger é aceite pela quase totalidade dos estados e organizações que integram a comunidade internacional embora com diferentes interpretações, em particular quanto às condições da sua aplicação.

A divergência mais difícil de ultrapassar diz respeito a situações em que a ação de proteção exige o recurso à força mas em que um ou mais membros permanentes do Conselho de Segurança se opõem a um tal caminho.

É claro que, como lucidamente se observa no acima referido relatório sobre a responsabilidade de proteger, no caso de o Conselho de Segurança não se coibir da sua responsabilidade perante situações de catástrofe humanitária existe o risco de um grupo de estados, provavelmente estados com mais ligações à região da catástrofe, tomarem a decisão de serem eles próprios a intervir sem esperar por qualquer autorização. Nalguns casos esta intervenção pode ter efeitos positivos, e ter sido levada a cabo por boas razões. Mas, noutros casos, a invocação de razões humanitárias por parte dos estados que decidiram intervir sem autorização do Conselho de Segurança pode ter sido um mero pretexto e o verdadeiro objetivo ser de natureza política.

O debate que teve lugar no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas em julho de 2009, tendo como tema específico a responsabilidade de proteger, pode talvez servir de exemplo a futuras iniciativas visando aperfeiçoar o regime da sua aplicação a situações concretas. Este objetivo poderia ser prosseguido através da aprovação de algumas regras ou de entendimentos que revestissem a forma de acordos informais. Entretanto, a interpretação do princípio em causa irá inevitavelmente sendo influenciada pela prática dos estados nas relações internacionais.

 

O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

O Tribunal Penal Internacional (TPI), não sendo embora um órgão das Nações Unidas, constitui contudo um importante instrumento para a realização dos objetivos daquela organização, designadamente na área dos direitos humanos.

 

ANTECEDENTES E CRIAÇÃO DO TPI

Durante a guerra de 1870 o então presidente do Comité Internacional da Cruz Vermelha, Gustave Moynier, tomou a iniciativa de propor a criação de uma jurisdição penal internacional. Mas, talvez por falta de apoio por parte dos estados, aquele projeto não chegou a concretizar‑se.

Como antecedente mais próximo encontramos os tribunais de Nuremberga e de Tóquio, ambos criados a seguir à Segunda Guerra Mundial, com o mandato para julgar crimes relacionados com este conflito. Tendo ambos concluído as suas funções, deixaram obviamente de existir.

Quanto ao TPI aponta‑se normalmente como início do processo que conduziu à sua criação uma proposta apresentada por Trinidad e Tobago à Assembleia Geral das Nações Unidas para a criação de um tribunal penal internacional, mas para o qual se previa uma competência muito mais limitada. Aquela proposta foi depois ampliada, dando‑se seguidamente início a uma tarefa em que existiu uma espécie de diálogo entre a Assembleia Geral e a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas e da qual resultou um projeto de estatuto para a instituição que viria a ser o TPI. Este projeto foi depois remetido a uma conferência diplomática onde o estatuto definitivo deveria ser discutido e aprovado. A referida conferência teve lugar em Roma nos meses de junho e julho de 1998, tendo o estatuto do tribunal – que passou a ser conhecido como o Estatuto de Roma – sido aprovado com 120 votos a favor, sete contra e 21 abstenções. Os votos contra foram dos Estados Unidos, China, Israel, Líbia, Iraque, Iémen e Qatar. Tendo a Rússia optado pela abstenção, verifica‑se que entre os membros permanentes do Conselho de Segurança apenas a França e o Reino Unido votaram a favor.

 

CARACTERÍSTICAS DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

O TPI apresenta algumas características que, no seu conjunto, o distinguem de outras instituições da mesma natureza. Designadamente:

  • a não seletividade, isto é, não ter a sua competência circunscrita a determinada situação;
  • a complementaridade, o que significa que só tem jurisdição relativamente a casos em que os estados não tenham capacidade ou vontade de exercer tal função;
  • a não retroatividade, entendida num sentido amplo, de harmonia com a qual só tem jurisdição quanto a crimes cometidos após a entrada em vigor do estatuto; a sua competência só abranger crimes com um elevado grau de gravidade.

 

AS NAÇÕES UNIDAS E O ESTATUTO DE ROMA

A relação entre o TPI e as Nações Unidas, independentemente do papel destas na criação do Tribunal, manifesta-se em vários aspectos.

Em primeiro lugar, sendo certo que muitas das mais graves violações de direitos humanos resultam da prática de crimes que estão dentro da competência do TPI, a ação deste tribunal tem desde logo um efeito de dissuasão relativamente a tais violações, representando assim uma contribuição valiosa na prossecução de um dos principais objetivos das Nações Unidas. E foi talvez a perceção da importância do TPI na proteção dos direitos humanos que suscitou o interesse empenhado de muitas organizações não-governamentais no processo de criação do TPI. Neste contexto, parece‑me justo salientar a contribuição que elas próprias deram aos trabalhos da Conferência de Roma e das reuniões que se lhe seguiram, designadamente prestando apoio a delegações com menos meios e elaborando estudos sobre questões mais complexas.

Independentemente deste elemento que aproxima o TPI das Nações Unidas, são várias as referências do Estatuto de Roma às Nações Unidas, sendo particularmente importantes a este respeito os artigos 13 e 16.

O artigo 13 atribui ao Conselho de Segurança poderes para denunciar ao Tribunal «qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários crimes» previstos no Estatuto. Esta faculdade pode ser particularmente útil se, por razões políticas, nenhum Estado quiser assumir uma posição de especial protagonismo em relação ao caso em questão.

O artigo 16, por seu turno, permite ao Conselho de Segurança, através de uma resolução aprovada nos termos do capítulo VII (o que implica não ter tido nenhum voto contra por parte de qualquer dos membros permanentes) impedir, ou interromper por um período de doze meses, um procedimento criminal, podendo o exercício desta faculdade ser renovado. A este respeito deve recordar-se que no seu projeto inicial o Estatuto estabelecia uma espécie de filtragem pelo Conselho de Segurança das denúncias enviadas pelos estados ao TPI, o que equivalia a atribuir um direito de veto aos membros permanentes quanto à possibilidade de ser dado andamento a tais denúncias. A alteração introduzida, que resultou de uma proposta de Singapura, reduz consideravelmente os poderes do Conselho de Segurança nesta matéria, aumentando em contrapartida a independência do TPI.

Referem‑se ainda às Nações Unidas os artigos 86 (7) e 115 (b). O primeiro é relativo à hipótese de um Estado recusar um pedido de colaboração formulado pelo TPI, o que nalguns casos pode levar o Tribunal a submeter a questão ao Conselho de Segurança. O artigo 115 (b) prevê a possibilidade de as Nações Unidas participarem no financiamento das despesas do Tribunal, em especial nas que digam respeito a questões remetidas para o Tribunal pelo Conselho de Segurança.

A Carta das Nações Unidas veio reforçar a posição do indivíduo através do reconhecimento ou atribuição de direitos que o ligam diretamente à ordem jurídica internacional independentemente da vontade do Estado de que é nacional ou onde tem a sua residência. Esta posição foi sendo consolidada e ampliada pela adoção de textos legais e da criação de novos órgãos e mecanismos que contribuíam para uma maior solidez daqueles direitos. A criação do Tribunal Penal Internacional, com competência direta para julgar determinado tipo de crimes e com uma ação que globalmente tem um efeito dissuasor relativamente a violações de direitos humanos, constituiu sem dúvida um passo importante na referida evolução.

 

Data de receção: 18 de maio de 2015 | Data de aprovação: 1 de julho de 2015

 

NOTAS

1 WEISSBRODT, David – «ASIL Proceedings of the 77th Annual Meeting». Washington: ASIL, 1985, p. 384.

2 The Kosovo Report, 23 de outubro de 2000.

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