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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.46 Lisboa jun. 2015

 

RECENSÕES

 

O esplendor da história política

 

David Castaño*

Investigador no IPRI-UNL onde desenvolve um projeto de pós-doutoramento sobre processo de consolidação da democracia portuguesa (1976-1982). Doutor em História Contemporânea. Tem-se dedicado ao estudo da história contemporânea portuguesa e da história das relações internacionais, centrando-se no período do Estado Novo e da transição e consolidação democrática. A sua tese de mestrado, «Paternalismo e Cumplicidade: As relações luso-britânicas 1943-1949», recebeu em 2005 o Prémio Teixeira de Sampayo. Foi um dos coordenadores da publicação da obra Portugal e o Atlântico: 60 anos dos acordos dos Açores. Entre os seus últimos trabalhos destacam-se, em coautoria com o General Garcia dos Santos, Apontamentos Políticos. Eanes e os partidos (Bertrand, 2013); Mário Soares e a Revolução (D. Quixote, 2013); e João Ninguém. Soldado da Grande Guerra, de capitão Menezes Ferreira (Bertrand, 2014).

 

Rui Lopes. West Germany and the Portuguese Dictatorship, 1968-1974. Between Cold War and Colonialism. Londres, Palgrave Macmillan, 2014, 269 páginas.

 

A tese defendida por Rui Lopes em Outubro de 2011 na London School of Economics chega agora a um público mais vasto, onde se devem incluir não apenas os estudiosos da história da política externa da República Federal da Alemanha (rfa), mas todos aqueles que se interessam por história política, entendida não como uma mera descrição cronológica dos acontecimentos, antes como um meio para compreender as múltiplas dinâmicas que se estabelecem no complexo xadrez político (em sentido lato, englobando tudo o que diz respeito à pólis, seja ele doméstico ou internacional). Para além das principais ideias-força apresentadas com rigor analítico e metodológico, baseadas num profundo conhecimento de fontes primárias e secundárias, da leitura deste livro sobressai a notável capacidade do seu autor para, sem simplificar o que é complexo, expor com clareza as ambições, contradições e condicionantes dos múltiplos agentes descritos neste trabalho, que se desenvolve em torno do binómio continuidade/ruptura da política externa da rfa em relação ao regime português durante o consulado de Marcelo Caetano. O livro encontra-se dividido em seis capítulos que analisam as pressões externas e internas que se exerceram sobre o Governo alemão (caps. 1 e 2); as tensões existentes no seio do próprio Governo federal relativamente à política económica a adoptar no relacionamento bilateral com Portugal (cap. 3); as tentativas de delimitar a cooperação militar à metrópole (cap. 4); a evolução da estratégia diplomática da rfa durante o período em questão (cap. 5); e a acção do Social Democratic Party (spd) nos contactos com a oposição portuguesa (cap. 6). Deste modo, as seis frentes estudadas (externa, interna, económica, militar, diplomática e partidária) desdobram-se, revelando as diferentes posições adoptadas pelos vários intervenientes que as compõem e lhes dão corpo. Vejamos como.

 

RUPTURA VS CONTINUIDADE

No primeiro capítulo, Rui Lopes mostra como a rfa procurou conciliar os apelos à ruptura dirigidos por alguns líderes africanos e pelos dirigentes dos movimentos independentistas com os interesses alemães, nomeadamente no projecto de Cahora Bassa, procurando em Kenneth Kaunda um aliado moderado. Apesar das críticas dirigidas contra a rfa, acusada de envolvimento na «Operação Mar Verde», e da inviabilidade dos esforços diplomáticos tendentes a promover uma abertura na política colonial portuguesa, Bona não alterou a sua posição relativamente a Portugal. Se, por um lado, manteve o seu empenho nos programas de ajuda ao desenvolvimento, por outro, não provocou uma ruptura com Lisboa, acreditando que seria possível salvaguardar as boas relações com o Governo português sem colo-car em causa o seu envolvimento com os países africanos, mesmo num momento em que o peso destes na Organização das Nações Unidas (onu) era fundamental para garantir o sucesso do pedido de admissão da rfa àquela organização internacional. Rui Lopes explica como foi possível trilhar este caminho estreito, relacionando a questão colonial com a Ostpolitik promovida pelo Governo de Bona e descrevendo como esta se sobrepôs àquela sem que houvesse oposição do Bloco de Leste, já que também este dava prioridade à détente. Paralelamente, o autor defende que as críticas dos países nórdicos à política colonial portuguesa não afectaram a via preconizada pela rfa, antes a terão deixado menos à vontade para criticar Lisboa, já que para o Governo federal era fundamental não abrir nenhuma brecha no seio da NATO no momento em que os dois blocos ensaiavam uma aproximação.

No segundo capítulo, Rui Lopes mostra outra distinção entre a posição adoptada pela rfa e os países nórdicos. Ao contrário do que aconteceu em alguns destes países, as críticas ao regime de Lisboa nunca se tornaram uma questão central do debate político interno da rfa. Apesar do crescente avolumar das vozes críticas e do seu progressivo avanço das margens esquerdas em direcção ao centro, fica patente como estas eram combatidas e contrariadas por importantes sectores da sociedade alemã, do comércio e indústria às igrejas, que ou defendiam os seus próprios interesses ou eram sensíveis aos argumentos difundidos pela propaganda difundida por Portugal. Este é um dos aspectos mais originais do livro que revela a importância dada aos média e à opinião pública alemã, tanto pelo regime de Lisboa como pelos seus opositores, trazendo novos dados sobre este domínio tantas vezes deixado para um plano secundário. Também neste campo as conclusões vão no sentido de que as pressões para a mudança não foram suficientemente fortes para conduzir à ruptura.

A frente económica terá sido aquela em que de modo mais nítido se expuseram as contradições do Governo alemão e Rui Lopes sublinha a tensão vivida entre o ministro da Cooperação Económica e alguns dos seus colegas de governo. Apesar da forte oposição daquele elemento do Executivo empenhado em contrariar o bom relacionamento existente entre os dois países no campo económico, fica patente como venceu a visão daqueles que defendiam que a promoção do desenvolvimento económico de Portugal e o fortalecimento dos laços com a Europa favorecia as forças progressistas existentes no Governo de Marcelo. Este posicionamento não se restringia ao nível bilateral. Além de defensores do acordo de comércio livre entre Portugal e a Comunidade Económica Europeia (cee), que se formalizou em 1972, alguns membros do Governo federal, nomeadamente o ministro dos Negócios Estrangeiros e o ministro da Economia, não esconderam que este deveria ser apenas um primeiro passo, ao qual se seguiria a concessão do estatuto de país associado. No fundo, tratava-se de aplicar e ajustar a Ocidente a receita que se estava a procurar implementar a Oriente. No entanto, a Ocidente continuava-se a jogar nos dois tabuleiros. Por isso, como explica Rui Lopes, se os moderados portugueses obtiveram apoio nos seus esforços para a aproximação à Europa, os ultras não foram abandonados, como defendia o ministro da Cooperação Económica, no seu projecto de Cahora Bassa.

No campo militar esta duplicidade é muito menos notória. Os laços estabelecidos entre os dois países no final da década de 1950 foram tão fortes que nem mesmo as cada vez mais audíveis vozes críticas os conseguiram desatar. Apesar das várias vicissitudes que afectaram o projecto da Base de Beja e das tentativas para minorar ou dissimular as exportações de material de guerra da rfa para Portugal, também neste caso não se pode falar de ruptura. É que, como sublinha o autor, se, por um lado, já anteriormente o Governo liderado por Kiesinger tinha refreado os ambiciosos projectos de cooperação militar gizados pelo ministro Strauss, por outro, será o próprio ministro da Defesa a defender, em 1973, que a redução dos investimentos militares em Portugal eram de ordem prática e nada tinham a ver com a política colonial portuguesa. No entanto, essencialmente devido à pressão exercida pelos próprios deputados do spd, as relações entre os dois países sentiram os efeitos da decisão aprovada em Maio de 1971 pelo Conselho Federal de Segurança, que impedia a exportação de material de guerra sem as garantias de que este não seria usado em África. Mas não é este o elemento mais saliente que resulta da leitura deste capítulo. O que sobressai é a complexidade e intensidade da teia que envolve dois países tão distintos, ligados por uma relação simbiótica quase perfeita que se pode traduzir num dado concreto: em 1970, Portugal tornou-se o segundo importador de material de guerra alemão, tendo nesse ano comprado à rfa os três maiores navios construídos nesse país desde a Segunda Guerra Mundial. Perante este envolvimento compreende-se melhor a decisão de dificultar novas exportações para Portugal. Depois de tão grande flagrante cumplicidade era necessária descrição.

Esta evolução por fases, do Governo da «Grande Coligação» ao Governo spd-fdp é analisada em profundidade ao longo do quinto capítulo que recupera alguns tópicos abordados nos capítulos anteriores.

O facto de Willy Brandt ter deixado a pasta dos Negócios Estrangeiros na «Grande Coligação» para liderar a aliança com os liberais, explica em grande parte a continuidade identificada. Nesse sentido, Rui Lopes defende que as alterações verificadas (uma postura mais interventiva a favor de uma solução para uma progressiva retirada de África e uma tentativa de envolver Paris e Londres nessa manobra) foram essencialmente respostas a um conjunto de factores externos ao Governo.

Entre estes factores destacava-se o facto de alguns deputados do spd se mostrarem particularmente empenhados na causa dos movimentos independentistas, sendo este um dos sinais daquilo a que Rui Lopes designa «frente paralela». Esta tinha outras ramificações que passavam não apenas pelos contactos com esses movimentos, mas também com a oposição ao regime de Caetano em articulação com a Fundação Friedrich Ebert. Estas ligações e a sua importância na afirmação dos socialistas portugueses é já bem conhecida. Menos difundida é a ideia defendida por Rui Lopes que entende que a acção do spd neste campo serviu não para provocar uma ruptura no relacionamento com Portugal, mas para, paradoxalmente, permitir salvaguardar as boas relações com o Governo de Lisboa, naquele que constitui um excelente exemplo da ambiguidade política de Bona.

 

PRIORIDADES

A leitura ao livro de Rui Lopes não traça, no entanto, um quadro negro sobre o maquiavelismo da política ou o pragmatismo dos seus actores. Pelo contrário, ao revelar os argumentos materialistas e ideológicos dos que defendem a ruptura e dos que defendem a continuidade, cria um retrato multicromático do relacionamento entre os dois países. Ao distinguir as várias cores existentes na tela, Rui Lopes não pinta um quadro negro mas também não cai no erro de nos apresentar uma tela em branco como resultado da sobreposição de todas as cores primárias. É que além de separar as cores e de voltar a misturá-las, o autor tem o cuidado de mostrar como elas se relacionam e como se estabelecem hierarquias cromáticas, ficando patente como é que uma cor se destacou sobre as demais.

O resultado é um retrato que centrando-se no relacionamento da rfa com Portugal, desenha-o tendo em conta outras perspectivas, integrando-o num mais complexo contexto onde também estão presentes organizações multilaterais, como a NATO, a cee, a osce e onu, os interesses do Estado federal e dos privados, as estratégias partidárias, as divergências a nível governamental, as sensibilidades ao nível ministerial, o papel da opinião pública, o relacionamento com os países africanos e com os movimentos independentistas, que explica como a rfa de Willy Brandt conseguiu subordinar estes diferentes vectores da política externa a um grande desígnio, a Ostpolitik.

 

* A pedido do autor este texto não adopta as normas do novo Acordo Ortográfico.

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