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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.46 Lisboa jun. 2015

 

RECENSÕES

 

Quase delfins

 

Pedro Aires Oliveira

Professor no Departamento de Historia da FCSH-NOVA, investigador integrado no IHC e investigador associado no IPRI–UNL. Entre 2004 e 2008 foi chefe de redação da R:I. Os seus interesses de investigação têm incidido principalmente na história das relações externas portuguesas e na história do colonialismo e da descolonização. O seu último livro é História da Expansão e do Império Português (Esfera dos Livros, 2014), em coautoria com João P. Oliveira e Costa e José Damião Rodrigues.

 

Manuel de Lucena. Os Lugar-Tenentes de Salazar. Biografias. Lisboa: Alêtheia, 2015, 371 páginas

 

Manuel de Lucena, que nos deixou em fevereiro deste ano, foi justamente celebrado como um dos intelectuais mais originais e livres da sua geração, aquela que teve o seu «batismo de fogo» na crise académica de 1962. De formação católica e monárquica, destacou-se nesse e noutros combates contra a ditadura. A rejeição da guerra colonial conduziu-o a um exílio de mais de uma década, repartido entre Itália, França e Argélia. Foi no decurso desses anos que empreendeu um estudo aturado do corporativismo salazarista, assinando um livro que permanece uma referência para qualquer abordagem ao Estado Novo – A Evolução do Sistema Corporativo Português (Perspetivas & Realidades, 2 vols., 1976). Regressado a Portugal após o 25 de Abril, desenvolveu a sua vida académica no quadro do Instituto de Ciências Sociais, onde ingressou em 1975, pela mão de Adérito Sedas Nunes. O desmantelamento e sobrevivências do corporativismo no período pós-autoritário, o estudo comparado dos fascismos, a evolução do ordenamento político-constitucional pós1976, os grupos de interesses e a institucionalização da democracia, foram alguns dos seus temas de eleição.

Em meados da década de 1990, os coordenadores do suplemento ao Dicionário de História de Portugal (ed. Figueirinhas), António Barreto e Maria Filomena Mónica, propuseram-lhe que redigisse um conjunto de entradas biográficas sobre personalidades cimeiras do Estado Novo, bem como sobre o próprio Salazar. Lucena era um perfecionista, característica que nem sempre se compagina com o cumprimento rigoroso de prazos. O seu sentido de exigência levou-o a ir muito além daquilo a que habitualmente se espera de um dicionário histórico, i.e., oferecer aos leitores o «estado da arte» sobre um determinado tema, geralmente a partir da bibliografia especializada disponível. Para produzir os ensaios aqui reunidos (a sua entrada dedicada a Salazar, dividida com António Barreto, ficou de fora deste volume), Lucena assimilou praticamente toda a bibliografia ativa e passiva dos seus biografados, tarefa complementada com alguma investigação em arquivos particulares e oficiais. As figuras aqui retratadas foram todas elas prolíficas no uso da palavra – ora como oradores, legisladores, académicos ou literatos. Numa época em que muitas comunicações se faziam ainda por carta ou telegrama, aqueles que exerceram funções diplomáticas no estrangeiro mantiveram extensa correspondência com Salazar, alguma dela publicada quando Lucena estava já embrenhado neste projeto.

 

HOMENS EM LUGARES-CHAVE

Os textos que a Alêtheia agora dá à estampa, numa edição apoiada pelo Instituto Diplomático, são as versões expandidas que o Dicionário de História de Portugal originalmente publicou das biografias de Armindo Monteiro, Pedro Teotónio Pereira, Franco Nogueira, José Gonçalo Correia de Oliveira e Adriano Moreira, indivíduos que se ocuparam de áreas nevrálgicas da política do Estado Novo – o estabelecimento do aparato corporativo, a política colonial/ultramarina e as relações internacionais. A sua atividade ao serviço do regime cobre todo o período salazarista, ou seja, as décadas de 1930 a 1960, circunstância que levou Carlos Gaspar a designar o presente volume como «a melhor biografia política do regime fascista português» – a expressão que Lucena preferia para caracterizar o salazarismo, embora com as necessárias qualificações (um «fascismo sem movimento fascista»). Com a exceção de Teotónio Pereira, todas estas figuras protagonizaram carreiras cujo desfecho não terá sido aquele que ambicionavam. Saber porque falharam, ou porque nunca foram além da sua condição de lugar-tenentes de Salazar (pois chamar-lhes delfins será pouco rigoroso, dado o cuidado do ditador em não permitir que alguém se guindasse a essa posição), poderá esclarecer-nos melhor acerca dos meandros, contradições e impasses do salazarismo.

Prefiro chamar-lhes ensaios biográficos não para sugerir um qualquer impressionismo, mas mais pelo tipo de reflexividade, de interpelação ao leitor, que esse registo muitas vezes comporta. Um dos aspetos mais aliciantes destes retratos é a forma como Lucena nos convida a tentar descobrir com ele os pensamentos recônditos ou as declarações mais sibilinas dos seus biografados. Pontualmente, arrisca também uma conjetura, insinuando, aqui e ali, um elemento de «what if ?», de «história virtual». Mas sem nunca resvalar para os psicologismos fáceis ou para a especulação gratuita.

Lucena, que tinha uma formação em direito e ciências sociais, procurou compreender o Estado Novo a partir sobretudo dos conceitos e métodos da ciência política. Doutrinas, ideias, conceitos e instituições foram o principal foco das suas reflexões, e não tanto o lado mais événementielle da história política – muito embora a atenção ao acidental e às contingências não fosse algo que menosprezasse. As cinco personalidades são fundamentalmente estudadas enquanto homens políticos, alguns de pendor mais intelectual, outros mais orientados para a ação. A dimensão mais privada ou familiar está aqui reduzida ao estritamente indispensável, e geralmente centrada nas facetas académica ou empresarial – nada de petite histoire, portanto.

 

PARADOXOS E AMBIGUIDADES

Talvez pela sua costela de ensaísta, a reconstituição do pensamento dos biografados é porventura o aspeto mais bem conseguido destes retratos. Embora seja generoso com o uso de citações, nunca temos a sensação de estar perante um mero resumo ou glosa daquilo que o biografado disse ou escreveu. De forma sempre judiciosa, Lucena procura descortinar a coerência dos trajetos, mas também o sentido menos evidente de certas intervenções, bem como alguns paradoxos e ambiguidades. Assim, o grande intérprete da «mística do império», Armindo Monteiro (1896-1955), ministro das Colónias, depois dos Estrangeiros, e finalmente embaixador de Portugal em Londres, é também aquele cuja visão exuberante da vocação ultramarina do País não deixava de conter traços de ambivalência que poderiam, eventualmente, ter viabilizado uma abordagem mais flexível e criativa aos desafios que as mudanças do pós-Segunda Guerra Mundial colocaram aos impérios europeus.

Pedro Teotónio Pereira (1902-1972) é um integralista de matriz reacionária, intolerante e trauliteiro na sua juventude, um dos mentores da Legião Portuguesa, mas, ao mesmo tempo, um reformador de sentido modernizante, responsável pelo lançamento das bases de um sistema de previdência social, e alguém que, dentro de uma visão paternalista, procurou prevenir abusos e prepotências contra as classes trabalhadoras.

Alberto Franco Nogueira (1918-1993) é o rosto da resistência à descolonização nos areópagos internacionais, mas também um taticista flexível, dentro da tradição realista clássica, que procurou romper o cerco que se ia fechando sobre Portugal através de manobras menos ortodoxas, como a sua tentativa de aproximação à República Popular da China (1964), ou o patrocínio a iniciativas que promovessem a desestabilização de países africanos hostis à política ultramarina portuguesa. E – naquela que é uma das intuições mais arriscadas de Lucena – o autor de uma teorização geopolítica sobre as «três Áfricas» (a árabe, a negra e a austral) que, se levada até às suas últimas consequências, talvez tivesse permitido ao regime encontrar uma solução prática para o impasse na Guiné.

José Gonçalo Correia de Oliveira (1921-1976) é um partidário irredutível do integracionismo ultramarino, o mentor do «Espaço Económico Português», mas, simultaneamente, o artífice da aproximação à Europa, por via da adesão à efta, decisão cujas incidências políticas dificilmente poderá ter deixado de equacionar, e um dos ministros mais relutantes em aprovar a barragem de Cahora Bassa, a grande aposta dos «falcões» do regime em finais da década de 1960.

E, finalmente, Adriano Moreira (n. 1922) é o ministro do Ultramar que lidera e organiza a resposta aos levantamentos da upa em Angola em 1961, o entusiasta de um novo surto de povoamento branco, mas, igualmente, o governante que procura modernizar o sistema imperial, enfrentando os interesses instalados que encarnavam alguns dos aspetos mais indefensáveis do domínio português em África.

Redigidos há mais de década e meia, estes textos mereciam porventura uma introdução que Lucena já não pôde preparar. Desde a sua publicação abreviada no dhp, surgiram entretanto novos estudos e materiais sobre algumas destas figuras. O autor desta recensão publicou, em 2000, uma biografia política de Armindo Monteiro, ao passo que Pedro Teotónio Pereira foi objeto de uma tese de doutoramento apresentada na Universidade de Évora por Fernando Martins, em 2004, tendo também sido editado o que faltava da sua correspondência trocada com Salazar ( João Miguel Almeida (ed.), Correspondência Política entre Oliveira Salazar e Pedro Teotónio Pereira, Temas e Debates, 2008). E também em 2008 Adriano Moreira publicou o seu volume de memórias (A Espuma do Tempo. Memória do Tempo de Vésperas, Almedina). Há portanto zonas que Lucena deixou na penumbra, ou sobre as quais pôde apenas conjeturar, que foram de algum modo iluminadas por esta literatura.

De uma maneira geral, porém, estes retratos envelheceram bem. São excelentes sínteses e contêm uma série de hipóteses que merecem ser aprofundadas, como o jogo de cumplicidades que se foi estabelecendo entre figuras imbuídas de preocupações reformistas no tocante ao Ultramar, como D. Sebastião Soares de Resende, bispo da Beira (1943-1967), Sarmento Rodrigues, governador-geral de Moçambique (1961-1964), e Adriano Moreira, para citarmos apenas uma entre várias.

Se tivesse de apontar algo menos satisfatório, mencionaria apenas dois aspetos. O primeiro tem a ver com a excessiva dependência, em matéria de fontes consultadas, dos textos dos próprios biografados, com tudo o que isso pode implicar em termos de prevalência do seu discurso autolegitimador. O segundo prende-se com uma certa reverência em relação aos mesmos. Terá isso resultado de um impulso revisionista de Lucena face a uma historiografia de pendor «antifascista» (talvez fruto da sua própria evolução para posições políticas mais conservadoras, a partir de finais da década de 1970)? Ou do natural pudor de quem escreve sobre indivíduos, como Adriano Moreira, que alcançaram um estatuto quase consensual no nosso panorama político e intelectual (veja-se, por exemplo, a omissão do papel deste na reabertura do campo do Tarrafal em 1961)? Aos leitores, que esta obra bem merece, fica a última palavra.

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