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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.45 Lisboa mar. 2015

 

RECENSÕES

 

Uma abordagem historiográfica do herói da democracia portuguesa

 

António Muñoz

Investigador de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Doutorou-se em História pelo Instituto Universitário Europeu de Florença. É autor dos livros El amigo alemán. El SPD y el PSOE de la ditadura a la democracia (Barcelona, 2012) e Von der Franco-Diktatur zur Demokratie. Die Tätigkeit der Friedrich-Ebert-Stiftung in Spanien (Bona, 2013). Trabalha sobre a política oficial da República Federal para com Portugal e Espanha, os contactos entre movimentos socialistas e a emigração laboral

 

David Castaño, Mário Soares e a Revolução, Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2013, 559 páginas

Do alto dos seus 90 anos, Mário Soares é um monumento vivo da história portuguesa. Filho de um ministro da I República, ativista desde a juventude contra o Estado Novo, fundador do socialismo português moderno, perseguido, exilado e, numa idade mais madura, ministro, primeiro-ministro, Presidente e elder statesman com projeção internacional, Soares ergue-se como referência incontornável do Portugal da segunda metade do século xx. Viveu num período histórico denso, em que a velha nação ibérica passou de metrópole imperial a província da Europa, do vergonhoso subdesenvolvimento ao hedonismo consumista e da ditadura à democracia. A vertiginosa transição entre duas épocas teve como momento crítico a Revolução dos Cravos, de que o secretário-geral do Partido Socialista foi um dos atores mais relevantes.

 

O DIFÍCIL PASSO DA MEMÓRIA À HISTÓRIA

Longe de ser uma figura consensual e indiscutível, Mário Soares ocupa, por mérito próprio, um lugar de honra na narrativa épica que a democracia lusa foi modelando sobre si mesma e sobre o seu lugar na história. Nesta narrativa, o Portugal atual surge-nos como estação terminal da longa marcha da nação lusa até à liberdade. O caminho não terminara com o colapso do fascismo, prolongando-se por mais dois anos, enquanto se exconjurou o perigo de outra ditadura, agora de pendor comunista.

O próprio Mário Soares terá contribuído para fixar na memória coletiva o seu desempenho nesta epopeia nacional. Escritor prolífico consumado, dotado de um verbo envolvente e torrencial, Soares deu forma, através de livros, artigos, declarações públicas e entrevistas imensas convertidas em best sellers, a uma interpretação equilibrada e verosímil, e ao mesmo tempo muito poderosa e influente, sobre a sua participação e a da sua família política na construção da democracia. A grandeza da personagem, a força de certos mitos em redor do 25 de abril por ele alimentados, a inacessibilidade de fontes primárias relevantes que permitiriam fixar os factos tal como realmente ocorreram ou a escassez de estudos sobre a Revolução explicam, em parte, porque é que durante muitos anos os historiadores do tempo presente olharam de soslaio para Mário Soares e não lhe dedicaram a atenção que indubitavelmente merece. O livro que aqui nos traz rompe, felizmente, com essa tendência e lança uma pedra na construção de uma interpretação historiográfica, por definição limpa dos preconceitos ideológicos da memória histórica, sobre o contributo de Mário Soares para a configuração do Portugal pós-25 de abril. O jovem investigador David Castaño, cuja tese de doutoramento está na base desta monografia, merece ser reconhecido por se ter lançado a tão ambiciosa tarefa.

Mário Soares e a Revolução tenta dar resposta à questão de como foi possível que o líder de uma organização política que a 25 de abril de 1974 não tinha mais do que cinquenta filiados conseguisse aglutinar em torno de si uma massa heterogénea da população que se opôs ao processo em curso de construção de um socialismo à portuguesa e que, no seu lugar, impulsionou a implantação de uma democracia liberal europeia. Por outras palavras, procura esclarecer as circunstâncias que levaram o ps a converter-se no ator que alcançou maiores responsabilidades na criação de uma nova ordem política sobre as cinzas do Estado Novo. Para articular o seu relato, que gira em torno da ideia de que um homem pode determinar, com as suas ações, o destino de um país, Castaño decide-se pelo enfoque da história política, na sua versão mais elevada. Aqui interessa exclusivamente a atividade de Mário Soares na alta política. O nosso protagonista contacta com  estadistas de meio mundo, negoceia a independência das colónias, discute com os seus colegas ministros, marca a agenda do ps com os camaradas de direção, reúne-se com o embaixador americano, recebe os dirigentes do socialismo europeu, dá conferências de imprensa, redige documentos, manifestos ou artigos de imprensa, e discursa na onu ou em encontros em Lisboa. De uma forma exaustiva, quase enciclopédica, reconstrói-se o labor de Mário Soares como estadista durante o prec. Tudo o que fica sob a espuma da alta política permanece na obscuridade. Não vemos o líder do ps, por exemplo, reunido com camaradas da província ou com os escassos quadros sindicais socialistas. Mas nem sequer o encontramos misturado com o povo, esse protagonista coral do 25 de abril a quem Soares fascinou por razões que se dão aqui como subentendidas. O relato avança ao ritmo da Revolução, ainda que cada capítulo tenda a articular-se em torno de uma temática dominante. Esta estrutura narrativa evita reiterações e permite pôr ordem numa história complexa e caleidoscópica, que o leitor segue com agrado, graças também à qualidade e fluidez da escrita de Castaño. Entre as fontes primárias utilizadas destacam-se pela sua qualidade as procedentes dos arquivos nacionais do Reino Unido e dos Estados Unidos, consultadas através da internet. Na bibliografia sente-se a falta de autores estrangeiros com importantes estudos sobre o 25 de abril, como Rainer Eisfeld e Mario Del Pero.

 

DO EXÍLIO ÀS NECESSIDADES

O capítulo i1 traça a biografia de Mário Soares como opositor ao Estado Novo. Centra-se na descrição do seu paciente e obstinado trabalho na formação de um partido socialista num país sem tradição socialista, e na procura de apoio internacional. O exílio revelar-se-ia fundamental para o êxito deste projeto e para a projeção política de Mário Soares na Europa e em Portugal, onde a campanha de difamação lançada contra ele pelo regime o converteu no opositor mais popular. À falta de documentação de arquivo, o autor recorre profusamente à que ainda é a principal fonte sobre Soares antes do 25 de abril: as suas próprias publicações e livros de entrevistas. Eis um exemplo que evidencia como é problemático utilizar estas fontes: na página 74 indica-se que durante o seu exílio Mário Soares foi recebido em Bona pelo chanceler Willy Brandt; a documentação de arquivo alemã desmente-o.

Os capítulos 2 a 4 ocupam-se do regresso a Portugal após a queda do regime, do trabalho como ministro dos Negócios Estrangeiros e da atividade partidária até ao início de 1975. Desde o relato dos primeiros dias da Revolução é clara a imprescindibilidade da documentação de arquivo, que a partir daqui o autor utiliza abundantemente, para historiar Mário Soares no prec. As declarações públicas, os manifestos e as entrevistas possuem um valor relativamente pequeno na reconstrução da história política desta Revolução em que a impostura e a camuflagem ideológica eram a norma. Neste sentido, a documentação de arquivo estrangeira (e sobretudo os telegramas trocados pelas embaixadas dos Estados Unidos em Portugal e na Europa com o Departamento de Estado) revela-se especialmente preciosa. E isto por duas razões. Em primeiro lugar, porque aí descobrimos um Mário Soares que transmitia a interlocutores estrangeiros as suas opiniões sobre o processo político em Portugal e as suas próprias intenções de forma muito mais explícita do que o fazia no País, inclusive perante alguns camaradas de partido. Em segundo lugar, porque esta documentação permite entender até que ponto Soares procurou, e em boa parte conseguiu, fazer do apoio internacional ao ps o motor da sua estratégia política durante a Revolução. Para mobilizar este apoio externo Soares jogou desde muito cedo a carta anticomunista. Logo na digressão pela Europa de início de maio, o líder do ps expressou a dirigentes socialistas a convicção de que sem uma solidariedade generosa da sua parte Portugal acabaria nas mãos do pcp. A procura do reforço da sua posição interna através do favor de atores externos é um padrão de comportamento em Soares que vamos descobrindo a cada passo. Assim, por exemplo, vemos Soares como ministro dos Negócios Estrangeiros a tentar mobilizar a onu e os Estados Unidos para que o ajudem a frustrar o plano de Spínola para uma lenta descolonização. Em certas ocasiões, o ministro chegou a informar a Embaixada americana do conteúdo das suas negociações com a Frelimo antes de o fazer com o Presidente de Portugal. Noutros assuntos abordados nestes capítulos, como os debates no congresso do ps ou a polémica com o ppd em torno do tema socialismo/social-democracia, a exaustividade na exposição das diversas posições e polémicas públicas é feita à custa da profundidade analítica requerida para extrair a essência do que mais não era que lutas de poder articuladas no esperanto radicalizado do prec. Colocar a questão de se Soares foi ou não marxista na primeira metade dos anos 1970, só porque ele assim se declarava, não parece, perante a sua trajetória de vida, relevante para a historiografia.

 

NA LOITA ABERTA PELA ALMA DE PORTUGAL

Os capítulos 5 a 9 ocupam-se do ano crítico de 1975 e do caminho até à vitória do ps nas primeiras eleições legislativas. Também aqui as fontes de arquivo consultadas trazem revelações interessantes e abrem novas perspetivas para compreender a meteórica ascensão de Mário Soares a figura central do prec. A ação internacional do líder do ps adquire nesses meses um protagonismo absoluto. Castaño documenta como, apesar de estar consciente de que o pcp não tinha estado implicado no 11 de março, Mário Soares lançou um apelo de socorro desesperado aos governos ocidentais. Advertindo-os de que o golpe fazia parte de uma operação de Álvaro Cunhal para implantar uma ditadura, reclamou uma mobilização massiva dos países amigos para salvar a democracia portuguesa. A reação ao 11 de março e à petição de Soares foi muito diferente em ambos os lados do Atlântico. Em Washington, Henry Kissinger deu Portugal como perdido e defendeu que se deixasse que se convertesse num mísero soviete que vacinaria o resto da Europa Ocidental contra o comunismo. Nas capitais europeias a proposta americana foi recusada e apostou-se num fabuloso impulso às medidas de cooperação dirigidas a «abraçar Portugal», para evitar que se afastasse da esfera ocidental. Instrumento-chave nesta estratégia foi ligar as ajudas à esgotada economia portuguesa, que o mfa travara no processo de construção do socialismo. Através das fontes americanas, Castaño reconstrói parcialmente a estratégia europeia liderada pelos governos socialistas (e à qual Washington acabaria por se aliar), da qual fazia também parte uma promoção consistente da imagem e do peso político de Mário Soares. Os arquivos de governos, partidos, fundações e sindicatos de França, Alemanha, Grã-Bretanha, entre outros, revelar-nos-ão nos próximos anos todas as peças necessárias à compreensão desta « intervenção pacífica » ocidental em Portugal, que contribuiu para converter Mário Soares no herói da Revolução ou, conforme outros sempre o verão, da contrarrevolução.

Este é, definitivamente, um livro maior sobre uma figura central do Portugal contemporâneo e que será durante bastante tempo uma obra de referência para todos os interessados no socialismo português, no prec e em Mário Soares.

 

Tradução: Marta Amaral

 

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