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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.45 Lisboa mar. 2015

 

SISTEMAS POLÍTICO-PARTIDÁRIOS: OS CASOS ITALIANO E ESPANHOL

 

O islamismo como ideologia política de carácter secular

Islamism as a political ideology with secular features

 

Felipe Pathé Duarte*

Professor auxiliar no ISCPSI. É doutorado e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos (IEP) da Universidade Católica Portuguesa, e licenciado em Filosofia pela Universidade de Coimbra. É investigador integrado no CIDPCC – Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, investigador associado no IEP-UCP e no CEDIS – Faculdade Direito da UNL. Foi ainda investigador visitante na Universidade de Oxford e no Counterterrorism and Homeland Security Program do Center for Strategic and International Studies, em Washington DC.

 

RESUMO

Este artigo procura interpretar o islamismo como sendo um movimento que, como outro qualquer movimento social e político, bebe de uma determinada doutrina e inspira-se numa ideologia de carácter secular que recorre a formas de acção específicas para se fazer vingar. Contudo, há uma diferença: é uma ideologia de preceitos religiosos que se transformam numa práxis imediata. Ou seja, são reduzidos a instrumentos de análise de conflitos sociais e políticos, justificando assim a dinâmica da luta pelo poder. Neste sentido, o islamismo é uma ideologia política quando, forjando fórmulas governativas bebidas do Alcorão, procura e tem como fim último a instauração de um Estado islâmico. Resta perceber qual o peso da religião nesta ideologia política.

Palavras-chave: Islamismo, islão, ideologia, movimento social.

 

ABSTRACT

Islamism is not an abstract formula of Islamic faith, or even an excess of Islam. It comes from that context, yet in another level. This article will analyse it as a movement that, like any other social and political movement, has a certain doctrine and look for inspiration in a secular ideology that uses specific forms of political action to be succeeded. However, there is a difference: it is an ideology with religious precepts that become an immediate praxis, i.e., these precepts are reduced to instruments of analysis of social and political conflicts, thus justifying the dynamics political hostile political takeover. Islamism is a political ideology when forges governing formulas, based on the Quran, that demand the establishment of an Islamic state. It remains to determine the influence of religion in this political ideology.

Keywords: islamism, Islam, ideology, social movements.

 

«na realidade, a simples privação não basta para provocar uma insurreição; se fosse esse o caso, as massas estariam sempre em revolta.»1

ENQUADRAMENTO

O islamismo contemporâneo de matriz sunita2é aqui entendido como sendo um movimento ecléctico. Tal como o islamismo contemporâneo de matriz xiita (cuja representação máxima se reflecte na actual teocracia constitucional iraniana), visa, de forma activa, não só a afirmação e promoção da fé, mas também a gestação de fórmulas governativas de inspiração islâmica. Encaramo-lo como um movimento historicamente determinado e datado (séculos xx e xxi). Está enquadrado num fenómeno reactivo e de ruptura dentro do mundo muçulmano. É entre os séculos xviii e xix que os três grandes impérios islâmicos (otomano, indiano e persa) entram em declínio por problemas demográficos, crise económica e pressão das potências colonizadoras europeias. Em reacção, num primeiro período, um pouco por todo o mundo muçulmano, procurou-se um «despertar» islâmico – da Arábia Saudita (com Abd al-Wahhab, 1703-1792) à Nigéria (com o ‘Uhman Da Fodio, 1754-1817). Em meados do século xix surgirá outro período reactivo, conhecido por «reformismo» islâmico (al-islah), e que durará até cerca da Segunda Guerra Mundial. Nesta fase destacam-se algumas correntes, como o salafismo ou o movimento tanzimat, que visavam a reforma do Estado. Por fim, ainda dentro desta linha reactiva, temos o actual islamismo e as suas diversas formas, cujo eco remonta aos anos 20 do século passado. Porém, a solidificação intelectual e a verdadeira reificação acontecerá somente depois da década de 1960.

O islamismo contemporâneo é fruto desta última fase. Teve como força motriz a exclusão do islão na fundação dos novos estados-nação pós-Império Otomano, bem como a difusão de ideologias modernas ocidentais (nacionalismos e/ou socialismos) no mundo muçulmano. Podemos assim identificar três formas distintas de islamismo.

Uma primeira de carácter mais político; uma segunda que tem uma atitude mais missionária e menos secular; e uma terceira que tem como matriz a violência armada. Por ora, foquemo-nos na primeira.

 

NOÇÕES EPISTEMOLÓGICAS

Na academia ocidental encontramos duas grandes linhas de pensamento que procuram justificar o advento deste fenómeno: uma «moderna» e outra «pós-moderna». Na primeira linha, a que doravante chamaremos de «moderna», a tendência é justificar o islamismo como um movimento reactivo e regressivo, levado a cabo por intelectuais e classes sociais urbanas menos favorecidas, contra a ocidentalização das sociedades muçulmanas. Parte da ideia de uma crise que decorre de um profundo sentimento de humilhação face ao fracasso da outrora grande «civilização islâmica». A resposta traduz-se num regresso às origens e numa recusa, abrupta e brutal, de tudo aquilo que tenha um cunho ocidental.

Assim, há autores, como Bernard Lewis ou Samuel Huntington3, que põem a tónica no choque e no confronto entre o mundo muçulmano pré-iluminista e a modernidade ocidental. Grosso modo, ambos associaram esta ascensão a factores históricos e estruturais. Para tal, são tidos em conta diversos factos: a queda do poder imperial do Califado – símbolo da unidade entre muçulmanos; os efeitos das ocupações soviéticas; o legado das cruzadas ou a presença massiva da cultura ocidental nos países islâmicos. Estes episódios são ainda associados a um sentimento de frustração e humilhação perante a impossibilidade de «modernização». Para estes autores, o choque entre a descoberta de um certo american way of life e interpretações radicais do islão terá levado a que novas «prescrições» políticas se procurassem.

Ainda na mesma linha de ideias, Olivier Roy e John Gray4encaram o fenómeno à laia de uma utopia regressiva moderna, pejada de um carácter mais secular que religioso. Aqui está bem patente a tão ocidental ideia da revolta individual e pessimista como subproduto dos conflitos que acompanham o processo de globalização. Estes autores encaram o islamismo como um híbrido político-religioso que funde ideias de mito apocalíptico com esperança utópica.

A segunda linha interpretativa da academia ocidental – a «pós-moderna» – vê este fenómeno de ruptura «de sabor islâmico» como uma manifestação reactiva à pós-modernidade ou à globalização. Daqui podemos ler o islamismo como resposta a uma perda de identidade, de autonomia cultural e de alternativa política ou moral5. No fundo, é uma procura da diferença no mundo universalizado dos valores ocidentais. Ou seja, a pós-modernidade e globalização abriram um vácuo relativista que deu margens a um cepticismo e a um irracionalismo na busca pela certeza. De uma forma genérica, segundo a linha «pós-moderna», é nesta condição que reside a base de alguns dos radicalismos religiosos contemporâneos. Ainda na mesma linha interpretativa, há quem leia o fenómeno reactivo islâmico do século xx como uma espécie de terceira fase da luta anticolonial6. Houve a luta política e a económica. Agora é a identitária e cultural. Note-se que o leque de autores que entroncam nesta linha «pós-moderna» é variado7. Um deles dirá que

«a construção da identidade islâmica contemporânea prossegue como uma reacção contra a modernização inatingível (seja capitalista ou socialista), as más consequências da globalização e do colapso do projecto nacionalista pós-colonial»8.

 

ISLAMISMO LIDO COMO MOVIMENTO SOCIAL

A estas duas abordagens ao islamismo, a «moderna» e a «pós-moderna», ainda acrescentamos uma outra, de carácter vincadamente sociológico, que aplica conceitos desenvolvidos no âmbito da «teoria dos movimentos sociais» ao estudo deste fenómeno de ruptura9. Sociólogos como Quintan Wiktorowicz, Asef Bayat, Roel Meijer ou Thomas Olesen não abordam o islamismo como um sistema monolítico10. Todavia, também não o lêem como uma especificidade do mundo islâmico em reacção. Fazendo leituras comparativas com a mecânica de outros movimentos sociais, focam-se nos instrumentos de suporte e na dinâmica social do próprio islamismo. Por outras palavras, atentam, por exemplo, na maneira como as disputas e as rivalidades se organizam. Pegam na forma como as ideias são enquadradas e propagadas, bem como na forma como os ódios e os sentimentos de injustiça são colectivizados. Em seguida, focam-se nas tácticas e estratégias adoptadas, perante as mudanças exógenas, que, segundo a «teoria dos movimentos sociais», são vistas como criadoras de oportunidades ou limitações. Aqui, nem a ideia de choque cultural nem a privação e frustração explicam a adesão ao islamismo. Além do mais, nem o próprio islão surge como um factor determinante. Procura-se evitar o estereótipo e o tipo de «essencialização» das duas linhas de abordagem anteriores. Porém, nesta fuga, cai-se muitas vezes numa espécie de «sociologização» de todo o processo, tornando a abordagem também limitada. Evitaremos as generalizações no que diz respeito à natureza e à dinâmica deste movimento – não é estático nem homogéneo nem monolítico. Para tal, teremos em conta estas três linhas interpretativas que nos ajudarão a perceber o fenómeno que está na origem do islamismo: a «moderna», a «pós-moderna» e a da «teoria dos movimentos sociais». Não obstante o seu aparente antagonismo, ser-nos-ão extremamente úteis, como veremos. Note-se que entendemos o islamismo como um movimento social. Porém, conscientes da impossibilidade de ler esse movimento na especificidade da sua dinâmica, até porque não é esse o nosso objecto, cingir-nos-emos à narrativa (discurso, linguagem e símbolos) que influi no discurso dos ideólogos, os criadores doutrinais do movimento. Esta constrói-se em torno de dois pilares: a aversão à modernidade ocidental (que inclui aspectos tão vastos como democracia, Estado-nação ou capitalismo) e um regresso à função política da religião.

Partiremos então do princípio que a adesão ao islamismo se deve a um processo de escolha racional, com uma estratégia logicamente bem definida, onde são ponderados custos e riscos. Ou seja, não interpretamos a adesão ao movimento islamista como sendo o fruto de uma escolha cega e irracional, típica de um culto religioso fanático. Lemo-la como opção de uma lógica puramente estratégica e que é motivada por uma dimensão narrativa que transparece a ideologia subjacente. Todavia, e isso é traço característico, essa pertença racional ao colectivo pressupõe a existência de uma narrativa e de uma retórica metapolítica que unifica e catalisa diferentes pretensões e sentimentos. Sublinhe-se que aquilo que define um movimento (coesão e combinação de ideias e acções) depende, em grande medida, da liderança e da ideologia11. O enquadramento ideológico, percebido via elemento discursivo, é uma variável a ter em conta para perceber o movimento.

 

A CIRCUNSCRIÇÃO IDEOLÓGICA

Os conceitos de doutrina e ideologia, embora se confundam, não são sinónimos. Por doutrina, entendemos a interpretação adaptativa de determinadas ideias com vista a uma aplicação conjuntural. Neste caso será interpretada como a doutrina islâmica, isto é, a prática do islão. A ideologia, por sua vez, traduz-se na força social à qual corresponde uma tal doutrina produzida num sistema complexo de causa-efeito. É o projecto em movimento, que, embora diferente, decorre da doutrina. Neste caso, falamos da ideologia islamista, que parte de uma interpretação holística da doutrina islâmica. Tem como principal fim a instauração de um Estado islâmico, local ou globalmente. Difere pois do islão enquanto religião, embora dele parta (a doutrina fundamentadora), assumindo-o numa pletora de símbolos e conceitos que formam o linguajar discursivo e agregador deste movimento.

O islamismo não é uma fórmula abstracta de manifestação de fé, nem um excesso de islão. Parte desse contexto. Porém, paralelamente, também procura quebrar a tradição islâmica e cultural de cada região. É um movimento que, como outro movimento social e político análogo, tem uma determinada doutrina, aplica-a ideologicamente e recorre a formas de acção específicas para a fazer vingar. Contudo, há uma diferença: a sua ideologia apresenta-se com preceitos religiosos que procuram ser transformados numa práxis imediata. Ou seja, hermeneuticamente, estes preceitos são reduzidos a instrumentos de análise de conflitos sociais e políticos, justificando assim a dinâmica da luta pelo poder.

 

UMA DEFINIÇÃO DISJUNTIVA

Até à revolução iraniana de 1979 o termo «islamismo» praticamente não existia no léxico académico e/ou religioso, nem mediático. É com Ruhollah Khomeini (1902-1989) no Irão, defensor de uma espécie de islão político e de uma teocracia constitucional, que o mundo acorda para outras formas de manifestação política que bebem do islão. Tornou-se assim imperativa a conceptualização destas manifestações. Aos olhos do Ocidente era um «islão» que se assumia e que era diferente do «outro» islão até então conhecido.

A terminologia «islamismo» não deixa então de ser uma ambígua criação conceptual da academia ocidental para englobar noções de manifestações tão variadas como o «integrismo/fundamentalismo islâmico», o «revivalismo islâmico», o «islão político» ou o «activismo islâmico»12. Estas noções ajudam a caracterizar o movimento apenas em conjunto, embora, por si só, estejam longe de ser sinónimo de islamismo. Circunscrever a ideologia islamista a um fundamentalismo, integrismo ou revivalismo não é suficiente. Podemos dizer que há um carácter essencialista de regresso à Escritura e a uma imposição do preceito religioso, aparentemente deturpado13. Porém esta noção esgota-se na componente religiosa.

Há uma natureza política, mas está ínsita na dimensão e doutrina religiosa, pelo que a definição de islamismo como islão político parece redundante ou incompleta. É de lembrar que, na prática do islão, não há a separação vestefaliana ocidental entre religião e política. A secularização não é uma realidade nesta religião. O conceito de «islão político» é de cunhagem norte-americana, tendo sido muito popularizado na década de 1980 pelo papel preponderante que ao nível governativo líderes e escolares religiosos xiitas (ulama) passaram a desempenhar14. Na verdade, para a maioria dos muçulmanos,o islão é um assunto de «praça pública», pois a doutrina para além da fé também é normativa.

Sublinhe-se que a doutrina, indissociável da lei (Shariah), postula e transmite a toda a comunidade muçulmana (Ummah) prescrições legais e imposições morais. Para Ernst Gellner o islão é um «projecto de uma ordem social (...) Isto significa que existe um conjunto de regras, eterna, divinamente ordenada, e independente da vontade dos homens, que define um ordenamento apropriado da sociedade»15. Falamos, portanto, de uma ortopraxia – de um islão religioso (din), regulador do modo de vida (dunya) e interventivo como Estado (dawla).

Desta forma, os líderes religiosos assumem sempre um papel de teólogos e juristas. O poder executivo está subordinado ao poder legislativo (lei divina), sendo que estes líderes acabam por desempenhar o papel de guardiões da integridade moral e política16. No islão não há cânones. Apenas há a lei divina per se e dirigida à Ummah. Neste sentido, parece pleonástico falarmos de «islão político». Além do mais, esta expressão pressupõe a existência de um islão apolítico, que teria existido antes de 1979. Nada mais falacioso. No islamismo procura-se, assumidamente, a moldagem de todas as esferas da vida colectiva. E o que acontece é a aceitação vinculativa de uma lei divina (Shariah), imutável, que não tolera outras de origem humana. O Alcorão e a Sunnah17são a base dessa lei. A diferença é que os islamistas encaram o islão não como mera religião, ou somente doutrina religiosa, mas como ideologia política que pode mudar as diversas esferas da sociedade. Inclusivamente, os líderes islamistas utilizam termos muito pouco islâmicos (e bastante ocidentais!) como sociedade civil, ideologia, Estado ou soberania18.

A expressão «activismo islâmico» pode ser uma boa aproximação para definir islamismo. Com efeito, o movimento procura incluir todas as linhas de acção que possam influenciar uma sociedade – do político ao cultural. Contudo, a expressão «activismo» refere-se a uma forma de acção extraordinária que procura mudança social, que quando implica regularidade, não deixa de o ser. Quando conquistada a mudança ou instituída a «acção de mudança», a ideia de activismo deixa de fazer sentido. O islamismo é então uma espécie de religiosidade activa, por oposição a uma religiosidade «passiva», e que assume uma forma politizada.

 

PRECEITOS RELIGIOSOS DE UMA IDEOLOGIA TOTALITÁRIA SECULAR

Os sistemas ideológicos totalitários são bases poderosíssimas de mobilização e legitimação19. Traçam o caminho de uma comunidade e balizam o comportamento sociopolítico em prol desse caminho. Neste sentido, não obstante as excepções, que as há, o islamismo também pode ser encarado como ideologia totalitária. Apresenta-se segundo uma fórmula de vida total, onde estão bem balizadas as actuações do foro sociopolítico e económico. Tal como se frisou há pouco, tem uma matriz que molda todas as esferas da sociedade em prol de uma causa. Todavia, idiossincreticamente, apartando-se da «aridez» secular, vai apanhar princípios e fundamentos da religião islâmica. E transforma-os em preceitos ideológicos que são utilizados na retórica política.

Em suma, o islamismo preenche ainda todos os requisitos de uma ideologia secular, porém tende em sacralizar discursivamente a sua essência doutrinal, que advém do islão. Por isso a legitimidade tende a ser mais forte. Logo, tende a ser mais mobilizadora, pois é bebida da dimensão «ideológica» e «religiosa». Esta perspectiva também se vai reflectir na liderança: para além de se seguir o líder «terreno», segue-se Allah e os ditames do seu profeta Mohammed.

Mas, embora haja uma projecção de organização sociopolítica para o futuro, o islamismo é uma ideologia regressiva e revivalista. Está virada para um passado mítico em que o islão era levado na sua forma mais pura e piedosa (salaf)20. De uma forma quase arquetípica, é estabelecido um paralelismo com os primeiros momentos do islão e com a vida do Profeta. De acordo com o Alcorão e Sunnah, Mohammed vai de Meca para Medina (hégira – hijra), criando nesta última a primeira comunidade muçulmana21. Foi o modelo concebido em Medina por Mohammed, e seguido pelos primeiros quatro califas (khulafa al-râshidun), que permitiu o apartamento da jahiliyya22. Esta é a fórmula adoptada pela ideologia islamista. Sayyid Qutb (1906-1966) é um dos grandes teorizadores do islamismo que mais e melhor exploram esta fórmula23.

Assenta num vínculo ético que une as pessoas que fazem parte da mesma sociedade, neste caso a Ummah. E sendo um movimento de carácter religioso, a ideologia que o fundamenta parte da ideia de uma comunidade política (ainda que virtual) peculiar, pois é fruto de um pacto superior às relações contingentes e precárias do quotidiano da polis. Isto significa que se dá à religião uma função de integração social e política, passando por isso a ser a trave mestra da orientação da acção dos indivíduos em todos os campos da sociedade24.

Perante o pluralismo e a fragmentação caracterizadores das sociedades contemporâneas ocidentais, o islamismo, de uma forma irrealista, procura conceber uma unidade na acção dos indivíduos que vise a transformação sociocultural. É, como já dissemos, um movimento colectivo. Utiliza uma retórica religiosa portadora de uma utopia moderna que no imediato permite uma mobilização política. A médio-longo prazo surge como fonte para a deslegitimação da ordem sociopolítica vigente, justificando também a transformação desse statu quo por meios violentos.

Aproveita-se do primado da lei religiosa islâmica (Shariah) sobre a lei positiva como meio para a realização dessa utopia. E assume a verdade da fé como balizamento da acção humana, sem qualquer tipo de mediação. Com efeito, essa mesma verdade ganha corpo político, tornando-se assim ideologia de Estado. Consequentemente, todos os instrumentos de poder político tornam-se assim formas de imposição dessa ideologia totalizante pejada de símbolos religiosos.

O islamismo não deixa por isso de ser uma ideologia revolucionária tal como outras fórmulas políticas modernas totalitárias ocidentais. Mas com a característica de ser um híbrido que funde um mito de esperança utópica ideológica com uma narrativa de laivos religiosos. Neste caso, é uma fórmula política que vai pondo em causa a legitimidade do Estado moderno ocidental.

Todavia, mais que a caracterização de identidade forjada numa determinada práxis política e religiosa, o islamismo é também marcado por uma absoluta alteridade cultural e ideológica relativamente ao Ocidente. Neste sentido, opõe-se não só ao nacionalismo secular, vigente em alguns países de maioria muçulmana desde a segunda metade do século passado, mas também às concepções mais tradicionais do islão que consideram a militância social e a política um factor de somenos.

Os ecos do islamismo contemporâneo fizeram sentir-se sobretudo na década de 1920 com a «Irmandade Muçulmana» (Ikhwan al Muslimun) no Egipto25. Porém, é a partir das décadas de 1950 e 1960, com as teorias e escritos de autores como o paquistanês Sayyid Abul A’ala Maududi (1903-1979)26 e do egípcio Sayyid Qutb27, que a ideologia subjacente ao movimento ganha corpo. É através deles que podemos perceber a matriz do islamismo.

 

A PRÁXIS IDEOLÓGICA

Se nos focarmos na fase de concretização do projecto ideológico islamista, podemos perceber uma clara estratégia política de conquista de poder. Essa estratégia tem como base dois preceitos religiosos – à resposta ao apelo e obrigações islâmicas (dawah28), deverá surgir a criação de um grupo (jama’a29) ou partido (hizb30) que se assuma como vanguarda do movimento.

Os islamistas têm como premissa base a indivisibilidade absoluta da já referida trindade islâmica: o islão como religião (din), como modo de vida (dunya) e como fórmula governativa (dawla). O seu grande objectivo passa por aplicar esta premissa a uma escala global. Para um seguidor desta ideologia o mundo encontra-se dividido entre dar al-islam (território islâmico, onde é aplicada a jurisprudência islâmica) e dar al-harb (significa literalmente a morada da guerra, mas refere-se ao território não-islâmico). No apelo à adesão (dawah), está implícito que toda a comunidade islâmica tem a tarefa de expandir o dar al-islam pelo mundo inteiro, para que todos possam partilhar de uma ordem social e politicamente justa.

Segundo o islamismo, o universo sociopolítico onde não é aplicada a jurisprudência islâmica, para além de não estar no caminho certo, tende a agir repressivamente. São pois força motriz deste tipo de retórica, duas realidades factuais. Em primeiro, há territórios historicamente considerados como islâmicos que estão ocupados por não-muçulmanos (como é o caso da Arábia Saudita – território sagrado –, Tchetchénia, Caxemira, Palestina…). E em segundo, há países de maioria muçulmana que têm governos seculares e que são repressivos para com manifestações de islamismo (como é o caso da Argélia, ou de alguns países por onde «passou» a chamada «Primavera Árabe»31– Egipto, Tunísia, Líbia, Síria, Iémen…).

Cientes que a influência do islão no político não é tão predominante como foi no passado, os islamistas têm como ponto de referência um passado ideal. Assim, para corrigir o mundo que se pensa no caminho errado e evitar a repressão de irmãos muçulmanos, tentam a restauração do Califado – o primeiro passo a dar para uma islamização (e correcção) do mundo. Há então que moldar a sociedade, tornando-a receptiva a essa transformação. Relembro Sayyid Qutb quando afirma:

«O Islão não pode cumprir o seu papel, excepto se tomar a forma concreta de uma sociedade melhor, numa nação, pois o homem não ouve, especialmente nesta altura, uma teoria abstracta que não se veja materializada numa sociedade viva (...) Se o Islão vai novamente desempenhar o papel de liderança da humanidade, então é necessário que a comunidade muçulmana seja restaurada na sua forma original.»32

O grande objectivo do islamismo é fruto de uma linha hermenêutica precisa e unilateral que procura a refundação da sociedade. Caso esta missão encontre oposição entre o statu quo, procurará subverter o poder visando a instauração de um modelo de Estado de acordo com o modelo ideal presente no Alcorão e na tradição islâmica. O unilateralismo é bem evidente no facto de o islamismo investir, acima de tudo, no âmbito político.

Todavia, contrariamente ao que se deixa transparecer, não o faz seguindo as directrizes da tradição legal islâmica. Isto é, o islamismo não vê na tradição o enquadramento necessário que permita aos crentes a estrita observância dos seus preceitos de fé e a realização da lei divina na terra dos homens. Somente na política é que está a via e o instrumento que define a inclusão/exclusão do Estado eivado de «sacralidade» (e por isso eminentemente ético) que se pretende instaurar. Por isso o islamismo, embora procurando um passado ideal, não deixa de ser uma ideologia de carácter progressista, mais secular que religiosa.

Mas, não obstante a aparente uniformidade ideológica, há uma diferenciação que pode ser feita na natureza das convicções dos aderentes, e não apenas no grau de militância. Isto é, na forma como diagnosticam os problemas do mundo muçulmano, como interpretam a lei islâmica e na forma como agem sobre os vários campos da sociedade. Importa igualmente referir que a questão da legitimidade das acções também é um elemento diferenciador.

Em suma, o corpo doutrinal é comum e a sistematização ideológica também. Difere apenas a aplicação estratégica dos preceitos, que dependem, em grande medida, da pressão contextual. Diagnósticos diferentes levam a uma variedade de prescrições. Esta categorização está longe de ser uma cristalização, pois a diferenciação das manifestações de activismo islâmico é um processo muito recente e contínuo.

Note-se que neste artigo apenas aludimos a uma forma de manifestação do islamismo que procura o poder através do dinamismo do jogo político, em vez do proselitismo religioso ou da acção armada. Trata-se, portanto, de uma manifestação política do islamismo, sendo que a organização em torno de estruturas partidárias é, por isso, uma característica. Engloba também movimentos relativamente inseridos no jogo democrático que aceitam o princípio do Estado-nação. Procuram também reforma e não apenas a revolução. São exemplos deste activismo alguns movimentos islâmicos politizados como a actual Ikhwan e diversas ramificações (Egipto, Jordânia, Palestina, Argélia, Europa…), o partido Adalet ve Kalkınma Partisi na Turquia, o Milli Görüs da diáspora turca, o Parti de la Justice et le Développement de Marrocos, ou o recém-eleito movimento Ennahda na Tunísia.

Esta forma de manifestação islamista nasce na sequência do já referido movimento «reformista» islâmico da primeira metade do século xx. Com efeito, assistiu-se a uma politização desse movimento, por oposição a um activismo de carácter mais religioso que adoptou modelos de organização contemporâneos e ocidentais, os partidos políticos. Por aqui havia uma forma de conquistar o poder do Estado e modificar as configurações governativas. A alteração levou a que as estruturas se permeabilizassem ao contexto político. Como tal, houve que as modelar de acordo com Vestefália, separando o político da esfera do religioso. Tiveram também que fazer por aceitar o princípio de Estado-nação em detrimento da ideia supranacional da Ummah. E, por último, abandonaram estratégias revolucionárias de deposição de poder, procurando a instauração do Estado islâmico através de reformas constitucionais (não obstante aceitarem a constituição como enquadramento legal)33.

A grande marca distintiva dos islamistas que adoptaram a manifestação política parte da aceitação «legal» do statu quo vigente, embora o combatam. Além disso, houve um notório afastamento das interpretações mais radicais e fundamentalistas do islão. Nos seus discursos a utopia revolucionária de Estado islâmico é posta um pouco de lado, para dar ênfase a outras lutas como a procura de justiça (al-adala), de liberdade (al-hurriyya) e, sobretudo, de luta contra a corrupção do Estado34.

Parte do seu sucesso passa por terem amarrado à sua propaganda o desejo de uma maior justiça social e política, que se foi/vai justificando pela crescente repressão e corrupção dos governos seculares dos países onde se inserem35. Será então pela prática legal da Shariah, ponto central da sua propaganda política, que estes princípios se tornarão vigentes.

Porém, há duas considerações que marcam uma diferença evolutiva nesta propaganda. Falamos, por um lado, do reconhecimento de que todos os muçulmanos devem viver de acordo com o seu tempo (afastamento da ideia de recriação do Estado islâmico de Medina), obrigando a um esforço intelectual (ijtihad) acrescido na interpretação e aplicação contemporânea. E, por outro, da necessidade de ponderação e aceitação do papel deliberativo das instâncias representativas da comunidade (parlamentos ou assembleias) no processo legislativo36.

Na manifestação do islamismo político há um apartar das concepções teocráticas de soberania, em que o exercício da mesma é apenas pertencente a Deus (tal como o concebe Qutb – hakimiyya37), para dar lugar à soberania do povo.

Porém, não obstante o lado soft que o islamismo político deixa transparecer, sob esta capa há grupos que não preconizam o jogo democrático como parte da dinâmica política. E ainda há outros que, embora se declarem como não violentos, fazem um claro apelo à acção armada. No primeiro caso temos o exemplo do Jama’at i Islami, no Paquistão, ou os golpistas da «Frente Islâmica Nacional» de Hassan al-Turabi, no Sudão. No segundo caso, embora não haja uma promoção explícita da violência, a acção política pode criar um clima de medo e desconfiança que é gerador de acção armada. Aqui, ao nível do discurso político, ainda transparece a ideia de que os muçulmanos estão sob ataque. Como tal, a reacção pode incluir violência e acção armada. São exemplos o partido internacionalista Hizb ut-Tahrir, ou o já extinto al-Muhajiroun.

 

CONCLUSÕES

A ideologia e a religião não surgiram neste artigo como conceitos dicotómicos. A aparente oposição vem como utilidade puramente analítica. Reconhecendo a grande amplitude de banda destes dois conceitos, assumimos aqui ideologia por «oposição» à religião apenas para evitar cair na ideia comum a autores como Eric Vogelin, Carl Schmitt ou Raymon Aron que se referem a religiões políticas, teologias políticas ou religiões seculares. Ao longo do texto, ideologia surgiu como fundamento de um determinado pragmatismo político que por sinal está eivado, apenas retoricamente, de preceitos religiosos. Por razões analíticas, nunca associámos o conceito de ideologia ao conceito de religião. Como tal, o termo secular apareceu para classificar um processo de ausência essencialista da religião neste registo ideológico. Ou seja, referimo-nos à autonomia não aparente que a ideologia islamista tem relativamente ao islão. Não fugindo, portanto, a outras ideologias revolucionárias que marcaram o século xx. Apesar da retórica religiosa e do forte carácter utópico e milenarista, a narrativa do islamismo é profundamente secular. Não se trata, portanto, de um subproduto ou um excepcionalismo da religiosidade islâmica, porquanto que acções em nome do islamismo não são somente a expressão de uma radicalização religiosa. Há objectivos políticos concretos, com uma justificação retórica aparentemente suportada por situações factuais. Falámos, a jusante, da presença de forças ocidentais em território muçulmano ou de uma certa tirania de governantes seculares maioritariamente islâmicos; e, a montante, de um inevitável processo de aculturação dos valores e modos de vida ocidentais, fruto da crescente globalização. Perante tamanha evidência, a análise de conteúdo da documentação que plasma esta dimensão ideológica revela-se bastante política e elegante na sua simplicidade.

Dito por outras palavras, inquinada de laivos populistas que a estiram, a ideologia islamista apresenta-se desprovida de argumentação teológica complexa para poder chegar facilmente às massas. Há então um posicionamento apontado no desencadear de um processo de adesão que, para além da condição sociopolítica factual, depende, acima de tudo, de uma dimensão pragmático-ideológica.

O preceito religioso foi lido como interpretação adaptativa de uma determinada ideia de islão, com vista a uma aplicação conjuntural. Este acaba por servir como um dispositivo heurístico que leva os activistas a pesar os custos e benefícios das suas acções e comportamentos. Para cada risco, há sempre um retorno espiritual e um avanço na polis. A partir desta dupla perspectiva, a acção em nome desta ideologia pode ser encarada como estrategicamente racional.

 

Data de recepção: 18 de Fevereiro de 2014 | Data de aprovação: 26 de Janeiro de 2015

 

NOTAS

* A pedido do autor o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

1 Trotsky, Leon – A História da Revolução Russa, 1930.

2 O islão sunita é a corrente maioritária, professada por cerca de 80 a 90 por cento dos muçulmanos do mundo inteiro. A fatia que sobra é ocupada, em grande parte, pelos xiitas, dominantes no Irão, e em número bastante significativo em países como o Azerbaijão, Afeganistão, Barein, Iraque, Índia, Líbano, Koweit e Paquistão.

3 Lewis, Bernard – O Médio Oriente e o Ocidente: O Que Correu Mal?. Lisboa: Gradiva, 2003; Lewis, Bernard – The Crisis of Islam: Holy War and Unholy Terror. Nova York: Random House, 2003; Huntington, Samuel – O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial. Lisboa: Gradiva, 2001.

4 Roy, Olivier – Généalogie de l’Islamism. Paris: Hachette, 1995; Roy, Olivier – Globalized Islam. Nova York: Columbia University Press, 2004; Gray, John – Al-Qaeda e o Significado de Ser Moderno. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2004;Gray, John – A Morte da Utopia.Lisboa: Guerra & Paz, 2008.

5 A base desta leitura está em autores como Edward Said, para quem o mundo islâmico sofreu um processo de «orientalização» por parte do Ocidente, legitimando assim a influência e hegemonia política islâmica no Médio Oriente (Said, Edward – Orientalism. Nova York: Routledge, 1978). Neste caso, a violência armada contra o Ocidente é encarada como uma forma de resistência cultural e política de uma identidade que se sente ameaçada. Os que se sentem represen-tados por essa identidade tenderam a extremar-se.

6 Burgat, Francois, e Dowell, William – The Islamic Movements in North Africa. Austin: University of Texas Press, 1993.

7 Castells, Manuel – The Power of Identity The Information Age: Economy, Society, and Culture. Oxford, ru: Blackwell Publishing, 2004, vol. ii; Esposito, John – Guerras Profanas – Terror en Nombre del Islam. Barcelona: Paidós, 2003; Esposito, John – Islam and Politics. Siracusa: Syra-cuse University Press, 1984; Gellner, Ernst – Muslim Society. Cambridge: Cambridge University Press, 1981; Gellner, Ernst – Pós-Modernismo, Razão e Religião. Lisboa: Instituto Piaget, 1994; Kepel, Gilles – A Vingança de Deus: Judeus, Cristãos e Muçulmanos na Reconquista do Mundo. Lisboa: Dom Quixote, 1992; Kepel, Gilles – La Jihad: Expansión y Declive del Islamismo. Barcelona: Ed. Península, 2002; Kepel, Gilles – The Roots of Radical Islam. Londres: Saqi Books, 2005.

8 Castells, Manuel – The Power of Identity The Information Age: Economy, Society, and Culture, vol. ii, p. 20.

9 O conceito de movimento social não é consensual nas ciências sociais. Ao longo do tempo foram forjados vários paradigmas, que, muitas vezes, entraram em conflito. Há quem se refira a uma oposição entre o chamado «modelo clássico«(europeu) – que privilegia as interpretações históricas das revoluções, remetendo às determinações estruturais dos movimentos sociais – e a «interpretação norte-americana» – que valoriza a organização e mobilização de recursos por actores sociais. Há também quem aponte a existência de quatro grandes paradigmas de movimentos sociais: o marxista, o norte-americano, o dos novos movimentos sociais e o latino-americano. Melucci, por exemplo, define os movimentos sociais não como um agente, mas como uma forma de acção colectiva, que tem como base um campo de oportunidades e constrangimentos, possuindo uma organiza-ção, uma liderança e uma estratégia bem definidas (1980). Neste artigo, encaramos o movimento social como sendo uma «ação conflitante de agentes de classes sociais lutando pelo controle do sistema de ação histórica» (Touraine, Alain – «Os movimentos sociais». In Foracchi, M., e Martins, J. S. – Sociologia e Sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Ed., 1977, p. 336).

10 Cf. Bayat, Asef – «Islamism and social movement theory». In Third World Quartely. Vol. 26, N.º 6, 2005, PP. 891-908; Meijer, Roel – «Taking the Islamist movement seriously: social movement theory and Islamist movement». In IRSH. 50, 2005, PP. 279-291; Olesen, Thomas – «Social movement theory and radical Islamic activism». In Islamism as Social Movement. Centre for Studies in Islamism and Radicalisation, Department of Political Science, Aarhus University, Dinamarca, Maio de 2009, PP. 7-33; Wiktorowicz, Quintan (coord.) – Islamic Activism: A Social Movement Theory Approach. Bloomington: Indiana University Press, 2004; Wiktorowicz, Quintan – «Social movement theory and the study of Islamism: a new direction for research». In Mediterranean Politics, Vol. 7, N.º 3, 2002, PP. 187-211; Wiktorowicz, Quintan – «A new approach to the study of Islamic activism». In IIAS Newsletter. N.º 33, Março de 2004.

11 Cf. Tilly, Charles – From Mobilization to Revolution. Londres: Addison-Wesley, 1978.

12 É importante frisar que entre muçulmanos não é comum o conceito de islamismo ou islamistas. Este termo, traduzido como Islamiyyûn (plural masculino), não existe no Alcorão. Os teóricos do islão sunita clássico (das quatro escolas teológicas mais proeminentes – hanafita, malaquita, shafita e hanbalita), seguidores da terminologia corânica, não utilizam este termo. Mesmo reformistas como Abd al-Wahhab (1703-92), fundador do wahhabismo, al-Afghani (1838-97) ou Rashid Rida (1865-1935), ambos precursores do movimento Tanzimat, nunca utilizaram o termo. Como veremos adiante, nem os escritos de Hassan al-Banna (1906-1948), fundador da «Irman-dade Muçulmana», nem os de Abu Al’a Maududi (1903-1979) ou de Sayyid Qutb (1906-1966), se referem ao «islamismo». Aliás, nem o próprio líder xiita Khomeini (1902-89) usou o termo. Releva-se o sudanês Hasan al-Turabi (1932) que, tal como os teóricos ocidentais, considera «islamistas» (Islamiyyûn) os políticos muçulmanos para quem o islão é uma solução, quer como religião e governo, quer como constituição e lei (cf. Mozaffari, Mehdi – «What is Islamism? History and definition of a concept». In Totalitarian Movements and Political Religions. Londres. Vol. 8, N.º 1, Março de 2007).

13 O termo «fundamentalismo» deveu a sua divulgação às igrejas protestantes norte-americanas, no século xi x , em defesa da fé bíblica, ameaçada por uma certa oposição do liberalismo teológico, cultural e o político, condenação da teoria da evolução, repúdio de todo o «sincretismo» na forma de diálogo inter-religioso, etc. Hoje é uma etiqueta que tem vindo a ser usada para catalogar diversos movimentos religiosos. Tem sido normalmente utilizado como sinónimo de fanatismo religioso ou regressão à indiscutibilidade do primado da religião. Distingue-se de outras formas seculares, que também predicam um fundamento absoluto para a polis no primado do livro sagrado. É, portanto, de ordem hermenêutica, pois parte da inerrância e astoricidade do conteúdo do livro sagrado. Além disso, partindo destes dois princípios, justifica um modelo integral de sociedade perfeita a partir do Livro (a superioridade da lei sagrada sobre a lei positiva), bem como o primado do mito fundacional como modelo de sociedade. (Cf. Gellner, Ernst – Pós-Modernismo, Razão e Religião; Pace, Enzo, e Stefani, Piero – Fundamentalismo Religioso Contemporâneo. Loures: Paulus Editora, 2002; Ruthven, Malise – Fundamentalism – The Search for the Meaning. Oxford, ru: Oxford University Press, 2004).

14 Cf. «Understanding Islamism», Middle East/North Africa Report N.° 37, International Crisis Group, Março de 2005.

15 Gellner, Ernst – Muslim Society, p. 1.

16 Cf. Gellner, Ernst – Pós-Modernismo, Razão e Religião.

17 Costume ou tradição do Profeta que se assume como prática normativa. Do nome deriva o termo «sunita» (ahle-sun-nah) como sendo aquele que segue a sunnah.

18 Cf. Roy, Olivier – Globalized Islam.

19 Por sistemas ideológicos totalitários entendemos aquele tipo de ideologia, virtuosa e tendencialmente messiânica, que surge como fórmula aplicável e determinante a todos os campos da sociedade. A sua práxis, ou o seu exercício de poder formal, assenta, na maior parte das vezes, no dogmatismo ideológico (normalmente sob a forma de messianismo), na identificação do partido dominante com a colectividade, na «invasão» do Estado por agentes desse poder político e num terror organizado ao serviço desse dogmatismo (cf. Zippelius, Reinhold – Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994).

20 al-salaf al-salih ou «antepassados piedosos», eram os chamados «antigos de Medina», ou seja, os companheiros de Mohammed, considerados os seus seguidores mais fiéis. As correntes salafistas defendem as três primeiras gerações de muçulmanos (o Profeta, os seus companheiros e os primeiros califas) como autoridade principal e exemplos perfeitos do islão.

21 Hégira significa partida ou emigração. Refere-se ao período em que o profeta Mohammed atravessa o deserto, indo de Meca até Medina (622 d. C.). Este período marca também o início do calendário muçulmano.

22 Jahiliyya m ermo UE ignifica «idade da ignorância», condição espiritual em que a cultura «bárbara» pré-islâmica vivia. Este termo é aproveitado por teóricos do islamismo, que o repensaram para descrever, e posteriormente condenar, todos os valores não islâmicos.

23 Cf. Qutb, Sayyid – Milestones. Nova Deli: Islamic Book Service, 2001.

24 Cf. Pace, Enzo, e Stefani, Piero – Fundamentalismo Religioso Contemporâneo.

25 Em 1928, Hassan al-Banna (1906 -1949), funda no Egipto, a Ikhwan al Muslimun, ou «Irmandade Muçulmana». Vários grupos extremistas formaram-se a partir de ramificações desta organização, sobretudo aqueles que deram origem a movimentos «jihadistas» no Egipto, na Palestina ou no Afeganistão (cf. Hus sain, Ghaffar – A Brief History of Islamism. Londres: Quilliam Foundation, 2010; Lia, Brynjar – The Society of the Muslim Brothers in Egypt: The Rise of an Islamic Mass Movement 1928-1942. Londres: Ithaca Press, 2006).

26 O pensamento de Maududi está reunido em cerca de 120 obras.

27 Tal como o Maududi, Qutb tem o seu pensamento explanado em inúmeras obras. Milestones parece ser aquela que melhor corporiza o seu pensamento, muito embora a sua obra magistral seja À Sombra do Corão (Fi Zilal al Qur’an).

28 Dawah significa, literalmente, apelo ao islão (proselitismo). Acaba por ter dois significados: convite aos nãomuçulmanos para a conversão ao islão e apelo para os que já nasceram muçulmanos se tornarem melhores muçulmanos.

29 A palavra jama’a (no plural jama’at)é usualmente traduzida como «grupo». Todavia, esta tradução falha na captura de todas as conotações que lhe são dadas na língua árabe, em que significa algo como sendo a comunidade de crentes mobilizada e em comunhão, seja para oração, autodefesa ou ainda deliberação.

30 Hizb significa literalmente partido de carácter político.

31 Por «Primavera Árabe» entendemos o processo revolucionário que teve início em Dezembro de 2010 na Tunísia, e que depressa se alastrou pelo Norte de África e pelo Grande Médio Oriente. Para além deste país, o processo teve particular incidência no Egipto e na Líbia. Tanto na Tunísia como no Egipto levou à queda dos regimes seculares nasseristas. Na Líbia, a revolução levou a uma guerra civil, com apoio tácito da comunidade internacional e à posterior queda do regime autocrático de Muammar al-Gaddafi (1942-2011). A onda revolucionária também teve forte incidência no Médio Oriente, nomeadamente no Iémen, Síria, Barein e Jordânia. O primeiro caso teve como consequência também a mudança de regime, nos dois últimos houve alteração governamental. À data em que se escreve, a Síria vive em ambiente de dura guerra civil, entre os oponentes e seguidores do regime do alauita Bashar al-Assad (n. 1965). Resta pois dizer que este ímpeto revolucionário é fortemente marcado pela volatilidade dos protestos contra os regimes, pelo efeito dominó da contestação e insurreição, e pela forma de comunicação subversiva baseada em plataformas de redes sociais disponíveis na internet.

32 Qutb, Sayyid – Milestones, p. 9.

33 Cf. «Understanding Islamism». Middle East/North Africa Report N.° 37, International Crisis Group, 2005.

34 É interessante verificar a vigência destes princípios até no nome dos próprios partidos políticos islamistas. É o caso do Parti de la Justice et le Développement de Marrocos (Hizb al-‘Adala wal-Tanmiya); ou, no Egipto, ligado à Ikhwan, o recémcriado «Partido para Liberdade e Justiça» (Hizb al-ḥurriya wa al-’adala).

35 «A Irmandade suplica a Allah que levante a tirania dos governantes opressivos e alivie o sofrimento dos muçulmanos, com a firme convicção de que Allah irá remover a injustiça e reprimir todos os opressores (e em breve os injustos irão saber as vicissitudes que as suas acções terão!)» – excerto do manifesto da Ikhwan al Muslimun intitulado «Muslim Brother-hood’s statement on “State of lawlessness”», publicado a 10 de Setembro de 2009 no sítio oficial da organização (Consultado em Dezembro de 2013).

36 Cf. «Understanding Islamism».

37 A influência de Qutb foi deixando de sentir-se na Ikhwan, expoente máximo do islamismo político, após a sua morte. Esta organização foi gradualmente afastando-se de compromissos políticos mais revolucionários e radicais, bem como da acção armada como forma de luta.

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