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Relações Internacionais (R:I)

Print version ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.44 Lisboa Dec. 2014

 

RECENSÕES

 

Os brics e África. Dois lados da mesma moeda

 

Pedro Seabra

Doutorando em Política Comparada pelo Instituto de Ciências Sociais-Universidade de Lisboa (ICS-UL) e Investigador Visitante do Instituto de Relações Internacionais-Universidade de Brasília (IREL-UnB).

 

Ian Taylor, Africa Rising? BRICS – Diversifying Dependency, Suffolk: James Currey, 2014, 194 páginas.

Pádraig Carmody, The Rise of the BRICS in Africa: The Geopolitics of South-South relations, Londres/Nova Iorque: Zed Books, 2013, 176 páginas.

 

Um quadro global de crescente demanda pela inclusão de novos polos de decisão, qualquer tentativa de posicionar África neste contexto tem resultado, invariavelmente, num exercício de soma zero, em que a adição de quaisquer novos intervenientes no continente é perspetivada como implicando uma perda significativa para os interesses preestabelecidos de potências associadas à manutenção da atual ordem internacional. Com frequência, o enfoque é colocado na presença chinesa em África bem como na sua diversificação de instrumentos de apoio ao desenvolvimento, por norma, inter-relacionados com interesses pela extração de recursos minerais locais1. No entanto, e mais recentemente, o interesse por novas categorias de análise que agreguem um número crescente de potências emergentes, tem despertado o interesse de novos trabalhos de fundo sobre o tema. Nesse sentido, os brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em particular, surgem como uma sigla extremamente apelativa, suscitando posições quer mais entusiastas quer mais comedidas sobre o seu efetivo alcance e capacidade de atuação2.

Com The Rise of the brics in Africa: The Geopolitics of South-South Relations e Africa Rising? BRICS – Diversifying Dependency, qualquer observador atento destas realidades é assim convidado a aderir a duas visões que, embora diametralmente opostas com relação à viabilidade dos brics enquanto conceito operacional, versam simultaneamente sobre a atuação desse grupo de países em África bem como sobre as potencialidades e/ou perigos que os seus mecanismos de inserção e expansão acarretam para o continente3.

 

DUAS VISÕES DOS BRICS EM ÁFRICA

Das duas obras, Pádraig Carmody assume indiscutivelmente uma posição mais abonatória deste novo conjunto de dinâmicas. Ao se debruçar sobre a suposta criação em curso de um imaginário regional distinto (por ele denominado de «espaço do Sul»), o autor procura contextualizar a presença dos brics em África no contexto de uma globalização evolutiva, enquanto elemento coletivo distinto e, por vezes, até bem-vindo face a outros atores, com ligações prévias ao continente. Carmody encontra, aliás, nas diferenças estruturais internas dos brics, a razão do seu apelo e do seu contributo positivo para a presente ordem internacional e, por inerência, para o próprio continente africano. A ascensão de tais países – ansiosos pelo acesso a mercados e recursos africanos, ele reconhece, mas menos prescritivos e intrusivos quanto à substância concreta das políticas económicas adotadas a nível local (p. 133) – em conjunto com a consolidação de um mundo multipolar é por isso assumida como quase absoluta numa lógica prospetiva de médio prazo. Ironicamente, a obra de Carmody posiciona-se como um alvo fácil para Ian Taylor que não se coíbe de criticar agudamente a «moda» em torno de tal imparável ascensão dos brics. Com efeito, o argumento de Taylor é claríssimo: no seu entender, qualquer pretenso automatismo de vantagens para África subjacente à troca de relações privilegiadas com o Ocidente por maiores interações com os brics, é ilusório e tem sido alimentado por uma retórica mediática que mascara uma relação de dependência económica, em tudo igual àquela que tem caracterizado de forma sustentada o desenvolvimento africano contemporâneo. É demonstrado assim como muito do renovado interesse em África, amplamente mediatizado, se baseia sobretudo na exportação de recursos minerais para as potências emergentes do Sul, o que permite adivinhar a manutenção da posição de subordinação do continente face à economia global (p. 153). Um argumento reforçado por referências ocasionais a Marx e a Lenine que podem surpreender os mais insuspeitos mas que são habilmente utilizadas para traçar paralelos entre o percurso atual dos brics e relações de dependência passadas, entre potências coloniais e África. Nos dois casos, as obras seguem uma estrutura de análise semelhante, dividida por estudos individualizados de cada um dos brics com relação a África. É discutível uma exceção notória: Taylor opta por não abordar a África do Sul, argumentando que a sua inclusão nos brics corresponde a um «acidente de geografia» (p. 17) e não a uma verdadeira economia emergente. No que concerne aos restantes países, no entanto, as diferenças encontram-se mais ao nível do tom adotado do que propriamente do conteúdo apresentado.

Com efeito, relativamente ao Brasil, ambos os autores reconhecem tanto os vínculos histórico-culturais bem como as dinâmicas políticas internas na base do atual investimento político e económico em África ao mesmo tempo que salientam o aproveitamento dessa relação com vista a objetivos maiores de representatividade internacional e a falta de capacidades materiais suficientes para enfrentar outros competidores (i. e. a China) pelos mesmos mercados no continente. A Rússia, por sua vez, é apresentada como o elemento mais desconectado de África, tentando recuperar a credibilidade perdida no pós-Guerra Fria e ainda extremamente dependente do comércio de armas com inúmeros países africanos. Contudo, Taylor sugere um elemento adicional interessante ao apontar o «viés europeu» com que a Rússia observa África, procurando concentrar os seus investimentos em potenciais ou atuais fornecedores de energia africanos à Europa, assegurando assim a manutenção do seu protagonismo nesta área em múltiplas frentes. Por outro lado, e como que acusando a crescente atenção pública, a presença chinesa em África acaba por merecer uma visão relativamente realista de parte a parte. Com efeito, se Cardogy faz uso do caso da Zâmbia para demonstrar as diversas vertentes da China em termos de iniciativa pública e privada (pese embora a sempre difícil distinção entre uma e outra), Taylor, por sua vez, ambiciona um equilíbrio periclitante entre a desconstrução das particularidades do «modelo chinês» face às propostas do Ocidente e a desmistificação de um suposto «neocolonialismo» associado às suas ações no terreno. Final-mente, ambos os autores optam ainda por salientar de forma bastante crítica o papel da Índia, quer em termos de política de aquisição de terras no continente quer em termos das fragilidades internas do próprio processo de desenvolvimento indiano, com reflexos numa eventual estratégia consistente relativamente a África. Independentemente da sequência de lei-tura, as duas obras almejam apresentar-se como guias incontornáveis para melhor compreender estas dinâmicas em evolução, se bem que com diferentes bases de sustentação. O nível de detalhe de Taylor e o recurso a inúmeros dados quantitativos de múltiplas fontes institucionais, por exemplo, não encontram paralelo no trabalho de Cardogy. Contudo, é também possível questionar se a criação recente do banco dos brics e a expectativa eufórica gerada quanto à utilização das suas futuras linhas de financiamento com vista ao desenvolvimento Africano4, não suaviza, de algum modo, acusações de uma falta de abordagem/interesse coerente dos brics para com o continente. Sem resultados concretos ainda para apresentar, é um facto, mas tal iniciativa terá de ser acompanhada e forçosamente tida em conta em linhas de pesquisa subsequentes sobre o tema.

 

A ESCOLHA AFRICANA

Isto dito, a dúvida transversal que emerge por entre ambas as obras permanece: serão os BRICS capazes de efetivamente constituir uma alternativa ao modelo de desenvolvimento económico e às parecerias adotadas por África nas últimas décadas? A resposta mais em voga parece subscrever por inteiro os benefícios associados à não-condicionalidade e não-interferência, entusiasticamente professos por esse grupo na sua expansão para África e cada vez mais amplamente reconhecidos por variadas organizações internacionais como elemento positivo para a transformação económica e desenvolvimento sustentável locais5. Contudo, também se configura como evidente que tal tipo de avaliação laudatória corre o risco de ignorar prematuramente o ciclo económico vicioso sustentado por uma mera diversificação de novos destinos consumidores de recurso naturais. A resposta mais plausível para este puzzle parece assim situar-se algures entre os dois lados da mesma moeda, acabando por refletir essencialmente o prisma de competição aguda que o continente Africano tem despertado no contexto internacional bem como as dúvidas e questões que estes novos atores em ascensão suscitam no caminho para uma maior representatividade e assertividade internacionais. Em qualquer dos casos, e quer se considere este conjunto de países individualmente ou de forma coletiva, os BRICS constituem hoje parte integrante e ativa das relações externas Africanas e nesse sentido, as duas obras posicionam-se, indubitavelmente, como os primeiros capítulos meritórios de uma análise que se afigura tanto atual quanto necessária.

 

NOTAS

1 Cf. ALDEN, Chris, LARGE, Daniel e SOARES DE OLIVEIRA, Ricardo – China Returns to Africa: A Superpower and a Continent Embrace. Londres: Hurst, 2008; BRAUTIGAM, Deborah – The Dragon’s Gift: The Real Story of China in Africa. Oxford: Oxford University Press, 2011.

2 Para posições contrastantes ver, por exemplo, KORNEGAY, Francis e BOHLER-MULLER, Narnia – Laying the BRICS of a New Global Order: from Yekaterinburg 2009 to Ethekwini 2013. Pretoria: Africa Institute of South Africa, 2013; BEAUSANG, Francesca – Globalization and the BRICs: Why the BRICs Will Not Rule the World For Long. Hampshire/Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2012.

3 A evolução do interesse pela inclusão dos BRICS como tópico exclusivo de análise, refira-se, é igualmente visível quando em comparação com trabalhos anteriores dos autores aqui em questão. No seu livro anterior, Taylor optou por analisar os Estados Unidos, Reino Unido, França União Europeia, Índia, China e atores não-estatais enquanto influências das relações externas dos países Africanos enquanto que Carmody focou-se nos interesses dos Estados Unidos, Europa, China, Brasil e Índia em relação a África. Ver, TAYLOR, Ian – The International Relations of Sub-Saharan Africa. Nova Iorque/Londres: Continuum, 2010; CARMODY, Pádraig – The new scramble for Africa. Cambridge: Polity Press, 2011.

4 GUMEDE, William – The Brics development bank can release Africa from World Bank tyranny. [Consultado em: 12 de novembro de 2014] Disponível em: http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/jul/17/brics-development-bank-africa-world-bank-tyranny

5 Cf. Africa-BRICS Cooperation: Implications for Growth, Employment and Structural Transformation in Africa. Addis Ababa: United Nations Economic Commission for Africa, 2013.