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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.44 Lisboa dez. 2014

 

POTÊNCIAS EMERGENTES E DEMOCRACIA

 

Indonésia: uma leitura das eleições de 2014

Indonesia: an overlook on the 2014 elections

 

Nuno Canas Mendes

Professor auxiliar do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna. Vice-presidente do Instituto do Oriente, onde é investigador coordenador da área de Construção e Fragilidade de Estados. Doutorado em Ciências Sociais, na especialidade de Relações Internacionais. Entre 2005 e 2008 foi colaborador do Instituto Diplomático do Ministério\ dos Negócios Estrangeiros. Presidente da Assembleia-Geral da Associação Ibero-Americana de Estudos de Sudeste Asiático (AIA-SEAS). Membro do Conselho Editorial da revista Portuguese Journal of International Affairs e da Janus-E-Journal of International Relations. Autor de vários livros e artigos sobre história das relações internacionais, diplomacia, integração regional no sudeste asiático e construção do Estado em Timor-Leste.

 

RESUMO

A complexidade do processo de transição para a democracia na Indonésia cria a oportunidade de uma avaliação cuidada das eleições presidenciais de julho de 2014 e das legislativas de abril do mesmo ano, por forma a identificar sinais de mudança e a verificar permanências. Este artigo procurará, antes de mais, relatar os eventos eleitorais de abril-julho, descrevendo protagonistas e temas de campanha, focando, a traço grosso, fraturas e continuidades, semelhanças e diferenças. O texto refletirá necessariamente uma tensão entre o atavismo e a pulsão para a transformação reformista que, desde 1998, tolda o discurso e a vida política na Indonésia.

Palavras-chave: Indonésia, eleições, democracia, política externa.

 

ABSTRACT

The complexity of the democratic transition in Indonesia creates the opportunity of an interpretation of the July 2014 Presidential elections and of the April 2014 Parliamentary elections. The purpose of this analysis is to identify signs of change and continuity. This article will focus on the electoral events of April and July, describing the protagonists and the campaign main issues in order to explain ruptures and continuities, similarities and differences. The text will reflect the tension between atavism and the drive for reforms which, since 1998, influenced the discourse and political life in Indonesia.

Keywords: Indonesia, Elections, Democracy, Foreign Policy

 

A complexidade de apreender o processo de transição para a democracia na Indonésia cria a oportunidade de uma avaliação cuidada das eleições presidenciais de julho de 2014 e das legislativas de abril do mesmo ano, por forma a identificar sinais de mudança e a verificar permanências. É importante referir que na curta história da Indonésia da era pós-Suharto e da consolidação das instituições democráticas, estas foram as terceiras eleições presidenciais diretas, depois de 2005 e de 2009, e um teste importante à solidez do sistema1.

A uma pretendida, ou pelo menos anunciada, mudança no status quo sobrepõem-se traços claros de continuidade da ordem antiga, sendo os avanços e os recuos uma inevitabilidade. Com uma história marcada pelos períodos da «democracia guiada» e da «ordem nova» e por uma ideologia de Estado (Pancasila, designadamente no quarto princípio)2, não se ensairá uma reflexão sobre o conteúdo de um conceito indonésio de democracia, nem sequer uma tentativa, necessariamente prematura, de apreender se estas eleições tiveram um impacto de relevo no funcionamento das instituições e do sistema político. Se é verdade que a liberdade de expressão e de imprensa foram em certa medida adquiridas ou que a sociedade civil dá mostras de grande dinamismo, há uma pesada herança kkn (de korupsi, kolusi e nepotisme, ou seja, corrupção, conluio e nepotismo) que tende a ensombrar a aproximação reformista a um modelo «universal ocidental», como parece propor Joko Widodo, conhecido por Jokowi, o sucessor de Susilo Bambang Yudhoyono na chefia do Estado.

Este artigo procurará, antes de mais, relatar os eventos eleitorais de abril-julho, descrevendo protagonistas e temas de campanha, focando, a traço grosso, fraturas e continuidades, semelhanças e diferenças. O texto refletirá necessariamente uma tensão entre o atavismo e a pulsão para a transformação reformista que desde 1998 tolda o discurso e a vida política na Indonésia. Num primeiro passo, dar-se-á conta do legado do Presidente Susilo, para percorrer a trajetória recente do país desde 2004.

 

A HERANÇA DE SUSILO

O fim da era Suharto deu lugar a uma fase «transitória», em que à reformasi (reforma) se sobrepôs uma via populista, por vezes com violência intercalada. Foi assim com Habibie, depois com Wahid e com Megawati. As elites oscilavam entre o caminho da estabilidade económica e a urgência na reforma das instituições, pondo em discussão o modelo do Estado e do nacionalismo indonésios, inclusivamente o próprio princípio que norteara a fundação do país e que é a sua divisa: «unidade na diversidade», ao ponto de se terem traçado, sobretudo em 1998 e em 1999, cenários mais catastrofistas de fragmentação, com o caso do referendo em Timor a suscitar a questão da autonomia regional. Com efeito, a fórmula «uma nação, um Estado, uma língua» inscrevia-se então num equilíbrio político instável, ainda tributário de uma tradição autoritária, em que um tripé constituído por Forças Armadas (abri – Angkatan Bersenjata Republik Indonesia, reconvertidas em tni – Tentara Nasional Indonesia, e separadas das forças policiais), burocracia e partidos políticos, articulados, constituíam o aparelho3. Transcorridos cerca de quinze anos, o estado de coisas, no que ao citado tripé diz respeito, não mudou tão radicalmente, não obstante a «domesticação» dos militares, mais subordinados ao poder civil ou a maior estabilidade política alcançada a custo por Megawati e confirmada com Susilo.

Da história da transição para a democracia na Indonésia, esta foi, desde 1998, a quarta passagem de testemunho presidencial ocorrida de forma pacífica, após o cumprimento dos dois mandatos pacíficos de Susilo (2004-2014). Com efeito, foi durante o período de Susilo que terminou a «guerra civil» no Aceh, que a economia cresceu numa taxa média de cinco por cento durante os dez anos, que o rendimento per capita triplicou, e que a liderança indonésia da asean não foi disputada ou ainda que ocorreu a admissão no G20.

Mas se estes sinais fazem adivinhar um percurso otimista, outros há que denunciam a persistência de problemas estruturais: de entre as críticas mais vincadas, está a de Susilo ter arriscado pouco no lançamento de reformas que não só poriam em causa a coligação governativa como também teriam um previsível efeito na opção pela estabilidade: a corrupção de alto nível, o favoritismo e a colusão (o citado kkn) continuaram a ser a prática na condução dos negócios políticos e económicos, o Partido Democrático de Susilo em particular, incluindo membros do Governo4.

Outra das áreas em que foram detetadas regressões foi nos direitos das minorias religiosas, pelo Presidente ter tolerado que grupos conservadores muçulmanos trouxessem para discussão uma nova ortodoxia religiosa menos liberal e moderada (casos de milícias radicais que atacavam a seita Ahmadi, xiitas e grupos não-muçulmanos). Também no que à economia diz respeito é de sublinhar que o crescimento económico, pouco sustentado, assentou essencialmente no setor das matérias-primas de capital intensivo, que mais de 60 por cento dos indonésios estão envolvidos no setor informal e que 43 por cento vivem com menos de dois dólares por dia. No setor das infraestruturas, sobretudo na rede viária, elétrica e de portos, em grande medida ultrapassados ou obsoletos, verificou-se um desinvestimento, representando menos de quatro por cento do pib (cerca de metade do que Suharto gastava nos anos 1990). Este tema foi um dos motes da campanha de Jokowi, que o considerou um dos objetivos a cumprir durante o seu mandato, caso fosse eleito. Ainda uma área sensível foi a manutenção de subsídios à energia, que representaram 21 por cento da despesa total do Governo, e beneficiavam sobretudo a classe média. Trata-se pois de um legado em que se detetam omissões importantes. Antes de passar à próxima secção, vale a pena recordar as palavras «premonitórias» sobre os novos ventos de mudança política que Rizal Sukma, diretor-executivo do célebre csis de Jacarta escreveu no Jakarta Post, depois da reeleição de Susilo:

«No entanto, é provável que por volta de 2014, o panorama político da Indonésia se caracterize por uma mudança geracional. [...] Ainda que Magawati permaneça na liderança do partido depois da eleição presidencial de 2014, o pdi-p também tem dado passos que facilitam a emergência de novos líderes. [...] A verdade é que na Indonésia não faltam novos líderes. Estes podem ser encontrados entre as organizações civis, a comunidade empresarial, e entre o público em geral. [...] No entanto, três desafios relacionados com a mudança geracional têm que ser tidos em conta. Primeiro, a geração mais velha de líderes tem de aceitar que não pode estar no poder para sempre. Segundo, é imperativo que os jovens líderes demonstrem que são de facto capazes de governar o país. Terceiro, tanto os líderes mais antigos como os mais novos deveriam trabalhar juntos para assegurar que a transição de poder ocorrerá de uma forma pacífica e democrática»5.

As três premissas de Sukma estão ainda por cumprir, nessa tensão entre atavismo e renovação. Num segundo passo, ensaiar-se-á traçar os perfis dos dois candidatos à Presidência, por incarnarem esta tensão, e só depois será feita a interpretação das eleições legislativas de abril de 2014 que, antecedendo as presidenciais, vão naturalmente influenciar o desempenho do candidato escolhido.

 

PERFIS DOS CANDIDATOS E TEMAS DE CAMPANHA

A polarização das candidaturas de Joko Widodo, dito Jokowi, e Prabowo Subianto, muito diferenciadas no estilo de atuação de cada um dos atores e menos nos respetivos discursos, espelha de certa forma a persistência de uma Indonésia marcada por décadas de autoritarismo, militarismo e corrupção, pelo enraizamento do kkn, por um lado, e pelo anseio de aproximação aos cânones democráticos, com garantias mais fiáveis de exercício das liberdades e garantias dos cidadãos, incluindo uma melhoria do nível de vida, por outro.

O debate revelou, porém, que esta polarização identificou de certa forma um e outro candidato como símbolos de uma velha e de uma nova Indonésia, sendo portanto menos notória a existência de programas eleitorais substancialmente diferentes, pois a agenda doméstica e a tónica numa Indonésia forte em termos económicos foram os tópicos dominantes na campanha de um e de outro. Ambos convergem no apelo aos valores nacionalistas, de engrandecimento da Indonésia, como prescreve o Pancasila com a ressalva de que Jokowi é tido como um entre iguais, e neste sentido representa o que se pode sublinhar como uma alteração sensível ao predomínio da elite javanesa no poder. De certa forma, há uma reedição do confronto entre uma visão aristocrática e étnica dos priyayi6, que apontava no sentido de um despotismo esclarecido, paternalista e educativo, e uma visão populista, igualitária e parlamentarista que vingou entre 1950 e 1959, até sobrevir a democracia guiada de Sukarno7.

Os dois candidatos tinham, com efeito, perfis bastante distintos, como se verá pelo retrato de ambos que se esboça de seguida.

 

JOKOWI: UM «NOVO» PERFIL DE LIDERANÇA

O vencedor das eleições presidenciais, Jokowi, é um empresário de mobiliário, que geriu o município de Surakarta, uma cidade de dimensão média em Java Central, tendo-se destacado pela qualidade de várias medidas tomadas em exercício de funções que o guindaram para a vitória nas eleições municipais em Jacarta, em 2012. Em março de 2014, Megawati Sukarno Putri anunciou o seu nome como candidato às eleições presidencias pelo pdi-p (Indonesian Democratic Party of Struggle). Admirado pelo seu desempenho enquanto autarca, Jokowi teve pouca experiência política, o que na fase de candidatura à Presidência parece ter-se revelado um trunfo. Jokowi é visto como um produto da nova era pós-Suharto, pelo percurso que foi fazendo até chegar a governador de Jacarta, não tendo outro tipo de «credenciais» que não o seu mérito pessoal, o que antes de 1998 dificilmente poderia ter sucedido em termos idênticos. A sua abordagem próxima à população, o facto de ser um self-made-man e a ênfase na reforma burocrática, na melhoria dos serviços e na melhoria do bem-estar económico e social, granjearam-lhe grande apoio. Alguns analistas detetaram-lhe semelhanças com Sukarno, evocando questões como a unidade nacional e a soberania, a cooperação entre todos os grupos sociais, algumas ideias de coletivismo económico e críticas ao individualismo liberal8.

O facto de Jokowi não ter um passado ligado às Forças Armadas nem ao anterior regime deu-lhe a aura de «impoluto» e a sua insistência no reformismo no sentido do reforço das instituições democráticas, na redução da dependência do exterior ou nos «valores indonésios», foram fatores decisivos para garantir a não muito folgada margem de vitória nas eleições presidenciais. Dir-se-ia que o eleitorado lhe reconheceu uma espécie de «autoridade moral» para debater tais assuntos. Estará ainda por averiguar o que a revolusi mental, que apela em primeiro lugar ao plano individual mais do que a uma vasta gama de transformações sociais, vai traduzir em matéria de combate à corrupção e de afirmação da meritocracia em detrimento do clientelismo. Esta mescla de apelo ao nacionalismo e de combate aos interesses instalados, aliás também um dos temas fortes do discurso do seu rival, exigirá um esforço grande para ser concretizada.

 

PRABOWO: A VELHA «NOVA ORDEM»

O derrotado, general reformado Prabowo Subianto, líder do Movimento da Grande Indonésia (Gerindra), é uma figura herdada da era de Suharto, seu ex-genro, tendo abandonado as Forças Armadas (então designadas de abri) em 1998, na sequência do seu envolvimento no rapto de estudantes ativistas políticos. Embora tenha professado o seu respeito pela democracia, pela independência dos meios de comunicação e pela importância de uma sociedade civil ativa, tem na sua biografia e na sua retórica, elementos perturbantes que pareciam apontar para a eventualidade de um regresso ao passado.

É o típico produto da Ordem Nova: filho de um ministro da Economia, foi recrutado para as fileiras das abri onde fez uma fulgurante carreira e foi comandante das forças especiais Kopassus9. Para além dos lugares públicos que ocupou, é um homem muito rico, com relações familiares próximas no negócio de exportação de madeiras e outros recursos naturais. Mas para além deste seu passado, foram detetados alguns elementos na sua campanha, designadamente as suas declarações acerca de um regresso à Constituição de 1945, ou seja, da concentração de poderes nas mãos do Presidente, e removendo, virtualmente, todos os mecanismos democráticos introduzidos sucessivamente pelas revisões à lei fundamental ocorridas desde 1998, incluindo as eleições diretas presidenciais e locais.

Acresce que, em sua opinião, há uma estreita ligação entre democracia e corrupção e outros males que afetam a sociedade indonésia. A sua personalidade truculenta, os tiques autoritários e o seu discurso de tom salvífico, foram lidos como um potencial risco para o funcionamento regular das instituições, mesmo assim, e significativamente, com uma derrota muito próxima em termos do resultado do opositor.

 

AS ELEIÇÕES DE ABRIL DE 2014

Ambos os candidatos estão associados a coligações de partidos, pois nas eleições legislativas de abril de 2014 nem o pdi-p nem o Gerindra alcançaram um número de votos suficiente que lhes garantisse margem confortável para governar. O pdi-p registou 18,9 por cento dos votos e o Gerindra atingiu os 11,8. Com a formação das coligações, Prabowo conquistou 347 lugares na Dewan Pewarkilan Rakyat (a Câmara dos Representantes, dpr), contra 213 para Jokowi. Embora Jokowi se tivesse revelado um fenómeno mediático, não era garantido que tivesse uma vantagem confortável. O ato eleitoral confirmou-o, deixando-o agora limitado no exercício das suas funções presidenciais. O facto de não ter disposto de muito tempo desde que foi proposto para Presidente em março, toldou a otimização de resultados para as eleições legislativas.

 

 

O pdi-p de Jakowi, sendo embora o partido mais votado, não conseguiu atingir os 25 por cento necessários para apresentar o seu próprio candidato presidencial. E foi por este motivo que teve de se coligar com os partidos citados, por forma a que Jokowi pudesse entrar na corrida.

A coligação de Jokowi inclui, para além do pdi-p, o Partido Nacional do Despertar (pkb, formado por comunidades islâmicas sincréticas, de Java Oriental), o Partido Democrático Nacional (NasDem, resultante de uma organização da sociedade civil) e o Partido da Consciência Popular (Hanura), do general Wiranto. Jokowi não negociou lugares de vice-presidente ou de ministros com os partidos da coligação, argumentando que se poderiam juntar todos aqueles que apoiassem o seu projeto político mas sem a promessa de que teriam envolvimento no governo; a escolha para vice-presidente recaiu sobre o anterior vice-presidente Jusuf Kalla. Com forte apoio nos social media, Jokowi conseguiu enfrentar com eficácia as tentativas de assassinato de caráter promovidas pelo seu rival e as acusações de que era cristão, comunista ou chinês. Jokowi penetrou nas zonas rurais e conquistou os eleitores das classes mais desfavorecidas, paradoxalmente por um certo desgaste induzido pela cobertura televisiva das campanhas, em que algumas estações tomaram de forma nítida o partido de Prabowo10. Desenvolveu uma postura de aproximação a outras religiões que não o islão e fez o mesmo com a comunidade de origem chinesa.

Prabowo juntou na sua coligação «Vermelha e Branca» o Gerindra ao histórico Golkar, partido do governo no tempo de Suharto, ao pd e a três partidos islâmicos, o Partido do Mandato Nacional (pan), o Partido do Desenvolvimento Unido (ppp) e o Partido da Justiça Próspera (pks, apontado pela sua inspiração na Irmandade Islâmica e pelas ligações ao Hamas e à Jemaah Islamiyah), tendo escolhido para vice-presidente o antigo ministro da Economia de Susilo, Hatta Rajasa11. De referir que o Golkar recebeu mais votos do que o próprio Gerindra. Vale a pena mencionar que algumas correntes do islão indonésio, que haviam militado no movimento anti-Suharto, em 1998, alinharam com Prabowo, designadamente o pan, que tem uma larga base de apoio na organização islâmica Muhammadiyah, e é liderado pelo referido Hatta Rajasa12.

Como se referiu, um e outro embutiram aos respetivos discursos uma tónica nacionalista, com Prabowo a considerar que o aumento do investimento estrangeiro era uma traição à pátria e Jokowi a insistir numa espécie de autossuficiência nacional para vários setores, incluindo o alimentar. Prabowo adotou também um registo populista de desafio ao sistema existente, querendo despertar uma certa nostalgia do regime autoritário e demarcar-se da classe política atual pela insistência na denúncia da corrupção13. Um discurso antissistema e antielite, o que, atendendo ao seu passado não muito distante, foi, no mínimo, paradoxal. Descolar do seu percurso biográfico terá sido uma das dificuldades que sentiu, pois confrontou o apelo à reforma com alguns temas sensíveis herdados da velha Indonésia, como a questão da «justiça transitória» e a condenação dos militares acusados de violação dos direitos humanos, cujos resultados «inconclusivos» terão sido moeda de troca para a saída de cena dos militares da política (o célebre dwifungsi)14.

 

OS RESULTADOS. O RECURSO AO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

As eleições presidenciais tiveram lugar a 9 de julho de 2014 e o apuramento dos votos durou cerca de duas semanas. Os resultados alcançados deixaram os candidatos em valores muito próximos, com 53,15 por cento e 46,85 por cento dos votos, ou seja, Jokowi recebeu o apoio de 70 633 576 eleitores e o seu rival de 62 262 844 eleitores15. A diferença, com uns expressivos seis por cento, espelha a perceção do eleitorado de que as propostas de governação não tinham conteúdos radicalmente diferentes; a esperança na reformasi e a aura de Jokowi só lhe renderam uma margem de escassos seis por cento.

No dia em que a comissão de eleições ia apresentar os resultados finais e conhecendo-se já a vitória de Jokowi, a coligação de Prabowo contestou os resultados, reputando-os como ilegais, e apresentou queixa ao Tribunal Constitucional, alegando que haviam sido cometidas irregularidades várias. Verificou-se que Prabowo não tinha provas suficientes para alegar a prática de fraude e a compra de votos.

A 22 de agosto de 2014, a sentença do Tribunal Constitucional confirmou a decisão da Comissão Nacional de Eleições (kpu), afirmando Jokowi como o novo Presidente da Indonésia. A tomada de posse ficou agendada para o dia 20 de outubro de 2014, depois da realização da Cimeira da asem, em 16 e 17 de outubro. O presidente do Tribunal, Zoelva Hamden, concluiu que as alegações da coligação de Prabowo eram vagas e inconsistentes16.

 

POLÍTICA EXTERNA: «CONSTANTES E LINHAS DE FORÇA»

Não tendo sido tema forte da campanha, é importante dar conta das constantes e linhas de força do posicionamento da Indonésia nas relações internacionais, nas esferas regional e global.

É esperado que seja mantido o rumo da política externa dos últimos anos, durante os quais se aprofundou a presença da Indonésia nos fora regionais e globais (é membro do G20 e da Organização de Cooperação Islâmica). Nesta postura, a sua liderança do grupo asean tem tido um enfoque especial nas relações com Pequim a propósito do mar do Sul da China. Dado o tom eminentemente nacionalista da campanha, não foi revelada nenhuma orientação especialmente inovadora. Com efeito, no que toca às relações internacionais, conhece-se mal o pensamento de Jokowi acerca das relações com a China, os Estados Unidos, a Austrália ou o posicionamento da Indonésia na asean, sobre as disputas no mar do Sul da China e outros temas polémicos. Em todo o caso, afirmou a sua confiança na diplomacia e na negociação para alcançar bons resultados, embora também tenha dado sinais de uma certa preferência pelo protecionismo nos setores bancário, dos recursos naturais, da indústria e do ambiente17.

Com os Estados Unidos, um dos veios da sua política externa, estabeleceu-se uma parceria abrangente em 2010 nas áreas do comércio e investimento, a qual prevê a realização de reuniões anuais presididas pelo secretário de Estado norte-americano e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio, a última das quais ocorreu em fevereiro de 2014. Dela resultou a assinatura de um memorando de entendimento sobre tráfico de animais selvagens e um aprofundamento da cooperação bilateral em matéria de assistência aos países em desenvolvimento no âmbito da Cooperação Sul-Sul e Triangular.

Com a União Europeia, com quem estabeleceu um acordo de parceria e cooperação em 2009, tem sido manifestado reiteradamente o interesse no aprofundamento de um nexo estratégico, não obstante, por vezes, o relacionamento político esbarrar na gestão dos dossiês técnicos, designadamente e a título de exemplo, no que respeita a alguns litígios na Organização Mundial do Comércio (omc) ou ao embargo aéreo de 2009. O citado acordo permitirá a abertura de diálogos setoriais, em matérias como ambiente e alterações climáticas, energia, educação, ciência e tecnologia, migrações e luta contra o terrorismo. Está em discussão a proposta de celebração de uma parceria estratégica, de que o referido acordo é um passo importante, bem como a negociação de um acordo de comércio livre. De sublinhar que a questão não é pacífica entre todos os estados-membros, atendendo a que quatro dos dez parceiros estratégicos da União Europeia são asiáticos (China, Japão, Índia e Coreia do Sul) e de estar a ser discutida a concessão deste estatuto à asean.

No que se refere à China, a Indonésia, enquanto líder da asean, tem tido um papel de relevo nas disputas em torno do mar do Sul da China, e mais recentemente como resultado das pretensões de Pequim em relação ao arquipélago Natuna. É um eixo incontornável, consubstanciado, mais recentemente, numa parceria estratégica abrangente (2013) resultante de uma declaração conjunta sobre uma parceria estratégica datada de 2005. Um e outro atribuem grande importância a algumas iniciativas ligadas ao mar, de que é exemplo o lançamento da Nova Rota Marítima da Seda e a intenção de Jokowi de tornar o seu país numa potência marítima18.

De referir, ainda, no que toca às políticas de segurança e defesa, que Jokowi e o vice-presidente Kalla anunciaram a sua intenção de reforçar o orçamento entre 0,8 por cento até 1,5 por cento do pib19. Estão em causa os interesses económicos no mar, incluindo a salvaguarda dos recursos naturais da sua zona económica exclusiva e a proteção das suas ilhas exteriores. Neste propósito, tomará forma o projeto de transformar o país numa potência marítima regional, com os necessários ajustes no seio das Forças Armadas. A questão da disputa do mar do Sul da China, não envolvendo diretamente a Indonésia no que concerne a aspetos de contestação territorial, pode, na disposição atual do governo do Império do Meio, ter implicações em alguns dos direitos marítimos da Indonésia20. Jokowi fez notar a sua previsível preferência pela solução diplomática, Prabowo, considerando que a Indonésia é demasiado grande para a asean, é de opinião que se deve seguir a via negocial. Um e outro, não obstante o «estilo» pessoal, a dizerem o mesmo sobre os mesmos assuntos.

 

CONCLUSÃO

A vitória de Jokowi e a tónica do seu discurso apontam para a necessidade de uma atenção e de um apoio acrescido do exterior para que as intenções anunciadas se possam materializar num programa de ação que ultrapasse as inúmeras dificuldades que um país com a dimensão e a diversidade da Indonésia apresenta. Atingir uma renovação da reformasi, em contraste com o adormecimento do segundo mandato de Susilo, é um objetivo ambicioso e que pode esbarrar com vários obstáculos. A renovação terá de lidar com um orçamento de Estado a derrapar, ineficácia burocrática, infraestruturas incipientes e novas políticas de saúde (Indonesia sehat) e de educação (Indonesia pintar)21. Com uma coligação que só ocupa cerca de 40 por cento dos assentos no dpr, Jokowi estará constantemente a ser posto à prova para obter apoios e romper o bloqueio da coligação de Prabowo, com os seus quase 60 por cento de assentos. Uma das hipóteses aventadas é explorar as divisões existentes no Golkar e tentar atraí-lo para a coligação, o que implicaria negociações, ajustes e cedências. Não menos importante será a relação do Presidente com a liderança do seu partido, no seio do qual o seu poder não é especialmente forte. Facto é que os membros da oposição dominam as duas câmaras do dpr e portanto têm margem de manobra para controlar a agenda legislativa. Confirmam-no a eleição do Presidente e dos vice-presidentes do órgão, todos da coligação Vermelha e Branca, e a reprovação de iniciativas legislativas do executivo. Em todo o caso, os resultados parecem confirmar uma disposição dos eleitores de prosseguirem a mudança encetada em 1998. Prabowo tinha fortes laivos de apelo a um regresso ao passado; Jokowi é já o produto de uma nova Indonésia. A campanha assumiu, mesmo que nem sempre de modo deliberado, uma competição entre duas visões diferenciadas sobre a governação do país, mesmo se a convergir no reforço do crescimento do país e na necessidade de corrigir práticas reiteradas e tradições enraizadas. Um exemplo desta divisão de águas nos alinhamentos foi a criação de uma rede de voluntários (relawan), apoiantes de Jokowi, muitos deles antigos ativistas pró-democracia que tinham estado envolvidos na deposição de Suharto, ainda que os partidos islâmicos que também participaram no derrube da Ordem Nova, como o pan, tenham alinhado com Prabowo.

Pretendeu-se, neste artigo, demonstrar que não obstante a tónica discursiva imbuída dos contrastes das personalidades de um e de outro dos candidatos, e entre o apelo à renovação e ao nacionalismo, não há, no que toca a questões essenciais como a economia ou as relações externas singularidades substanciais. A mesma pressão dos cronies e dos militares far-se-á sentir, o que num contexto de difícil equilíbrio institucional para uma governação estável, com um Presidente de intenções renovadoras e uma oposição parlamentar dominante, será um dado incontornável. Esta realidade toldará a ação governativa e provocará constrangimentos na benignidade e exequibilidade do anunciado programa reformista de reforço da democracia, cuja afirmação tem sido tão tributária de uma vibrante sociedade civil, militante, organizada e exigente, que nos permite concluir com uma nota de otimismo sobre um dado que não é despiciendo.

 

Data de receção: 17 de outubro de 2014 | Data de aprovação: 18 de novembro de 2014

 

NOTAS

1 Agradeço à mestre Andreia Nogueira, minha antiga aluna, e atualmente colaboradora da lusa em Jacarta, a troca de impressões e a informação que amavelmente me forneceu.

2 A doutrina do Pancasila assenta em cinco princípios consagrados, constitucionalmente desde 1945, a saber: crença num Deus único; humanidade justa e civilizada; unidade da Indonésia; democracia orientada com sabedoria no consenso e na representação; justiça social para todo o povo indonésio. A este propósito, ver Ricklefs, M.C. – A History of Modern Indonesia since c. 1200. 4.ª edição. Houndmills, Hampshire: Palgrave Macmillan, 2008.

3 Mendes, Nuno Canas – A Multidimensionalidade da Construção Identitária em Timor-Leste. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade Técnica de Lisboa, 2005, p. 460.

4 MIETZNER, Marcus – SBY ’s Mixed Legacy, 2014. [Consultado em: 30 de setembro de 2014]. Disponível em: http://asiapacific.anu.edu.au/newmandala/2014/09/18/sby-mixed-legacy/

5 Sukma, Rizal – «New Leaders for 2014 are in the Making», In Jakarta Post, 31 May 2010. [Consultado em: 13 de outubro de 2014]. Disponível em: http://csis.or.id/post/new-leaders2014-are-making.

6 Os Priyayi eram a elite javanesa, que integrou no século xix o funcionalismo colonial.

7 mendes, Nuno Canas – A Multidimensionalidade da Construção Identitária em Timor-Leste, pp. 457-458.

8 Heiduk, Felix – Reformasi reloaded? Implications of Indonesia’s 2014 Elections. SWP Comments 38, agosto de 2014 [Consultado em: 28 de setembro de 2014]. Disponível em: http://www.swp-berlin.org/en/publications/swp-comments-en/swp-aktuelle-details/article/indonesiens_erneuerung.html.

9 Nestas funções, foi quem capturou Nicolau Lobato em Timor-Leste, em 1978.

10 Aspinall, Edward – Indonesian Democracy Stonger, but not yet out of the Danger Zone. 3 e julho e 014. ast sia Forum. [Consultado em: 22 de setembro de 2014]. Disponível em: http://www.eastasiaforum.org/2014/07/13/indonesian-democracy-stronger-but-not-yet-out-of-the-danger-zone/

11 Lowy Institute – Indonesia Elections, Jokowi, and Prabowo, 2014. [Consultado em: 24 de setembro de 2014]. Disponível em: http://www.lowyinstitute.org/issues/indonesia-elections

12 Aspinall, Edward – Indonesian Democracy Stonger, but not yet out of the Danger Zone.

13 Fragmento ilustrativo, num discurso de Prabowo: «Não podemos esperar muito dos nossos líderes. Eles sabem falar bem e são tão bons nisso que se tornam bons mentirosos. Eu entrei na política porque fui forçado. Fui forçado, irmãos e irmãs! A política…que Deus nos ajude! De 15 pes-soas que conheci na política, 14 são totais mentirosos…». Ver Aspinall, Edward – Indonesia’s Democracy Is in Danger. [Consultado em: 22 de setembro de 2014] Disponível em: http://asiapacific.anu.edu.au/newmandala/2014/06/17/indonesias-democracy-is-in-danger/

14 Dwifungsi é uma doutrina introduzida em 1958 que permitia às Forças Armadas o exercício de duplas funções, militares e político-económicas.

15 Jakarta Post, 22 de julho de 2014 [Consultado em: 20 de setembro de 2014]. Disponível em: http://www.thejakarta-post.com/paper

16 Hariyadi, Mathias (2014) – «Constitutional Court dismiss appeal, confirm Widodo President. Analysts and civil society satisfied». [Consultado em: 13 de outubro de 2014]. Disponível em: http://www.asianews.it/news-en/Constitutional-Court-dismiss-appeal-confirm-Widodo-President-Analysts-and-civil-society-satisfied31958.html

17 HEIDUK, Felix – Reformasi reloaded? Implications of Indonesia’s 2014 Elections.

18 Lalisang, Yeremia (2014) – The Establishment Post, 1 de agosto de 2014. [Consultado em: 16 de outubro de 2014]. Disponível em: http://www.establishmentpost.com/jokowi-indonesia-china-relations/

19 Dolven, Ben (2014) – Indonesia’s 2014 Presidential Election. CRS Insights. [Consultado em: 15 de outubro de 2014]. Disponível em: http://fas.org/sgp/crs/row/IN10125.pdf

20 Laporta, Alphonse F. (2014) – «Indonesia’s presidential election: will democracy survive?». PacNet 55. Pacific Forum CSIS, Honolulu, Hawaii, 15 de julho. [Consultado em: 28 de setembro de 2014]. Disponível em: http://csis.org/publication/pacnet-55-indonesias-presidential-election-will-democracy-survive

21 A reforma educativa (Indonesia pintar) consiste no reforço orçamental para a escolarização de todas as crianças e no encaminhamento de fundos para as Islamic pesantren (escolas primárias), incluindo a formação e o aumento dos salários dos professores. No setor da saúde (Indonesia sehat), pretende-se universalizar o serviço, modernizando os hospitais e os centros comunitários. O financiamento destes setores será feito através dos cortes nos subsídios aos combustíveis e pelo relançamento da economia, que tem dado sinais de desaceleração nos últimos cinco anos. Ver Heiduk, Felix – Reformasi reloaded? Implications of Indonesia’s 2014 Elections.