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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.43 Lisboa set. 2014

 

ENSAIO BIBLIOGRÁFICO

 

A miséria da demonologia empírica

 

René Pélissier

Historiador. Autor de Les campagnes coloniales du Portugal, 1844-1941 (2004) e, com Douglas L. Wheeler, História de Angola (tinta da China, 2009).

 

Existe em francês uma expressão («o Diabo está nos detalhes») que certos políticos e diplomatas utilizam, seja para complicar uma situação já embrulhada, seja para se desculparem, a posteriori, por não terem sabido detetar o grão de areia que emperrou a sua análise. Existirá em português o equivalente desta fórmula diabólica? Uma crónica bibliográfica, mesmo modesta, deve revelar uma surpresa ou, pelo menos, fazer uma incursão no inesperado e no imprevisível. Felizmente para nós, a história colonial e pós-colonial de Portugal é suficientemente rica em singularidades para alimentar um ou dois leitores de vocação exorcista. Podemos jurar que no estudo de história diplomática de Maria José Tiscar Santiago, Diplomacia peninsular e operações secretas na Guerra Colonial1, não encontrámos o Diabo em pessoa. Apenas alguns diabretes operações exóticos. O trabalho é extraído da sua tese de doutoramento realizada em Espanha, uma obra impressionante e original. Apoia-se sobretudo nos arquivos e apenas acessoriamente em estudos anteriores. Se pouca documentação séria existe acerca da estreita colaboração entre Espanha e Portugal em certos países africanos, ainda menos existirá sobre a posição da Igreja espanhola na descolonização da Guiné Equatorial, e absolutamente nada acerca dos despachos do consulado português em Santa Isabel de Fernando Pó e o envio, em abril e maio de 1968, por Lisboa, de um diplomata para estudar na ilha a situação política, em vésperas da independência do país.

Para um Franco Nogueira, que a autora considera intimamente antiespanhol, a descolonização suave conduzida pelo Ministério de Assuntos Exteriores de Madrid cheirava a heresia e, portanto, a enxofre. No entanto, conhecia-se o apoio ativo ou passivo dado por Madrid às teses defendidas por Portugal nas Nações Unidas, mas foi preciso esperar por este estudo para se saber o que se passava concretamente nas chancelarias no Egito (pouca coisa) e na Tunísia, que apoiava a UPA/FNLA (muitos detalhes, alguns bastante menores). Tiscar Santiago revela-se fundamental quando trata das operações secretas no Zaire/rdc (pp. 279-359) e no Congo-Brazzaville (pp. 361-434). Dois locais de informação e manipulação dos nacionalistas, encerrados, respetivamente, em 1966 e 1963, e cuja representação passou a ser feita sob a cobertura das duas embaixadas espanholas. A autora estima que Portugal ajudasse mais do que a França e a Bélgica os seus protegidos respetivos, Fulbert Youlou e Moïse Tshombé. Não será de somenos importância conhecer as redes da PIDE/DGS no Zaire e a sua eficácia, graças ao apoio obtido nas sociedades e nos colonos portugueses no terreno. Este livro recomenda-se.

Já que estamos na periferia do oculto, peguemos na recolha de contribuições organizada por Maria Paula Meneses e Bruno Sena Martins2 e prefaciada por Boaventura Sousa Santos. Para um observador estrangeiro e longínquo, como nós, simples consumidor de livros consagrados à colonização/descolonização de Lisboa, é ligeiramente surpreendente ler que em Portugal haverá uma cortina de chumbo, uma zona de interditos ou de não-ditos em torno destas vísceras escondidas da História nacional. Talvez seja verdade nas esferas do poder e da opinião pública, em geral, mas não junto dos impressores e dos editores. A julgar pelas dezenas, senão mesmo centenas, de títulos novos publicados todos os anos desde há pelo menos duas décadas, os problemas que abordam não passam despercebidos.

Vender-se-ão bem? Aí está a questão, mas quer se trate da guerra colonial, das recordações dos retornados/refugiados [em português no original, N. da T.], dos antigos combatentes, das guerras civis em Angola, em Moçambique, na Guiné-Bissau, das oportunidades económicas oferecidas, dos segredos revelados sobre tal ou tal aspeto, da ficção ou mesmo da poesia, pensávamos que este antigo Ultramar [em português no original, N. da T.] nunca estivera tão presente na consciência nacional. Aparentemente, enganámo-nos, se bem compreendemos as páginas publicadas em Coimbra. Lemos textos que não escondem qualquer demónio; se há diabretes, foram desmascarados e tornaram-se inofensivos. São temas amplamente tratados em estudos ou livros anteriores, como as alianças no papel e no terreno entre Portugal, a Rodésia e a África do Sul, as tropas africanas, os problemas dos retornados, etc. Esta recolha servirá de introdução e de complemento muito útil a uma vasta literatura, universitária ou não, que em princípio deveria estar reunida – o que infelizmente nem sempre acontece – em pelo menos vinte ou trinta centros de estudos superiores em Portugal. E não falemos aqui da situação catastrófica da documentação nos PALOP!

Cidade e Império3 pertence a uma categoria de livros – será uma moda ou o reflexo das preocupações profundas da investigação atual em que gira em torno do urbanismo, da arquitetura, cidade colonial e pós-colonial, da sociologia e da emigração para as cidades, tanto na antiga metrópole como nas monstruosas aglomerações em que se tornaram as capitais dos palop e seus satélites provinciais. A publicação, em Lisboa, em menos de dois anos, de três grandes e luxuosos livros sobre o lugar urbano e as roças de São Tomé deixa supor que entrarão em jogo fatores que ignoramos.

Entre os temas tratados, assinalemos os problemas da sociologia dos grupos humanos na cidade angolana, moçambicana e indiana, bem como em Lisboa (imigrantes africanos e brasileiros). Há igualmente micromonografias consagradas a um bairro, a um bairro de lata, ou mesmo a uma rua da capital. No tempo de Salazar, Lisboa era uma cabeça de império quase monocromática; hoje, a diversidade de cores e de culturas colonizou a cidade, órfã das suas possessões distantes. O texto que mais surpreende nesta sapientíssima antologia é o que nos revela a concorrência do yé-yé de 1966-67 ao luso-tropicalismo. Acrescentemos que este livro erudito, que não deve, apesar de tudo, apaixonar um grande público, possui três índices. Um exemplo que deveria ser imitado por todos os editores científicos em Portugal e em todo o lado.

Se, a partir de Lisboa, tomarmos o mar para nos recolhermos nas ruínas do Império, Cabo Verde é, evidentemente, a primeira escala importante e a que dá menos que falar. Atrai, portanto, turistas de passagem e entusiastas (o que é raro entre os palop), tanto residentes estrangeiros como economistas e observadores internacionais que examinam o seu percurso desde a independência.

Cap-Vert, perspetive et réalité4 é o que se pode considerar o programa de um militante, engenheiro químico de formação. O autor não se contenta em incensar os progressos alcançados e prefere apontar o que falta fazer para que o país encontre a sua própria via para o desenvolvimento. Não sendo o lugar para expor o que Rosário preconiza, podemos, todavia, precisar que, originário de São Vicente, denuncia o excesso de centralismo do poder na Praia, bem como outros males do sistema político e económico, que não aparecem nos guias turísticos. «Ninharias», na nossa opinião, ao lado do naufrágio dos antigos «primos» da Guiné Bissau. Porque aqui já não se trata apenas de dizer o possível e o melhor, mas de salvar um embrião de Estado que, durante a guerra dos nacionalistas (PAIGC) de Amílcar Cabral, fazia desafalecer todos os terceiro-mundistas da época. A nossa introdução evocava o Diabo, as suas dissimulações nos detalhes, o imprevisível e uma surpresa. Eis uma, e bem grande. Lemos no catálogo de um editor um título: Une Nuit à Madina do Boé5. Ficamos a saber que o autor é historiador e que a obra, na sua opinião, é romance (p. 14). Na verdade, a intriga é quase inexistente mas, em compensação, desde o início penetramos no Inferno e na sua sucursal da África ocidental: Bissau com todos os seus demónios, desde a independência.

Existem muitas críticas virulentas e inconsoláveis acerca daquilo em que se tornaram os sonhos dos Pais fundadores da independência nos palop. Tanto quanto sabemos, nenhuma das críticas publicadas – no exílio – desceu tão profundamente ao insustentável e à condenação absoluta dos dirigentes corruptos que «governam» e dos militares sem honra, multiplicados por todo o Ocidente africano: «Continente da carnificina, das violações coletivas e das amputações… As morgues funcionam às mil maravilhas neste continente» (p. 18). O autor lança-se em imprecações intermináveis.

«Os cirurgiões que receberam o corpo [do presidente Nino Vieira] estão prestes a coser-lhe os bocados» (p. 21). O autor faz desfilar desordenadamente a teoria dos demónios que devoram a Guiné: os traficantes de cocaína, os antigos colonialistas portugueses, os vendedores de órgãos retirados a vítimas ainda frescas, entre os quais a própria mioleira do presidente, os feiticeiros que regem a vida política com os oficiais, os imãs, os curas, os marabutos, os profetas das seitas, os jihadistas, etc. Infelizmente, Ngaïdé conhece melhor a Guiné que todas essas pseudo-elites que, recicladas na função pública ou fugidas na diáspora, cultivam o sonho de vir (re)tomar o poder, ou seja, a «caixa» que vai sendo cheia por organizações financeiras internacionais, por diplomatas «deportados» neste inferno e por ONG compassivas.

Na Guiné-Bissau, o Estado está morto desde 1973, se admitirmos que chegou a nascer. Agora as ressureições tornam-se difíceis, não unicamente por causa do calor. Há muito que os chacais acampam no cemitério.

Guiné, 22 de novembre 1970. Opération Mar Verde6é um livro muito útil. Completa tudo o que foi publicado em Portugal acerca do caso que quase mudou provisoriamente o curso da História colonial de Lisboa. A autora é filha de um antigo oficial oriundo da Guiné francófona, reformado do exército francês, opositor conhecido do sinistro Sékou Touré e um dos organizadores da tentativa de golpe de Estado, montado com o apoio financeiro e militar das autoridades portuguesas. O oficial participa no desembarque dos guineenses francófonos e envia um relatório aos portugueses, datado de 25 de novembro de 1970, em Bissau. Antiga jornalista, a autora procura reabilitar a figura do pai, Thierno Ibrahima Diallo, e de muitos outros membros da chamada Frente de Libération National de Guinée (FLNG). Utiliza arquivos familiares, a tradução de um documentário da televisão portuguesa e uma curta entrevista de Alpoim Calvão. Aparecem muitos elementos novos – claramente expostos –, que fazem deste livro um documento importante. A venalidade de muitos conspiradores parece comprovada, bem como as traições no seu seio. O que mais nos marca é a fraqueza e a falta de dinheiro destes exilados. Um fator, ausente ou poucas vezes evocado, é o tribalismo; o outro é a precariedade de toda a sua situação. Acrescentemos-lhe a instabilidade da vida no exílio. Este livro é uma boa surpresa para o historiador.

Já que fazemos a digressão pelas antigas colónias africanas, abordemos agora São Tomé e Príncipe7. Aqui, a surpresa reside no facto deste título ser o terceiro da trilogia relativa a uma arquitetura insular, cujo valor se situa, na nossa opinião, não nos edifícios públicos recentes, mas nas roças (plantações) privadas, ou estatizadas, e nas igrejas. Com quatro arquitetos entre os cinco autores, era de esperar que a tónica fosse colocada sobre os trabalhos de renovação e o histórico de ocupação do solo, ou seja, a luta contra uma selva invasora e a concentração latifundiária. Nas roças, nota-se uma grande variação do estado de habitabilidade das casas dos antigos senhores, com algumas totalmente abandonadas a ocupantes ilegais. Espantamo-nos por não vermos citado, nas duas bibliografias da obra, o único guia turístico completo acerca do arquipélago. Em inglês, evidentemente.

Sem deixar as roças, assinalemos um pequeno texto de um português, antigo consultor das Nações Unidas, José Hipólito dos Santos8. Hipólito dos Santos tem razão em valorizar o trabalho das mulheres no arquipélago do «leve-leve»; o setor masculino é adepto do branco. adágio «Quanto menos trabalhar melhor me comporto». Teorizador do «desenvolvimento humano», o autor expõe a sua prática na roça Água Izé, empresa do Estado. Critica os métodos e as regras burocráticas da ONU. A sua leitura ensina-nos muito sobre a atitude dos “filhos da terra”, historicamente alérgicos aos trabalhos agrícolas, mesmo depois da independência. Quem é que trabalhava em 1991 na Água Izé? 50 por cento dos trabalhadores eram originários de Cabo Verde, 34 por cento de Angola e o resto de Moçambique, para além de alguns são-tomenses perdidos (ou contaminados), entre estes agricultores sem medo da terra.

Em Angola, começar-se-á por uma investida aleatória aos recantos mais recônditos de uma demonologia que o bibliógrafo qualificará de empírica, por não poder deixar de admitir que alguns encontram aí um interesse recreativo. E, contudo, os principais leitores de Jorge Alves de Lima9são e não leem revistas de ciência política ou de relações internacionais. Os mais informados sabem que a África do Sul conduziu operações militares no sul de Angola entre 1966 e 1988, às quais Pretória chamava a Guerra de Fronteira. Mas antes? Antes, para eles, tratava-se de saber quem é que mataria o maior elefante e o maior número de leões ou de rinocerontes, para expor os despojos nas salas de troféus. É um grupo com poucos leitores; para se ser membro desta igreja é preciso ter passatempos, gozar de boa saúde e ser-se mais rico do que pobre. Mas, dir-se-á, que vem então este livro fazer aqui, a uma publicação com pretensões científicas cujos membros do conselho de redação provavelmente ignoram a diferença entre uma .375 Holland e uma .500/465? É aí que regressa o Diabo por uma pequena porta, pois aparece (pp. 227-237) a PIDE/DGS e o «inventor» dos Flechas. Quem eram os primeiros recrutas deste corpo de elite da polícia política do Estado Novo? Os bosquímanos do sudeste angolano, cujos extraordinários dons pisteiros foram canalizados e explorados por um inspetor – imaginativo e talvez mesmo genial – da PIDE.

Este inspetor rapidamente compreendeu que o Cuando Cubango recebia da Zâmbia estranhos visitantes (os guerrilheiros do MPLA) que era necessário eliminar, armando os seus inimigos seculares, ou seja, os milhares de caçadores-recolectores locais, (com as suas famílias), acabados de sair da pré-história. Bastava dar-lhes comida, um uniforme, um soldo modesto e substituir os arcos e flechas por uma arma de guerra moderna.

Os estragos provocados pelos seiscentos Flechas de origem bosquímane na zona de resistência do MPLA e as infiltrações dos Ovampos da SWAPO nunca foram quantificados de forma séria, pelo menos a sul do paralelo 16º e até à fronteira da Namíbia. Encontraremos nestas recordações de caçadas do autor, um empresário de safaris brasileiro, na sua concessão (Longa-Mavinga) do Cuando Cubango, muita coisa sobre os troféus e aventuras dos ricos clientes americanos e europeus. Mas também há bastantes “detalhes” acerca da situação militar nos anos de 1965-1973, da rivalidade comercial entre companhias adjudicatárias e muitas pequenas coisas acerca da colaboração entre os Flechas e os caçadores profissionais, que constituíam a única fonte de rendimento «estável» desta frente pioneira, enquanto houvesse os Big Five a abater. Hoje, nestas «terras do fim do mundo», importam-se elefantes e os bosquímanos sobreviventes perderam muito dos dons ancestrais. Atualmente, aliás, caçam-se mais minas do que qualquer um dos cinco maiores animais da nomenklatura cinegética.

Já que falamos de dinheiro, prossigamos com um autor, Rui Verde10, que sabe quem o possui em Angola. Verde denuncia a corrupção nas mais altas esferas do Estado e dá o exemplo da corrupção estatal na criação de uma pseudo-universidade independente entre 2001 e 2005. É um caso de manual que não surpreende ninguém. Seria Verde tão ingénuo que tenha ficado chocado com a distância entre a vida real em Luanda e as suas intenções iniciais? Quando abre os olhos, apercebe-se de que nesta máquina destinada a fazer dinheiro às custas dos estudantes, tudo depende da cumplicidade entre personalidades políticas, a burocracia e os bancos. E pela graça do Mafarrico, os edifícios delapidados de uma escola primária tornaram-se numa universidade!

Com um título percutante, Bartolomeu Capita11, nacionalista cabinda, chama a atenção do eventual leitor. Contudo, como certos militantes, africanos ou não, que pretendem convencer da justeza da sua causa, extraviou-se numa inverosímil floresta virgem de conhecimentos – meio digeridos –, que verte sobre o hipotético interlocutor. Ao fim de mais de cinquenta anos, o domínio dos argumentos ainda lhe escapa: é uma tara habitual no eterno exilado que quer chegar aos deuses no Olimpo, ou que simplesmente acumula diploma atrás de diploma? Talvez nenhuma das duas. Porém, podemos adivinhar que a sorte de Cabinda não atormentará muitas noites de Obama, se é que o Presidente sabe situar este país num mapa de África.

O autor tem a ambição de um dia ver o território chegar à independência. Certos observadores consideram-na muito legítima. Tem igualmente direito a sentir um ódio implacável contra Agostinho Neto e sobretudo contra Lúcio Lara. E a denunciar a repressão feroz dos cabindas que ainda não se deixaram comprar pelo MPLA. É também inegável que representa uma corrente independentista bem viva entre os seus compatriotas. Todavia, deveria ter-se limitado a uma defesa coerente dos seus argumentos em cerca de 300 páginas. Teria atingido completamente o objetivo. Pelo contrário, ao disparar em todos os sentidos, acaba por aborrecer o leitor. Que vêm Louis Leakey, Proudhon, Bismarck, os afro-americanos, Nito Alves, Napoleão e centenas de outras personagens deslocadas fazer a esta obra? Ao fim de mais de cinquenta anos, os nacionalistas cabindas mostraram uma imagem estilhaçada da sua luta. Talvez nem tudo esteja perdido, mas até agora ainda não se assistiu a um espetáculo em que os factos levem a melhor sobre a verborreia. Os saltimbancos têm a utilidade de divertir a galeria durante um certo tempo. Ensinar-lhes os constrangimentos e o peso dos números será indispensável, mas ainda não se viu entre os seus quem o poderia fazer.

Visto que o autor cita bocados de texto em alemão, poderia obter uma lição de contenção, de racionalidade e de modéstia de um trabalho minucioso proveniente de Basileia12. Esta obra mostra-nos que se a história colonial na fronteira sul de Angola tivesse sido diferente, poder-se-ia ter desembocado num enclave insubmisso, belicoso, quase autónomo, na verdade independente a termo, no Ovambo, atualmente partilhado entre Luanda e Windhoek. A edição das cartas do explorador suíço Hans Schinz inclui o relato (de setembro de 1885), mais desenvolvido do que no seu livro, da viagem ao norte da fronteira atual (pp. 72-80), ou seja, ao Cuamato e ao Humbe, de triste, depois gloriosa e por fim sinistra memória nos anais militares portugueses. Os esforços do editor, Henrichsen, concentrados num assunto restrito mas muito aprofundado, são exemplares, ainda que não tenha utilizado qualquer fonte portuguesa. O Ovambo, durante muito tempo afastado das ambições colonialistas de duas potências hesitantes, poderia constituir uma zona tampão, um enclave perfeito (portanto, sem acesso ao mar, ao contrário de Cabinda). E também sem petróleo, esse danado petróleo que muito complicou a situação e o futuro do exclave kongo entalado entre os dois Congos independentes, que por vezes tiveram projetos anexionistas, antagonistas mas latentes até hoje. A alternate history [no original em inglês, N. da T.] terá aqui matéria para imaginar os cenários mais improváveis.

Se se desembarcar em Moçambique, tem-se a demonstração de que a guerra colonial ou as guerras de libertação (1961-1974/1975) não passam desapercebidas de uma parte dos leitores portugueses, mesmo que se trate de uma franja minoritária. Peguemos no caso do desaparecimento muito misterioso da tripulação de um navio encontrado deserto, incendiado e à deriva no canal de Moçambique, o Angoche13, durante a «primavera Marcelista». Um enigma comparável ao do «Holandês Voador» que alimentou os fantasmas de gerações de marinheiros durante séculos. É exatamente o género de história de que apenas o Diabo e a pide conhecem a solução. Parece-nos, portanto, normal que um futuro romancista tenha consultado a Torre do Tombo para tentar saber o que se esconde por trás destas cortinas de fumo. Infelizmente, ficou com a convicção de que uma parte das peças pertinentes desapareceram dos arquivos da PIDE/DGS! Desde logo, quando as hipóteses estavam todas em aberto, teceu uma intriga em volta da personalidade perturbada do comandante do navio e de um advogado luso-indiano cego. Habilmente engendrada, a narrativa mergulha-nos na sociedade política portuguesa atual, onde muitos atores envelhecidos têm também muitas coisas a esquecer e a fazer-se desculpar, todas ligadas à guerra colonial – neste caso, a que se desenrolava no interior do Moçambique setentrional, no início dos anos 1970.

Na mesma editora, DG, assinala-se a reedição de Caçador de feitiços, sob a pluma de Carlos Marques Pereira, inicialmente surgido na Prefácio, em 2010. A nova edição é idêntica à primeira para o texto mas o título mudou14e as fotos a cores desapareceram. As memórias do autor um marinheiro-aviador, dizem especialmente respeito à aviação no nordeste de Moçambique (Mueda, Nampula, etc.). O volume que as engloba está dividido em duas partes, com a segunda consagrada a um outro título, angolanista, de Carlos Acabado, Kinda e outras histórias de uma guerra esquecida (Vivências de uma guerra africana) que também já vai na segunda edição. Estas duas obras são a prova de que a guerra não está tão esquecida como se proclama; o público compra. Daqui a uma ou talvez duas gerações os descendentes dos atores colecionarão estes relatos. Ainda na mesma região do norte moçambicano (Cabo Delgado) e no mesmo registo memorial (a guerra), Fonseca Alves15parece dirigir-se prioritariamente aos veteranos da sua companhia entre 1966 e 1968. Cultiva a anedota mas, nómada entre diferentes guarnições (Mocimboa do Rovuma, Negomano, etc.), dá algumas informações sobre os ataques contra as bases da FRELIMO (Bases Beira e Limpopo, fim de dezembro de 1966). No fim da comissão, em agosto de 1967, a companhia foi transferida para o distrito de Tete, em Bene.

Talvez choquemos agora vários leitores, pois as nossas conclusões vão ao encontro da psicologia dos portugueses médios deste início do século XXI, com outras preocupações económicas mais urgentes do que a reflexão sobre o sentido da sua história colonial que muitos, além disso, pretendem esquecer ou ignorar. Ao lançar-se além-fronteiras ou para o ultramar à conquista de riquezas, de terras, de escravos ou de vassalos, toda a metrópole, potencial ou real, ligeiramente ambiciosa, seja qual for a sua cor, condena-se a entrar no ciclo infernal das guerras repetitivas. E as do Portugal de 1961-1975 são as herdeiras de séculos de violência pluricontinental. Quer o queiramos quer não. Mesmo onde o colonizador acredita ou pretende ser amado pelos seus súbditos, existe um capital subjacente de rancores, por vezes de ódios. Desconhecemos se alguém o fez, mas se se contabilizassem ao detalhe todas as atividades guerreiras de Portugal, desde sempre, aperceber-nos-íamos de que o Estado Novo, nos seus últimos tempos, mais não fez do que seguir o exemplo da Primeira República. Esta, por sua vez, marchava ao som das cornetas e dos tambores da Monarquia porque não podia ser de outra forma, devido à natureza do homem.

Peguemos no exemplo que nos é dado por um dos dois Prémios Nobel da Paz de 1996, que pela sua escolha de vida é o mais pacífico dos timorenses: Dom Carlos Filipe Ximenes Belo, alto dignitário da Igreja católica. Acaba de publicar um livro fundamental para quem quer aprofundar a história de Timor-Leste16. Trabalho meticuloso, coerente e prático, está na confluência da historiografia e da sociologia histórica. O autor dedicou-se a fazer o repertório da multitude de autoridades tradicionais que foram localizadas, nomeadas, eleitas, combatidas, impostas, cortejadas, etc., pelos portugueses desde 1515 até 1975. Para cada uma delas, compilou o essencial do que autores anteriores escreveram (a dizer bem ou mal); classificou-os por distrito e subdistrito, e depois cronologicamente. Não insiste nas guerras quase permanentes que travavam entre si os liurais (chefes ou reisetes), nem sobre as revoltas ou submissões às autoridades de Lifau e depois de Díli. Desta torrente de nomes, na maior parte das vezes lusificados, liberta-se, no entanto, uma conclusão irreprimível: contrariamente ao que ditava a ignorância da história colonial às multidões emocionadas que desfilavam em Portugal, apelando ao auxílio aos pobres timorenses, há mais de uns dez anos, esta metade de ilha colonizada tardiamente por Lisboa não era um porto da paz imemorial que se costuma inventar nas ilhas longínquas. Era exatamente o contrário. E quem duvida nada mais tem a fazer do que seguir atentamente o trabalho do autor que, certamente, não pode passar por um belicista raivoso.

Os portugueses que não querem mudar de convicções deveriam ou poderiam ler um livro17 de um etnólogo amador, e historiador nas horas vagas, que decidiu publicar um canto de amor aos timorenses e a Portugal. Muito bem! Partindo desta base patriótico-sentimental tradicional, o leitor procurará o que pode salvar deste entrelaçado de histórias orais (a sua bibliografia não tem Artur Teodoro de Matos nem os quatro volumes de Humberto Luna de Oliveira, e de tantos outros timoranistas; mais vale parar de os enumerar do que cair no denegrir sistemático…). Mas o autor recolheu pormenores que não encontramos em nenhuma fonte publicada. Sem garantia da autenticidade do que Mau-Bere-Kohe conta, o leitor entrará neste gabinete de curiosidades com prudência ou arrebatamento, segundo as suas opções políticas. As fotos são muitas vezes interessantes e, a coberto do pseudónimo, o autor parece ter uma profunda simpatia pelas pessoas das montanhas, mesmo reconhecendo que um liurai respeitável deveria colocar diante de casa algumas centenas de crânios dos inimigos como afirmação da sua autoridade. Tudo isto antes da grande revolta do Manufai (1911-1912).

Qual é, então, o demónio particularmente vicioso que pelos seus encantos e o seu feitiço incitava o governador de Timor de 1926-1928, Teófilo Duarte, a intitular o seu segundo livro Timor (Antecâmara do Inferno?!), Famalicão, 1930? Certamente que não um «pequeno diabrete bom».

Mas as astúcias das hordas luciferianas são tais que reservámos para o fim um dos exemplos mais perfeitos da sua malignidade. Atacaram essas cidadelas de todas as virtudes que eram as Cortes de Lisboa, o Ministério da Marinha e das Colónias, a Cúria Romana e a Congregação do Santo Espírito, e vamos encontrá-las combinadas para travar a ação evangelizadora de um dos maiores missionários católicos do século XIX, que dedicou toda a vida a «levar a luz às trevas do Congo e de Angola». A edição, em curso, das cartas e escritos18 do Padre Charles Duparquet (1830-1888) pelos Espiritanos do século XXI revela-nos, reabilitando-a, uma personalidade complexa, exposta à hostilidade frontal ou dissimulada dos seus superiores e confrades da época (ou, mais recentemente, à do Espiritano António chas fotográficas e de mapas Brásio) e dos gabinetes de Lisboa.

Duparquet quer fazer sair uma colónia portuguesa, real ou potencial, da sua letargia religiosa e, enquanto estrangeiro, é, portanto, automaticamente suspeito. De qualquer das formas, nada é claro nas suas motivações profundas. Porque é que este francês insiste tanto em ir trabalhar para Angola? Pessoalmente, pensamos que, antes de mais, quer implantar-se no desconhecido porque tem uma vocação de pioneiro, longe de todo o constrangimento eclesiástico ou civil: vê um campo quase virgem aberto à sua formidável capacidade de trabalho e à sua inteligência. Após anos de diligências em Roma, Paris e Lisboa, desembarca em Moçâmedes em dezembro de 1866, sendo no início bem acolhido pelas autoridades e sobretudo pelos colonos, contentes com os seus projetos de criação de uma ou duas escolas. Sem perder tempo, parte de visita à Huíla (pp. 136-145). Fica rendido. É a partir deste planalto sadio que fará irradiar a sua ação para o leste e centro de África. É a lua de mel, mas será breve. Compreende imediatamente que numa sociedade colonial esclavagista, e em geral paranóica, não conseguirá nada se não se rodear de um clero lusófono e lusófilo (e não como os seus dois confrades instalados em Ambriz, desdenhosos e chauvinistas). É, portanto, necessário formar os missionários em Portugal. Mas, com o Diabo a meter-se no assunto, desde abril de 1867 queixa-se de que em Lisboa as Câmaras e uma certa imprensa xenófoba o acusam de ser espião e agente da França. Expulso de África, em maio de 1867 parte para Portugal para pugnar pela causa e para abrir em Santarém um colégio de iniciação linguística e de preparação de futuros missionários portugueses. Aí permanecerá mais de dois anos, a lutar contra «belas palavras e belas promessas, mas no fundo astúcia e má fé». (p. 573). Exasperado e vencido, pede ao seu Superior para ser desinvestido de toda a responsabilidade em Angola e embarca em 1869 para Zânzibar. O Diabo ficou com a vitória, mas provisoriamente. Aguardamos os Tomos III e IV para ver como é que Duparquet obterá a sua vingança e lançará as fundações de uma obra espiritana tentacular em Cabinda e sobretudo em Angola. Afinal, era mais obstinado do que todos os adversários juntos.

 

Tradução: Marta Amaral

 

Data de receção: 20 de março de 2014

Data de aprovação: 30 de junho de 2014

 

NOTAS

1 SANTIAGO, Maria José Tiscar – Diplomacia peninsular e operações secretas na Guerra Colonial, Lisboa, Edições Colibri, 2013, 449 pp.

2 MENESES, Maria Paula e MARTINS, Bruno Sena (eds.) – As guerras de libertação e os sonhos coloniais, Alianças secretas, mapas imaginados. Coimbra, Edições Almedina e Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, 2013, 194pp.

3 DOMINGOS, Nuno e PERALTA, Elsa (eds.) – Cidade e Império. Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais, Lisboa, Edições 70, 2013, L-628 pp., fotografias a preto e branco.

4 ROSÁRIO, João do – Cap-Vert, perspetive et réalité, Paris, L’Harmattan, 2013, 123 pp., fotografias a preto e branco.

5 NGAÏDE, Abdarahmane– Une nuit à Madina do Boé, Paris, L’Harmattan, 2013, 138 pp.

6 DIALLO, Bilguissa – Guinée, 22 novembre 1970. Opération Mar Verde, Paris, L’Harmattan, 2014, 276 pp. fotos a preto e branco.

7 FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; ANDRADE, Rodrigo Rebelo de; PAPE, Duarte e LOUREIRO, João (para os postais) – São Tomé e Príncipe. Cidades, território e arquiteturas, Lisboa, sem nome de editor, 2013, 176 pp., numerosas ilustrações a preto e branco, sépia e cor.

8 SANTOS, José Hipólito dos – Les femmes au cœur du développement, Paris, L’Harmattan, 2013, 153 pp, fotos a preto e branco.

9 LIMA, Jorge Alves de – On the tracks of the Big Five in Angola, New York, Kirongozi, 2013, 334 pp., muitas fotos a preto e branco e a cores.

10 VERDE, Rui– Angola e dinheiro. Riscos da transição do regime liderado por José Eduardo dos Santos, Cascais, Edições Rui Costa Pinto, 2013, 147 pp.

11 CAPITA, Bartolomeu – Cabinda, Obama’s challenge in Africa, Londres & Lisboa, Chiado Publishing, 2013, 647 pp. + 9pp de mapas, documentos e fotografias a preto e branco e a cores.

12 SCHINZ, Hans (autor) [& Dag Henrichsen (ed.)] – Hans Schinz. Brüchstücke. Forschunsreisen in Deutsch-Südwestafrika. Briefe und Fotographien, Basileia, Basler Afrika Bibliographien, 2012, XXVII-185 pp., fotos a preto e branco.

13 ELYSEU, Al Cino – Angoche, Linda-a-Velha, DG Edições, 2013, 255 pp.

14 PEREIRA, Carlos A. F. Marques – Histórias e memórias de um marinheiro-aviador, Linda-a-Velha, DG Edições, 2013, 174 pp., fotos a preto e branco.

15 ALVES, Fonseca – Memórias de guerra do Ultramar, Porto, Edições Ecopy, 2013, 205 pp., fotos a preto e branco.

16 BELO, Dom Carlos Filipe Ximenes – Os Antigos Reinos de Timor-Leste, Reys de Lorosay e Reys de Lorothoba, Coronéis e Datos, Porto, Porto Editora, 2ª edição, 2013, 334 páginas, fotografias a preto e branco.

17 Mau-Bere-Kohe – Adeus Timor. Eu Portugal me confesso, Porto, Edições Ecopy, 2011, 372 páginas, fotografias a preto e branco.

18 VIEIRA, Gérard [& Charles Duparquet (auteur)] – Le Père Duparquet. Espoirs et échec de la mission en terre portugaise. Lettres et écrits. Tome II (1866-1869), 8ª edição, Paris: Editions Karthala, 2013, 647 páginas + XII páginas de pranchas fotográficas e de mapas a preto e branco e a cores.