SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número43Política Europeia de Vizinhança: práticas imperiais na fronteira com o «outro»?A miséria da demonologia empírica índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.43 Lisboa set. 2014

 

 

O pensamento de Rawls e suas implicações na vertente económica. Os comentários de Phelps e a crítica de Arrow1

The implications of Rawl's theory on economic thinking: Phelp's commentaries and the Arrow's criticism

 

Joaquim Cadete

Mestre em Economia Monetária e Financeira pelo ISEG. Professor na Universidade Católica Portuguesa onde exerce as funções de diretor do Master in Finance e do programa de pós-graduação «Fixed Income Profiles» e termina uma tese de Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais tendo recebido o Prémio Tocqueville em 2011.

 

RESUMO

Este artigo procura abordar os principais efeitos decorrentes para a teoria económica, nomeadamente na sua vertente fiscal, da formulação apresentada por Rawls na sua obra Uma Teoria da Justiça. Para o efeito, procede-se à caracterização do mandato das instituições de apoio à efectivação da justiça distributiva, com o contributo igualmente de Phelps, e à análise das restrições decorrentes da obrigação moral da justiça intergeracional. Por fim, apresentam-se as principais críticas que Arrow formula ao pensamento de Rawls, em particular em torno da aplicação do critério maximin, apesar de reconhecer o seu importante contributo para o debate sobre os princípios orientadores das políticas públicas.

Palavras-chave: Rawls, Teoria da Justiça, Phelps e Arrow.

 

ABSTRACT

This article aims to discuss the main de Rawls implications to economic theory, especially on the fiscal front, coming from the formulation presented by Rawls in his well-known piece Theory of Justice. In order to achieve this goal, description of the mandate awarded to background institutions for distributive justice is presented, including the Phelps contribution, and also an analysis of the main constrains derived from the moral obligation to inter-generation justice. Finally, the objections presented by Arrow regarding Rawls formulation are described, in particular regarding the implementation of the maximin criterion, despite recognizing the important contribution done by this author to the debate surrounding the guiding principles of public policies.

Keywords: Rawls, Theory of Justice, Phelps, Arrow.

 

O presente artigo procura abordar os principais efeitos decorrentes para a teoria económica, nomeadamente na sua vertente fiscal, da formulação apresentada por Rawls na sua obra Uma Teoria da Justiça2. Para o efeito, na primeira parte do artigo procura-se elaborar uma breve síntese dos principais pontos que constituem o argumento de Rawls. Posteriormente, procede-se à caracterização do mandato das instituições de apoio à efectivação da justiça distributiva, com o contributo igualmente de Phelps, e à análise das restrições decorrentes da obrigação moral da justiça intergeracional. Por último, apresentam-se as principais críticas que Arrow formula ao pensamento de Rawls, em particular em torno da aplicação do critério maximin, apesar de reconhecer o seu importante contributo para o debate sobre os princípios orientadores das políticas públicas. A conclusão do presente artigo é a de que o estudo da obra de Rawls assume-se hoje como vital, face ao presente contexto social e económico, como ponto de partida a uma reflexão mais profunda do papel do Estado na sociedade. Esta necessidade é válida não só para quem se opõe ao argumento de Rawls mas, sobretudo, para quem o defende.

 

A ESTRUTURA CENTRAL DA TEORIA DE JUSTIÇA PROPOSTA POR RAWLS

O debate em termos económicos relativamente à obra centra-se, essencialmente, na formulação associada ao princípio da diferença. No entanto, Rawls assume uma ordem lexical em relação às prioridades a face ao princípio das liberdades, ao princípio da igual dade equitativa das oportunidades e, por fim, ao princípio da diferença. Neste sentido, cada sociedade possui uma estrutura básica que determina, pelas suas especificidades e consensos alcançados, a forma como o cabaz de bens primários são distribuídos. Os bens primários são meios para fins genéricos e compreendem direitos, liberdades e oportunidades, rendimento e riqueza e a base social do «auto-respeito»3. Por sua vez, a estrutura básica é constituída por instituições das quais se destacam a constituição política, as leis relativas à propriedade, a fiscalidade e os sistemas de educação e protecção social (arranjos institucionais de natureza jurídica). Para Rawls, «uma sociedade justa é uma sociedade que tem uma estrutura básica justa». Importa, pois, voltarmos ao exercício de formulação de uma teoria de justiça e aos princípios que esta deve incorporar.

Em termos do princípio das liberdades, Rawls assume como primordial a existência de uma constituição justa, a qual assegure as liberdades e os direitos de cidadania. Nesse contexto, as liberdades de consciência e de pensamento são consideradas como garantidas e o verdadeiro significado de liberdade política é respeitado. O processo político é conduzido de forma justa, na medida em que as circunstâncias o permitem, com tradução directa na justeza da eleição para os órgãos governativos e no funcionamento da assembleia legislativa. Toda esta formulação é incorporada no primeiro princípio da teoria de justiça proposta por Rawls e que assume a seguinte redacção: «Cada pessoa deve ter um direito igual a um esquema inteiramente adequado de direitos e liberdades básicas, compatível com o mesmo esquema para todos.»

No entanto, este primeiro princípio apenas assegura a existência de um Estado de direito (rule of law) que respeita as liberdades individuais, tanto sociais como políticas, e que estabelece uma esfera inviolável de actuação para cada pessoa. Assim sendo, para a formulação de uma efectiva teoria da justiça, importa assegurar uma efectiva igualdade de oportunidades (ao invés de apenas formal) com uma distribuição equitativa da riqueza e do rendimento. Neste sentido, Rawls apresenta o segundo princípio da justiça, o qual se enuncia em seguida: «As desigualdades económicas devem satisfazer duas condições: em primeiro, ser a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades; e em segundo lugar, ser para o maior benefício dos membros menos favorecidos da sociedade.»

Este princípio poder-se-á decompor em duas partes que correspondem ao princípio da oportunidade4e ao princípio da diferença. O princípio da oportunidade traduz-se numa acção governativa que promova o igual acesso de todos os cidadãos à educação e cultura, bem como ao exercício de funções e posições na sociedade5. A partir deste ponto inicia-se a clivagem entre o argumento de Rawls e autores liberais dado que, para estes, apenas é necessário assegurar que todos partem do E igual ponto de partida em termos formais. O resultado da interacção entre os vários agentes, ou seja, o mercado, dita o resultado final para cada um em função das suas capacidades, conhecimentos técnicos e sociais e da própria sorte (princípio de Pareto). Este mecanismo de promoção de eficiência, sem qualquer factor valorativo em relação à equidade na distribuição do resultado final, traduz-se num sistema de liberdade natural em linha com a formulação de Adam Smith6.

Para Rawls, a conjugação da promoção da eficiência com o respeito pelos direitos e liberdades básicas não assegura um resultado final justo dado que não elimina a aleatoriedade decorrente de factores sociais e naturais (na formulação rawlsiana designadas de lotarias social e natural). Apenas a conjugação do princípio da diferença com uma igualdade equitativa de oportunidades potencia aquilo que Rawls define como igualdade democrática, e que vai bastante para além da igualdade liberal7. Assim sendo, o sistema social deve ser desenhado de forma a garantir uma distribuição justa qualquer que seja o caminho aleatório percorrido. Para o efeito é necessário definir o processo económico e social à luz do enquadramento das instituições políticas e legais que compõem uma estrutura básica justa. Deste facto nasce a importância do princípio da diferença, o qual requer que na estrutura básica sejam criadas as condições para que as diferenças de riqueza e rendimento, enquanto potenciadores de incentivos, revertam num efectivo aumento das expectativas dos mais desfavorecidos.

Chegados a este momento, é tempo de introduzir o argumento da «posição original», o qual reforça a noção de justiça formulada por Rawls. Assumindo uma situação hipotética em que os cidadãos de uma democracia são representados pelas «partes», estas, pelo facto de se encontrarem sob o véu da ignorância, tenderão a agir de forma imparcial dado não conhecerem as pessoas que representam. Paralelamente, assume-se igualmente que as «partes» são inteiramente racionais, iguais e mutuamente indiferentes, avessas ao risco e sem conhecimentos de probabilidades. Desta forma, garante-se a eliminação dos factores de parcialidade decorrentes das experiências de vida dos indivíduos. Importa referir que o argumento do véu da ignorância incorpora um elemento moral e decorre do imaginário contratualista. Esta formulação é meramente teórica ao invés do estado natureza de Hobbes e Locke, o qual tende a configurar-se como uma realidade histórica8. Dado o contexto de incerteza que caracteriza a posição original, as «partes» irão optar racionalmente por um acordo segundo o critério do maximin9, ou seja, a maximização do mínimo que se pode obter em qualquer dos cenários possíveis. As partes estão interessadas em excluir situações inaceitáveis para os seus representados, o que elimina também o utilitarismo como base de formulação para uma teoria da justiça. O princípio utilitarista da maximização da utilidade traduz-se apenas na tentativa de angariar o maior bem-estar colectivo possível sem que garanta um mínimo para todos (moralmente inferior dado que não tem uma visão redistributiva), podendo inclusive atentar contra os direitos e liberdades dos representados pelas partes. Paralelamente, Rawls sugere também a maior estabilidade social das sociedades que se regem pelo princípio da justiça, ao invés do princípio utilitarista, dado que à medida que as diferenças sociais se acentuam, os cidadãos tendem a diminuir a sua confiança na ordem institucional e no funcionamento democrático.

Graficamente, com base na formulação apresentada por Rawls, os possíveis equilíbrios são apresentados seguidamente:

 

 

Assumindo que o plano apresentado anteriormente descreve a relação possível entre a utilidade de dois grupos de agentes, U1 e U2, e que a linha FF representa a «curva de contribuição», a qual representa a relação da melhoria da posição de U1 em relação à posição de U2. Importa referir que a configuração da «curva de contribuição»10 decorre apenas de uma avaliação empírica de Rawls. Dado o critério do maximin, o ponto escolhido será R; se a escolha decorrer da maximização das utilidade individuais, será B; por fim, se o critério for o da utilidade média, o ponto final será N. Face às justificações apresentadas anteriormente, Rawls conclui que os dois princípios da justiça respeitam os diferentes modos de vida e que conduzem ao verdadeiro conceito de «justiça como equidade»11, a aplicar à estrutura básica da sociedade. Na verdade, assiste-se à criação de um contrato social, através do princípio da diferença, no qual se estabelece uma relação de reciprocidade entre os menos desfavorecidos e mais favorecidos. Os menos desfavorecidos aceitam as vantagens que os mais favorecidos detêm mas estes, por sua vez, sabem que as desigualdades apenas são permitidas na condição de um incremento em termos absolutos da posição dos mais desfavorecidos. Desta forma, o conceito de «justiça como equidade» deverá ser capaz de gerar uma sociedade correctamente ordenada, o que requer a validade das seguintes condições: a concepção de critério público de justiça é aceite e conhecida por todos os cidadãos; todos os cidadãos têm todas as razões para acreditarem que a estrutura básica da sua sociedade satisfaz este critério público; e, por fim, todos os cidadãos têm um efectivo sentido de justiça e por isso estão disponíveis para viver de acordo com o critério de justiça e respeitar a ordem institucional decorrente do mesmo.

Importa também apresentar os cinco regimes ou ordens sociais que Rawls considera como possíveis: o capitalismo de laissez-faire; o capitalismo de Estado-providência; o socialismo de Estado; o socialismo liberal (ou democrático)12; e, por último, a democracia de proprietários. Os três primeiros regimes são excluídos do critério de justiça formulado por Rawls uma vez que não respeitam algum dos princípios apresentados anteriormente. A preferência centra-se numa democracia de proprietários uma vez que, ao invés do capitalismo de Estado-providência, a distribuição da riqueza encontra-se repartida por uma larga parte da população. Neste sentido, um esquema de tributação progressivo e elevado sobre as heranças será essencial. Outra diferença em relação ao capitalismo de Estado-providência é que este tende a gerar um grupo de receptores permanente de benefícios sociais, os quais ficam progressivamente excluídos de qualquer participação na vida social e económica da sociedade. Para Rawls, a lógica da assistência e intervenção pública, para além de aliviar os casos de pobreza extrema, deve fomentar a prazo que todos os cidadãos passam ser auto-sufi-cientes na geração de rendimento. Esta ideia sugere a importância do papel da educação como mecanismo de sucesso futuro e de redução das despesas sociais.

 

 

JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E AS SUAS INSTITUIÇÕES DE APOIO

Seguidamente, Rawls sugere a necessidade da criação, por parte do governo, de instituições responsáveis por quatro áreas de actuação de forma a garantir uma efectiva justiça distributiva. À primeira instituição, the allocation branch, cabe a tarefa da alocação de recursos e de zelar pelo bom funcionamento dos mercados de forma a evitar a criação de um poder excessivo por parte dos agentes intervenientes. Cabe igualmente a esta instituição a atribuição de subsídios, o lançamento de impostos e a alteração da definição dos direitos de propriedade de forma a corrigir eventuais externalidades positivas ou negativas. No nosso actual contexto, esta instituição corresponde ao papel desenhado para as entidades reguladoras dos vários sectores de actividade. A segunda instituição defendida por Rawls, the stabilization branch, tende a configurar o papel que a Reserva Federal Americana13assume na promoção do emprego total dos recursos existentes. A conjugação dos esforços de ambas as entidades enunciadas anteriormente visam a manutenção da eficiência14da economia de mercado.

Os pagamentos decorrentes de uma rede de protecção social miníma15, e definidos pelo governo, devem estar a cargo da instituição a que Rawls apelida de transfer branch e que corresponde à segurança social. No entanto, cabe igualmente a esta instituição garantir que a distribuição de rendimentos gerada pelo mercado seja justa e que gera um equilíbrio saudável entre salários e lucros. Desta forma, assegura-se a satisfação das necessidades da sociedade e o respeito pela princípio da diferença, pois estão a maximizar-se as expectativas a longo prazo dos mais desfavorecidos. Rawls sugere mesmo que, uma vez o correcto mínimo esteja assegurado pelas transferências sociais, o restante rendimento seja alocado através do sistema de preços desde que o mercado funcione razoavelmente e dada a inexistência de externalidades.

Por fim, Rawls introduz a distribution branch que corresponde, na nossa realidade, a um conjunto de acções governativas com tradução prática via sistema tributário. Para o alcançar dos seus objectivos, esta instituição socorre-se da tributação sobre as heranças e doações de forma a corrigir progressivamente a distribuição da riqueza e a evitar a concentração excessiva de poder financeiro. Desta forma, procura-se a dispersão da propriedade como forma de assegurar o valor da liberdade política e a equidade de oportunidades. No entanto, Rawls considera tão injusto como uma herança a diferença natural de capacidades intelectuais entre os indivíduos. A forma de correcção desta injustiça passa pelo estabelecimento de instituições que visem a promoção da educação e da cultura como forma de garantir a equidade de oportunidades entre todos. Cabe igualmente à distribution branch a responsabilidade pelo sistema de tributação de forma a alcançar as receitas necessárias à promoção da justiça, nomeadamente através do fornecimentos de bens públicos e transferências sociais de acordo com o principio da diferença. A preferência de Rawls vai para um sistema de tributação proporcional sobre a despesa, dado que penaliza em função do que cada um retira do conjunto de bens disponíveis, e não em função do que cada um contribui para o mesmo. A implementação de um sistema progressivo de tributação sobre o rendimento apenas se justifica como forma de assegurar o respeito pelo primeiro princípio da justiça, a justa igualdade de oportunidades entre todos e uma justa distribuição de riqueza entre todos. Na opinião de Rawls, um sistema proporcional de tributação sobre o consumo tende a interferir menos com os incentivos sobre os agentes económicos. Este movimento poderá estimular a concentração de riqueza nas famílias com maior capacidade de poupança, no entanto, a existência de um imposto sobre as heranças assegurará que estas não se transmitem efectivamente entre gerações. Desta forma, estão definidos os princípios gerais do sistema de tributação, o qual não visa a maximização da utilidade agregada mas apenas a justiça como equidade.

Em 1973, Phelps16parte do critério de maximin17formulado por Rawls e, assumindo um modelo a um só período (logo sem tributação sobre heranças e doações), conclui que, de forma a maximizar a receita para proceder à justiça como equidade e a garantir a manutenção dos incentivos, a taxa marginal de tributação deve decair à medida que o rendimento aumenta, chegando mesmo a zero para os escalões mais elevados. Phelps sugere ainda que a existência de um rendimento garantido pelo Estado pode induzir os mais desfavorecidos a não terem incentivo à procura de rendimento salarial. A forma de ultrapassar esta possível dificuldade passa pela criação de capacidade tributária para os mais desfavorecidos, ou seja, sempre que possível contribuem com trabalho para a sociedade. Por fim, Phelps conclui que o ponto central do sistema tributário rawlsiano centra-se na definição de quem são os mais desfavorecidos. Conclusões similares foram alcançadas por Ogura18.

Por fim, Rawls admite ainda a possibilidade da criação de uma quinta instituição, the exchange branch, a qual se rege já não de acordo com os princípios da justiça mas de acordo com o princípio do benefício. Pode acontecer que um largo número de cidadãos considere que a despesa pública deve ir para além da que é estritamente necessária para garantir a justiça como equidade. Neste caso, a regra de decisão deve assentar, segundo Rawls, no critério da unanimidade defendido por Wicksell de forma a assegurar que existe cobertura de meios para o pagamento da despesa pública efectuada. A forma de avaliar a realização, ou não, desta despesa passa pela comparação entre custos e benefícios da mesma, o que vai em linha com os princípios marginalistas. Rawls alerta também para o risco de confusão entre as acções que decorrem da obrigação moral de promoção da justiça e as que poderão estar ao abrigo da exchange branch. Esta chamada de atenção possui hoje uma validade extrema face à situação financeira que muitos países europeus defrontam, facto que suporta o argumento formulado por Rawls.

 

A JUSTIÇA ENTRE GERAÇÕES

Nenhuma teoria de justiça pode estar completa, concorde-se ou não com os seus princípios, sem deduzir o elemento intertemporal. Rawls sustenta que cada geração não deve apenas preservar os ganhos civilizacionais e culturais alcançados mas também investir na capacidade real de acumulação de capital em cada momento do tempo. Neste sentido, a continuada subida do nível mínimo de protecção social conduzirá a uma situação em que a criação de poupança deixa de ser possível ou à necessidade de um agravamento dos impostos (o que limita a prazo os estímulos em favor dos mais desfavorecidos). Ambas as situações, segundo Rawls, indiciam que o princípio da diferença está satisfeito e que não devem existir mais incrementos no valor do rendimento social mínimo. Seguidamente, Rawls conclui pela não validade do princípio da diferença, em termos de justiça intergeracional, dado que não existe a possibilidade de repor as desvantagens das gerações anteriores. Face a este contexto, Rawls formula então o princípio da justa poupança. Assumindo que as partes estão mediante o véu da ignorância, estas passam a representar as linhas de descendência das várias famílias e pretendem a formulação de um princípio que gostariam que as gerações antecedentes tivessem implementado igualmente. Face a estes dois requisitos, o resultado final assegura que o que é válido para uma geração seja igualmente para todas. Assim sendo, cada geração questiona-se a si mesma qual o montante a definir de poupança, assumindo que as gerações anteriores, ou as futuras, agiram, ou agirão, de acordo com o mesmo critério. Assim sendo, a presente geração não pode actuar a seu belo prazer dado que está limitada pelos princípios aceites na posição original para a definição de justiça entre pessoas em diferentes momentos do tempo19. Importa também referir que o princípio da justa poupança é uma regra que determina o intervalo de taxas válidas e que este pode variar ao longo do tempo em função das diferentes etapas do desenvolvimento económico. Rawls admite mesmo que a taxa de acumulação líquida atinja um valor nulo mediante o facto de as instituições actuarem de acordo com os princípios da justiça e que todas as liberdades básicas estão asseguradas. Por fim, importa referir que o princípio da justa poupança, apesar de este limitar o princípio da diferença, é fixado após uma sociedade ter aceitado os princípios da justiça. Ou seja, o princípio da diferença inclui o princípio da justa poupança como restrição, no entanto, o primeiro princípio da justiça e o princípio da oportunidade são anteriores ao princípio da diferença entre gerações.

 

ALGUMAS DAS CRÍTICAS DE ARROW20 A RAWLS

Arrow21 é um economista neoclássico, consequentemente defensor do utilitarismo, que desenvolveu vários trabalhos relevantes ao nível da teoria da escolha social. Neste sentido, ele considera que a formulação de Rawls é extremamente igualitária dado que todos os valores sociais – liberdade e igual acesso de oportunidades, rendimento e riqueza e o auto-respeito – devem estar distribuídos igualmente a não ser que diferenças revertam em favor dos menos favorecidos. Deste facto decorre que quaisquer vantagens naturais não geram qualquer pretensão a um reconhecimento. Assim sendo, os princípios da justiça são apenas um acordo relativamente à distribuição dos talentos naturais como um activo comum e à partilha dos benefícios gerados. Em termos da estruturação dos princípios da justiça, Arrow lança o argumento de que, se Rawls dá prioridade à liberdade em ordenação lexicográfica, o mesmo é válido no critério clássico da soma de utilidades. A sociedade, ao maximizar a soma das liberdades individuais, decide conjuntamente a soma das satisfações retiradas dos outros bens. Adicionalmente, Arrow sugere o facto de que à medida que o critério de maximin atenua as desigualdades, assiste-se à convergência deste com o resultado obtido decorrente da maximização da soma das utilidades. Em termos epistemológicos, a introdução do índice de bens primários por Rawls cria a mesma dificuldade de comensurabilidade que o conceito da utilidade retirada dos bens. Paralelamente, Arrow sugere ainda a importância de incluir a própria saúde no índice de bens primários, no entanto, este facto levantaria o problema conceptual, por exemplo, de avaliação da relação desta com a riqueza.

Ao nível económico, Arrow considera que as implicações redistributivas do critério do maximin tenderão a conduzir a uma radical igualização do rendimento entre indivíduos e gerações. Este mesmo resultado será alcançado, de acordo com a teoria utilitarista, se se assumir uma mesma função de preferência para todos os indivíduos e a maximização da soma da utilidade total. No entanto, Rawls sugere que a total igualdade de rendimentos entre os membros da sociedade não é do interesse dos menos desfavorecidos. Tal igualdade não estimularia os mais talentosos/favorecidos à procura de factores de inovação que se traduzam numa melhoria de benefícios para todos, mas sempre de acordo com o princípio da diferença. Arrow considera este argumento inconsistente com a concordância da possibilidade da tributação progressiva sobre o rendimento e a atribuição de subsídios (negative income tax), posterior no argumento de Rawls, caso sejam necessárias para a promoção da justiça como equidade. Neste contexto, os estímulos deixarão de funcionar como elemento de progresso da sociedade e assistir-se-á à efectiva igualização do rendimento entre todos. A única forma de evitar este problema passa pela obrigação de cada um actuar de forma justa, ou seja, no limite as pessoas deveriam ser tributadas pela sua capacidade de produzir e não pela sua produção efectiva. Obviamente que esta ideia, em termos práticos e sociais, seria muito difícil de implementar dada a necessidade de estabelecer critérios objectivos de avaliação das capacidades e o facto de se assumir que as economias estão permanentemente em pleno emprego. Arrow argumenta que Rawls assume que tantos os eleitores como o legislador têm a obrigação moral de actuar de acordo com os princípios da justiça e não em linha com o seu interesse próprio. Será esta hipótese aceitável? Phelps, em certa medida, responde a esta questão ao sustentar a necessidade de mesmo ao mais desfavorecidos ser-lhes exigida capacidade tributária, concretamente em trabalho para a comunidade. Por fim, Arrow questiona o princípio da justa poupança. Uma das questões mais difíceis de determinar, segundo ele, é a questão da distribuição da riqueza entre gerações. Para Rawls, na posição original as «partes» não sabem a qual geração pertencerão e, decorrente deste facto, tenderão a definir um valor justo para a taxa de poupança. No entanto, levanta-se posteriormente a questão de qual o peso relativo para a definição do nível de poupança de cada geração futura. Na perspectiva do utilitarismo, o peso relativo da geração seguinte será superior ao da geração posterior, e assim sucessivamente, na sequência do cálculo do valor descontado das utilidades futuras. Rawls sustenta que o princípio da diferença não é válido entre gerações dado que as gerações anteriores já não poderão ser compensadas face aos benefícios que geraram para as gerações futuras. No entanto, segundo Arrow, este facto poderá conduzir a que a actual geração, ao estimar os benefícios futuros do progresso tecnológico, decida por uma taxa nula ou negativa de poupança22(assumindo um valor nulo para a taxa de crescimento da população). Mas se esta estimativa de benefícios se provar infundada, como resolver a questão de justiça intergeracional? Rawls tenta mitigar este problema ao considerar que, na posição original, cada uma das partes representa uma linha familiar, o que introduz um elemento altruístico para a mitigação desta questão. No entanto, e no limite comenta Arrow, poder-se-ia concluir que quem deveria poupar seriam apenas as pessoas com filhos uma vez que serão estas os principais beneficiários (via descendência) das despesas de educação e com infraestruturas públicas. Apesar de todas estes comentários, Arrow reconhece o forte contributo de Rawls para o debate em torno dos objectivos a definir para a definição de políticas públicas.

Em suma, Rawls, através do seu pensamento inovador, mudou a perspectiva de encarar o conceito de justiça. O forte interesse que a sua formulação gerou inclusive junto de especialistas de outras áreas, como Arrow e Phelps, apenas comprova este facto. A actual crise económica e social certamente relançará, a prazo, o pensamento de Rawls para a primeira linha do debate político contemporâneo.

 

Data de receção: 17 de fevereiro de 2014

Data de aprovação: 9 de maio de 2014

 

NOTAS

1 A pedido do autor o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2 RAWLS, John – A Theory of Justice. Revised Edition. Harvard: Harvard University Press, 1999, Capítulos III, IV e V.

3 Rawls, seguindo a sugestão de R.A. Musgrave, considerou, inclusive, incluir o lazer também no cabaz de bens primários como sendo este a diferença, em termos temporais, da parte do dia não afecta ao trabalho. No entanto, esta inclusão potenciaria o problema de que uma situação de desemprego se traduziria apenas numa situação de remuneração em lazer.

4 Segundo a definição apresentada por Thomas Pogge. POGGE, Thomas – John Rawls: His Life and Theor y of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2007, Capítulos V e VI.

5 Rawls sugere que, ao nivel educacional, a promoção da igualdade de oportunidades passa tanto passa pela promoção de uma rede pública de escolas bem como pelo apoio financeiro a escolas privadas. Em termos económicos, importa assegurar a inexistência de barreiras à entrada em relação à criação de novos negócios e regular o poder de monopólio em actividades sujeitas a este tipo de estrutura económica.

6 Importa também fazer o balanço das exigências morais da sociedade comercial para Adam Smith, frequentemente ignorado pelos seus críticos. Paralelamente aos benefícios materiais decorrentes da “Opulência Universal”, o mercado era um mecanismo eficaz para a promoção do controlo pessoal e da orientação das paixões em benefício directo da sociedade. A persecução do interesse próprio no mercado, com a sua divisão do trabalho e com a consequente dependência dos outros, leva a que o homem adopte um comportamento em linha com o que os outros esperam dele. O desejo de ser observado com simpatia e com aprovação pelos outros define a sua actuação diária. Decorrente deste exercício, cada homem é incentivado a ver o mundo na posição do outro, o que o conduz para além do seu próprio egoísmo. A sua capacidade de desempenhar o papel de espectador imparcial nas suas relações com os outros, e consequentemente no mercado, assume-se vital para o seu sucesso. A presunção de um sistema de liberdade natural por parte Adam Smith, assente numa forte componente moral, talvez seja, infelizmente, a maior falha na sua formulação. Citação de livro: MULLER, Jerry Z. – The Mind and the Market: Capitalism in Western Thought. Nova Iorque: Anchor Books, 2002, pp. 51-83.

7 Esta aceita naturalmente a existência de carreiras abertas às competências mas sujeita-as ao critério da eficiência. O sis-tema de liberdade natural é também uma concepção de justiça mas é moralmente inferior, para Rawls, dada a não correcção das desigualdades decorrentes das aleatoridades sociais e naturais.

8 ESPADA, João Carlos, ROSAS, João Cardoso - Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução. Lisboa: Bertrand Editora, 2004, pp. 83-103.

9 RAWLS, John – «Some Reasons for the Maximin Criterion». In American Economic Review, Maio 1974, pp. 141-146.

10 Scott Gordon critica esta formulação por ter apenas uma base empírica. Segundo este autor, no caso de a «curva de contribuição» ter uma configuração pró-linear, o critério de maxmin não conseguirá determinar um ponto de equilíbrio. Esta situação corresponde a sociedades como maior uniformidade de capacidades. GORDON, Scott – «John Rawls’s Difference Principle, Utilitarianism, and the Optimum Degree of Inequality». In Journal of Philosophy, Maio 1973, pp. 275-280.

11 A escolha é feita a partir de uma situação de equidade gerada pela formulação teórica associada ao véu da ignorância, a qual é válida para todos.

12 Rawls apenas apresenta uma breve descrição do socialismo liberal. A ideia básica é de que os membos das unidades de produção, aqueles que trabalham juntos nas empresas industriais ou nas unidades agrícolas, devem governá-las juntos de forma democrática. Consequentemente, a economia seria então o conjunto destas unidades autónomas em competição. Em todos os restantes aspectos, o socialismo liberal seria idêntico à formulação de democracia de proprietários.

13 A Reserva Federal Americana assume igualmente a estabilidade de preços como linha orientadora da sua actuação. A actual crise financeira na Europa tem suscitado a questão se o Banco Central Europeu não deverá assumir igualmente como seu objectivo, para além de estabilidade de preços, a promoção do crescimento económico e do emprego.

14 A noção de eficiência para Rawls centra-se na promoção do pleno emprego, ao invés da perspectiva neoclássica que procura a maximização da produtividade dos recursos produtivos.

15 A protecção social miníma consagra as prestações para apoio familiar, o pagamento de subsidios de doença e de desemprego e uma prestação equivalente, no caso português, ao rendimento minímo garantido.

16 PHELPS, Edmund S. – «Taxation of Wage Income for Economic Justice». In The Quarterly Journal of Economics, N.º 87, Vol. 3, 1973, pp. 337-354.

17 Ver também a crítica formulada por Harsanyi. HARSANYI, John – «Can the Maximin Principle Serve as a Basis for Morality? A Critique of John Rawls’s Theory». In American Political Science Review, Junho 1975, pp. 594-606.

18 OGURA, Seiritsu - «More on Rawlsian Optimal Income Taxation: A Complementary Note on E. S. Phelps’s “Taxation of Wage Income for Economic Justice”». In The Quarterly Journal of Economics, N.º 91, Vol. 2, 1977, pp. 337-344.

19 Para Rawls, a preferência intertemporal por parte de uma sociedade é injusta uma vez que a actual geração procura maximizar os seus beneficios sem atender às necessidades das gerações seguintes. Este acto de preferência intertemporal a nível individual será irracional pois não trata como iguais todos os momentos da vida.

20 ARROW, Kenneth – «Some Ordinalist-Utilitarian Notes on Rawls’s Theory of Justice». In Journal of Philosophy, Maio 1973, pp. 245-63.

21 Arrow recebeu, em 1972, o Prémio Nobel da Economia pelo seu contributo para a teoria da escolha social.

22 Solow prova que, de acordo com um conjunto de hipóteses simplificadoras e em cada momento do tempo, o nível óptimo para a taxa de poupança é o resultado do produto entre a taxa de crescimento da população e o rácio entre capital e produto, dadas as condições tecnológicas existentes. SOLOW, Robert – «A contribution to the theor y of economic growth». In Quarterly Journal of Economics, N.º 70, 1956, pp. 65-94.