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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.43 Lisboa set. 2014

 

25 ANOS DA QUEDA DO MURO DE BERLIM

 

Nota introdutória: A Revolução Europeia 25 anos depois: implicações euro-atlânticas e globais

 

Patrícia Daehnhardt*, Maria Raquel Freire**

* Professora Auxiliar de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora e membro do Conselho Científico do IPRI-UNL. Doutorada em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science. Coordenadora da Direção da Secção de Relações Internacionais da Associação Portuguesa de Ciência Política. Os seus temas de investigação incluem a política externa da Alemanha, a política internacional da União Europeia (PESC e PCSD) e o papel das potências emergentes na reformulação da ordem internacional.

** Professora auxiliar com agregação de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Estudos Sociais. É atualmente subdiretora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Os seus interesses de investigação centram-se em questões de política externa, segurança internacional, estudos para a paz, Rússia e espaço pós-Soviético.

 

Quando, há 25 anos, em 1989, o Muro de Berlim caiu, o bloco soviético desmoronou, e a União Soviética implodiu pouco depois, dissolveu-se a ordem mundial bipolar do pós-guerra resultante da confrontação indireta entre as duas superpotências, os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em grande parte de forma pacífica, produzindo mudanças fundamentais no continente europeu mas alterando também as coordenadas da política mundial.

O fim das ditaduras dos partidos comunistas na Europa Central e Oriental, seguido pela opção dos antigos Estados-satélites soviéticos rumo à democracia, economia de mercado e a integração europeia, definia 1989 como o «annus mirabilis» (Timothy Garton Ash) e o momento do «fim da história» (Francis Fukuyama) na medida em que o modelo da democracia liberal tinha derrotado o fascismo e o comunismo, tornando supérflua a guerra de ideologias que tanto tinha marcado o século XX. Este clima de otimismo generalizado explica-se, logo à partida, pela forma como a transição de poder aconteceu no palco internacional: pela via negocial e pacífica, sem a ocorrência de uma Guerra hegemónica, e pelo reconhecimento voluntário da URSS de que já não era capaz de manter o seu estatuto de superpotência. Isto torna possível o fim da divisão da Europa e a mudança estrutural pacífica na Europa, ao passo que a continuidade das instituições existentes, como a Aliança Atlântica, as Comunidades Europeias e a Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa, assegurava uma transição equilibrada para o mundo do pós-Guerra Fria.

 

«1989»: uma cesura histórica no espaço euro-atlântico

A revolução europeia pacífica de 1989 confirmou que o início e o fim da Guerra Fria ocorreram na Europa. Se durante quarenta anos as ‘duas Europas’ representaram o palco da competição estratégica entre as duas superpotências, na insistência da fórmula «Paz impossível, guerra improvável» de Raymond Aron, o fim dessa competição e da ordem bipolar deu-se de forma inesperada, pacífica, negociada e não coerciva, na ausência de uma nova grande Guerra – através de uma cadeia de acontecimentos extraordinários que teve o seu apogeu na queda inesperada do Muro de Berlim1. A construção da futura ordem de segurança pós-Guerra Fria na Europa assentou num processo de negociação internacional que antecedeu a unificação alemã e moldou o fim da Guerra Fria, resultando numa transformação da estrutura de poder no espaço euro-atlântico, onde os Estados Unidos permanecem a principal potência transatlântica e onde a Alemanha emerge como a potência central europeia2.

Quando, em 1985, Mikhail Gorbachev assumiu o cargo de secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e revogou, poucos anos depois, a doutrina soviética da soberania limitada, imposta por Moscovo ao Bloco de Leste, a abertura e democratização dos países da Europa central e oriental tornam-se possível e impulsionam a revolução democrática europeia. Na Polónia, o regime comunista viu a sua base partidária afetada logo em 1980, após a primeira visita papal e a criação do sindicato independente Solidarnosc, que se fortaleceu quando o regime impôs a lei marcial e com um papel importante da Igreja católica polaca. Como afirmam Madalena Meyer Resende e Marcin Zatyka neste número especial, «a Igreja permaneceu um elemento agilizador do processo [de negociações para a transição política], ajudando a ultrapassar impasses», como, por exemplo, «sobre a exigência de legalização do Solidariedade» e da sua «inclusão na esfera política». Em junho de 1989, a oposição ganhou as primeiras eleições livres num país da Europa central e oriental, e em agosto Tadeusz Mazowiecki tornou-se o primeiro chefe de governo não comunista da Polónia desde a Segunda Guerra Mundial. A Hungria foi relevante ao abrir as suas fronteiras com a Áustria, em maio de 1989, tornando-se catalizadora de um processo de movimentação de pessoas que, vindas da República Democrática da Alemanha (RDA), Hungria, Checoslováquia e outros países de leste, procuravam garantir a sua entrada nos países democráticos da Europa ocidental. A queda do Muro de Berlim e a perspetiva de unificação das duas Alemanhas foi um ponto central da narrativa do ano de 1989 e marcou a anulação do papel das duas Alemanhas enquanto microcosmos da bipolaridade sistémica que perdurou durante quatro décadas.

Neste processo em curso, momentos de transição política antecedentes serviam de referência. É interessante observar, como o faz Ana Mónica Fonseca, que «a atuação dos partidos socialistas e sociais-democratas europeus durante a transição portuguesa para a democracia tornou-se uma espécie de lição que seria, de algum modo, reproduzida nos casos subsequentes de cenários de democratização – muitas vezes com o caráter paradoxal de procurar evitar uma repetição do que se passou em Portugal no período revolucionário de meados da década de 1970».

O ano de 1989 e o fim da Guerra Fria marcam o início, também, de uma transição que só pode ser analisada à luz da confluência de duas dinâmicas simultâneas: por um lado, a dinâmica da(s) mudança(s): a mudança estrutural com o fim do sistema de distribuição de poder bipolar; a mudança ideacional com a consolidação do sistema liberal democrático; a mudança institucional com o fim do Pacto de Varsóvia; o fim da competição estratégica entre Estados Unidos e URSS e o próprio fim da URSS. Por outro, a dinâmica das continuidades (provou-se uma falácia pensar-se que as continuidades seriam todas positivas, numa aceção de progresso e evolução histórica positiva). Desde logo pela continuidade das instituições internacionais através das políticas de alargamento e de aprofundamento institucional em direção aos países do leste europeu. Mas também pela continuidade na resolução das crises internacionais, que, como no caso das guerras balcânicas, parecia confirmar as alianças e instituições da Guerra Fria. Estes dois aspetos pareciam garantir a continuidade da ordem internacional e do modelo de ordenamento internacional. O ponto relevante nesta dicotomia mudança e continuidade foi o paradoxo de que, em 1989, ocorreu uma alteração estrutural na distribuição de forças – de transição da bipolaridade entre Estados Unidos e URSS para a unipolaridade norte-americana, mas ao mesmo tempo a manutenção da ordem constitucional e transição equilibrada para o mundo do pós-Guerra Fria.

Em termos concetuais, para os liberais institucionalistas, foram as instituições internacionais e o quadro institucional e normativo do espaço euro-atlântico, e o seu alargamento para o leste europeu, que consolidaram a coesão intraeuropeia e fortaleceram o Ocidente na sua convicção da preponderância normativa do seu modelo. Para estes, a fonte de estabilidade era fortalecida pelas binding institutions, como G. John Ikenberry lhe chamou – as instituições normativamente vinculativas3. Em contrapartida, para os realistas, foi a capacidade dos Estados Unidos que forçou a União Soviética a um recuo estratégico da política internacional, onde os Estados Unidos se afirmam como potência hegemónica, sem limites ao exercício de poder e num quadro estrutural de unipolaridade – se bem que numa conceção de hegemonia benigna ou benevolente, por se tratar de uma potência hegemónica democrática, para a qual as instituições estariam ao seu serviço mas para quem a aceitação do quadro normativo e modelo de ordem internacional deveria ser reconhecido como legítimo. Por outras palavras, a ordem internacional é estável devido à existência da potência hegemónica com poder para atuar como tal. Como sugere Tiago Moreira de Sá, «apesar de terem participado no desfecho do conflito bipolar, tanto Reagan como Bush foram atores secundários, o que se explica pelo facto de os próprios Estados Unidos terem tido um papel relativamente pequeno na revolução de 1989/1991». Contudo, refere Moreira de Sá, «os Estados Unidos foram fundamentais não no fim mas no pós-Guerra Fria. Foram-no, (…), desde logo no processo de reunificação alemã. Mas, mais importante ainda, a transição do sistema internacional bipolar para o unipolar, restando apenas a América como única superpotência e com uma concentração de poder só comparável historicamente ao império romano, fez com que Washington tivesse mais do que nunca em condições de definir o mundo que queria ter. A grande questão do pós-1989/91 era o que os Estados Unidos pretendiam fazer com o novo poder esmagador.»

Nesse sentido, a revolução europeia foi uma revolução democrática, com vista à alteração democrática e à criação de uma Europa «whole and free», como lhe chamou o presidente norte-americano George Bush, alcançável através de «uma única ideia poderosa: a democracia»4. O corolário de uma Europa unida e livre seria a expansão da ordem democrática liberal e, por conseguinte, da ordem internacional. O Secretário-Geral das Nações Unidas, Boutros-Ghali, viu no fim da Guerra Fria uma oportunidade histórica quando, com a sua «Agenda para a Paz: diplomacia preventiva, peacemaking e peacekeeping», em junho de 1992, recomendou uma diplomacia mais ativa e preventiva, através de operações de imposição da paz e de manutenção da paz e a construção da paz pós-conflito violento, e desenvolveu o argumento do fim da «soberania absoluta e exclusiva» de Estados5. Na prática, a coligação internacional que se constituiu sob liderança dos Estados Unidos para responder à anexação do Kuwait pelo Iraque em agosto de 1990, e que levou a cabo uma intervenção militar internacional em fevereiro de 1991 para reposição do status quo ante – a soberania do Kuwait –, fazia antever, na perspetiva mais otimista, que futuras violações do Direito Internacional por parte de Estados desrespeitadores do mesmo seriam sancionadas de forma semelhante ao que acontecera na situação do Kuwait.

Passado um quarto de século, a crise na Ucrânia, em curso desde novembro de 2013, provocada pela política revisionista russa, que inverteu a fórmula de retraimento estratégico da União Soviética do final da Guerra Fria, e pelo apoio russo ao uso da força militar para impedir a Ucrânia de se aliar aos países democráticos ocidentais, define o momento mais sério de crise no espaço euro-atlântico desde o fim do conflito leste-oeste. As relações do Ocidente com a Rússia atingiram uma tensão inédita no quadro de segurança euro-atlântico, reveladora da perplexidade do Ocidente perante o revisionismo geopolítico russo. A inserção da Ucrânia num conjunto de seis países cujas opções políticas e institucionais ainda se encontram por definir, numa região denominada de ‘nova vizinhança europeia’ pela UE e ‘estrangeiro próximo’ pela Rússia, inviabiliza que estes países definam uma estratégia de política externa coerente. Entre a Parceria Oriental da UE, criada em 2009, e a Rússia com a sua ambição de reconstruir uma Rússia imperial, o registo é, desde a década passada, de divergências latentes e de leituras diferenciadas6. A anexação da Crimeia e o apoio aos separatistas russos no leste do território ucraniano confirmam que a Rússia de Vladimir Putin está disposta a pagar o preço do revisionismo político da sua política externa; quatro décadas após a adoção da Ata Final de Helsínquia, assinada por 35 países, incluindo a antiga União Soviética, em 1975, a Rússia de Putin não reconhece o status quo territorial na Europa e o princípio da inviolabilidade territorial dos Estados e a consequente limitação jurídica e política da alteração de fronteiras através do uso da força. Perante este quadro, a crise na Ucrânia pode ser catalizadora de uma nova convergência do interesse estratégico entre europeus e norte-americanos onde a cooperação entre os dois lados do Atlântico volta a ser crucial, com três implicações. Primeiro, e porque as fragilidades securitárias reemergiram no continente europeu, os Estados Unidos poderão ter de reorientar-se mais uma vez para a Europa ao mesmo tempo que se reposicionam estrategicamente no Pacífico. Segundo, no reforço do quadro de segurança transatlântica, aumenta a pressão sobre a Alemanha para assumir o papel de principal potência ordenadora no continente europeu. Neste contexto, Mónica Dias sugere que «a grande questão a que os alemães (e não só os seus dirigentes políticos) terão de responder é como pretendem redefinir a ideia da política externa enquanto “responsabilidade para a paz” numa era em que a insegurança e violência se tornaram globais. Como deverá fazer valer os seus créditos de «poder civil» com um enorme potencial económico e assumir ao mesmo tempo uma liderança forte, destacada e consequente nas relações internacionais? Como poderá assumir uma força de intervenção mais determinada e musculada sem tentações nem complexos imperiais?» Por último, a crise na Ucrânia é mais um teste, mas decisivo, à convergência ou falência na definição de um interesse e uma ambição estratégica da União Europeia.

 

«1989» como catalisador de mudanças globais?

Quando se diverte o olhar para fora do epicentro do que fora a Guerra Fria, a análise do significado de «1989» é menos linear, menos eufórica e menos circunscrita a um progresso em direção à democracia liberal e a um sistema de economia de mercado, como Francis Fukuyama o tinha sugerido antes da queda do Muro de Berlim. O ano de 1989 foi um ano de redemocratização e democratização – mas não representou a uniformização de um único modelo ocidental-liberal de democracia. É certo que ocorreu a independência da Namíbia em 1990, que terminou o regime do apartheid na África do Sul, culminando na libertação de Nelson Mandela, e que terminaram as guerras civis em Angola e Moçambique. Contudo, fora do espaço euro-atlântico, as mudanças que ocorreram foram comparativamente mais destabilizadoras do que impulsionadoras de maior estabilidade. A começar pelas franjas da Europa, inicia-se nos Balcãs o processo de desintegração longa e sangrenta da Jugoslávia; na China, a Praça de Tiananmen, em Pequim, torna-se o símbolo da resistência chinesa em prol do movimento de reforma democrática no país, reprimido pelo uso da força em junho de 1989; no Afeganistão, após a retirada das forças de ocupação soviéticas, começou uma guerra civil que culminou com o reinado de terror dos Talibã, facilitando posteriormente a formação de grupos terroristas internacionais.

Assim, a onda de democratização, liberalização e globalização que os analistas mais otimistas argumentavam que iria espalhar-se globalmente, cedo se revelou sem força impulsionadora. Perante a simultaneidade das dinâmicas de mudança e continuidade e as consequências maioritariamente positivas que ocorreram no espaço euro-atlântico entre 1989 e 1991 e a globalização que nele se vai consolidar na década de 1990, o choque foi total quando ocorreram os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001. Um conjunto de novos e velhos conflitos (re)emergiram à superfície da política internacional, com o antagonismo entre o mundo ocidental (e não só) e um conjunto de movimentos islâmicos radicais a representar o principal foco de instabilidade internacional. Os prolongados e reemergentes conflitos no Médio Oriente alargado e no norte de África, como na Síria, Iraque, Afeganistão e Líbia, revelam a fragilidade de uma ordem internacional condicionada por um longo período de combate ao terrorismo internacional e a movimentos não estatais de radicalismo religioso e ação terrorista, como a Al Quaida e mais recentemente o ‘Estado Islâmico’.

Depois do entusiasmo inicial quanto à possibilidade de democratização da zona do Médio Oriente e Norte de África, vários analistas questionavam a probabilidade de sucesso de tentativas de democratização, quando estas não forem acompanhadas por uma «ocidentalização». No entanto, a «Primavera Árabe» cedo se desqualificou como legítima sucessora das revoluções democráticas europeias vinte anos antes. Por outro lado, o balanço da Política Europeia de Vizinhança da União Europeia é crítico. Como observa Vanda Amaro Dias, os novos desafios securitários que emergiram com o fim da Guerra Fria levaram a UE a formular uma «estratégia europeia no plano internacional [que] passa pela exportação do modelo que pauta a sua governação doméstica. Concomitantemente, a UE tenta transformar os Estados com que se relaciona em democracias estáveis, para garantir a segurança europeia e projetar o seu modelo civilizacional»; no entanto, a «ambição da UE […] de se projetar como um ator internacional com capacidade para garantir a sua segurança permanece por realizar».

Se, na primeira década do pós-Guerra Fria, a estratégia internacional dos Estados Unidos se definia em função dos alargamentos institucionais e reprodução de modelos que tinham vingado o projeto universalista dos Estados Unidos – depois de este ter estado quase um século em oposição aos outros dois projetos universalistas do Ocidente, o da Alemanha nacional-socialista de 1933 a 1945 e o do comunismo soviético nas suas diferentes versões desde 1917 –, após os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001, a definição da estratégia norte-americana passava agora pela transformação do próprio sistema internacional e das alianças que a potência hegemónica definia. Esta transformação decorre do enfraquecimento do poder normativo dos Estados Unidos (já não visto como legítimo poder da potência preponderante porque deixara de ser benevolente), assim como a sobre-extensão do poder militar dos Estados Unidos, direcionado para as guerras do Afeganistão e do Iraque, por um lado, mas também decorre da ascensão de novas grandes potências no sistema internacional, que contestam ou não a preponderância dos Estados Unidos, mas cuja alteração de estatuto necessariamente afeta o poder relativo dos Estados Unidos enquanto potência hegemónica. Esta potencial alteração da unipolaridade sistémica em direção a uma multipolaridade iria ocorrer respetivamente da cesura que o 11 de setembro representa, mas é um processo que veio a ser alterado pela própria transformação dos Estados Unidos. Estes deparam-se com a emergência das novas potências numa posição de relativa fraqueza, e não de força, como teria acontecido nos 25 anos que se passaram desde o fim da Guerra Fria caso a estratégia norte-americana desde então tivesse podido prevalecer.

Ligada ao enfraquecimento da hegemonia norte-americana está a diminuição da atratividade da ordem liberal do Ocidente e a incapacidade de se encontrar uma fórmula globalmente consensual que defina um quadro normativo de referência para questões essenciais das Relações Internacionais, como o poder e responsabilidade, soberania e intervenções.

Por outro lado, assistimos, na política internacional, à consolidação da já referida nova polaridade do sistema internacional7. Esta polaridade caracteriza-se pela crescente contestação do modelo de ordem institucional criado pelo Ocidente – e que se tinha sentido vindicado em 1989 – pelas chamadas potências emergentes, os BRICS8, ou ainda, num patamar diferenciado, por Estados chamados ‘párias’ do sistema internacional como a Coreia do Norte. Estados como a China – cuja ascensão sistémica antecede o fim da Guerra Fria – e a Rússia, onde elementos de ressentimento e humilhação histórica jogam uma influência cognitiva importante, definem a sua ascensão muito em oposição aos Estados Unidos, potência que em termos de multidimensionalidade de poder permanece hegemónica no sistema. Mas a Índia e o Brasil são igualmente Estados emergentes, duas potências democráticas que, apesar de não serem percecionadas como revisionistas, sugerem outros tipos de democracia não necessariamente sinónimos de uma política externa coerente com princípios de democracia ocidental na política internacional, como uma abordagem diferenciada do princípio das intervenções militares por razões humanitárias e dos processos de democratização através do recurso ao uso da força militar. A Índia e o Brasil defendem uma perspetiva mais assertiva das suas soberanias, em política externa, e têm um posicionamento crítico às intervenções militares levadas a cabo pelo Ocidente, como se verificou, por exemplo, no caso da intervenção da Aliança Atlântica na Líbia, onde ambos os Estados se abstiveram no voto no Conselho de Segurança da onu9. Isto evidencia o limite, na atuação externa pelo menos, das semelhanças entre democracias e na sua definição de ordem internacional.

Mas esta contestação, se bem que surpreendente pela intensidade dos seus vários focos de instabilidade, ilustra também que 1989 representou uma transformação pacífica essencialmente para o espaço euro-atlântico e que outras trajetórias que ocorreram globalmente por essa altura não produziram o mesmo efeito de potencial ‘fim da história’ e preponderância da democracia liberal e do modelo capitalista como melhor modelo de aplicabilidade global. Por outras palavras, o fim da Guerra Fria – o fim do conflito político-ideológico e militar bipolar entre os Estados Unidos e a URSS – produziu resultados paradoxos e contraditórios que, por acontecerem fora do contexto euro-atlântico, não foram até agora retratados com o mesmo rigor científico, resultando num quadro analítico incompleto10. Passados 25 anos sobre o fim da Guerra Fria, o otimismo transatlântico – muitas vezes percecionado como triunfalismo ou mesmo projetado como tal – foi substituído por novas incertezas e um pessimismo generalizado decorrente do aumento dos conflitos violentos, de guerra e da ausência de estruturas securitárias verdadeiramente eficazes que assegurem uma ordem estável. Às novas guerras civis somam-se intervenções militares internacionais, que, se inicialmente intencionadas como instrumento (humanitário) para a criação de estabilidades regionais, vieram a produzir maiores incertezas na redefinição de alianças regionais, com novos atores e novos interesses por defender. Este pessimismo deriva de um conjunto de fatores internos e externos: os primeiros prendem-se com a crise do Lehman Brothers em 2008, provocada por uma liberalização desenfreada dos mercados internacionais e a prolongada crise financeira e económica na zona euro, o crescente desgaste com as paralisias da integração europeia, mas também com o descontentamento de várias populações locais, como o referendo na Escócia e a tentativa de independência da Catalunha demonstram. A acrescentar, no seio da Europa, a entrada de partidos eurocéticos e nacionalistas nas estruturas de representação políticas em alguns países, como na Alemanha, Suécia, França e Hungria, por um lado, assim como a problemática de acolhimento de milhares de refugiados vindos da Síria e do Norte de África, a Europa tarda em dar uma resposta unida, por outro. Dos fatores externos, a deteriorização aguda das relações entre a UE e a Rússia, que encontra na crise da Ucrânia a expressão mais complexa, mas a qual revela as diferentes perceções e quadros cognitivos e normativos entre a Europa e a Rússia. Para Lívia Franco, o facto de «a Rússia teme[r] o potencial atrativo do modelo de transição democrática e integração no ocidente prosseguido nos últimos 25 anos pelos países da Europa oriental e central» não impede esta, no entanto, de partir «de uma narrativa específica em que a Rússia, que foi traída pelo ocidente nos anos da instabilidade que se seguiram ao fim do projeto soviético, é tida como um parceiro sénior numa Europa e num mundo assentes numa ordem que tem necessariamente de ser multipolar».

Em última análise, para muitos países fora do contexto euro-atlântico, 1989 não representou a rutura e o ponto de transição sistémica que muitos analistas lhe atribuem. Antes pelo contrário, deu azo a expressões de humilhação e ressentimentos que muitos países sentem face ao Ocidente, antiga força colonizadora ou força triunfalista pós-1989. A Rússia de Putin, a China emergente (de forma mais subtil), por um lado, e movimentos de radicalismo islâmico, por outro, refletem, através de instrumentos diferentes, o seu descontentamento face aos Estados Unidos e à Europa. Nesse sentido, o Ocidente (que muitas vezes já não quer ser identificado como tal) está enfraquecido, e o seu poder de projeção é limitado. A coligação internacional que se está a constituir no combate ao Estado Islâmico (is), liderada pelos Estados Unidos e que inclui Estados árabes, é a expressão da tentativa dos Estados Unidos de ultrapassar esta divisão do mundo entre ‘the West and the Rest’. Uma análise crítica sugere, contudo, que já a coligação internacional de cinco dezenas de países no Afeganistão e no Iraque após o 11 de setembro não conseguiu travar o terrorismo islâmico ou garantir a permanência de uma ordem internacional estável, um cenário que se poderá repetir com esta coligação. Nada disto, no entanto, invalida a importância da revolução europeia para os europeus que se libertaram das ditaduras da Europa de leste, superando a divisão da Alemanha e da Europa e que ‘regressaram à Europa’, na maior parte dos casos de forma pacífica. Mesmo assim, o fim da Revolução europeia de 1989-1991 – um ponto de viragem único e uma cesura histórica – permanece em aberto. O balanço é sóbrio: primeiro, a onda de democratização não conseguiu impedir uma crise de legitimação democrática e a ascensão de regimes autoritários, por um lado, e a emergência de partidos políticos de cariz nacionalista, por outro; segundo, a globalização dos mercados provocou uma crise financeira e económica global, cujo centro, na zona do euro, fragiliza as estruturas democráticas no seio da União Europeia; por último, o nexo entre a democratização e a unificação da Europa, visto inicialmente como os dois lados da mesma medalha, é cada vez menos evidente e o projeto europeu depara-se de momento com novas ameaças à coesão e estabilidade da ordem europeia do pós-Guerra Fria.

Será no próximo quarto de século um desafio importante ver em que medida a Europa e os Estados Unidos podem assegurar a manutenção da ordem liberal por eles criada ao mesmo tempo que têm que desenvolver um novo modus vivendi com aqueles que não partilham os valores dessa ordem liberal e saber em que circunstâncias se devem opor e com que meios a uma contínua contestação a essa nova ordem ou de que forma poderão atenuar as consequências dessa contestação, aceitando compromissos mas mantendo-se fiéis e vigilantes aos valores da democracia e da liberdade, afinal, os valores pelos quais a revolução de 1989 foi travada.

 

NOTAS

1 GASPAR, Carlos – «A Guerra Fria terminou duas vezes», In Nação e Defesa, vol. 105, n.º 2, 2009, pp. 141-176.

2 DAEHNHARDT, Patricia – «O fim da Guerra Fria e a Unificação Alemã», In Relações Internacionais, n.º 23, setembro de 2009, pp. 39-52.

3 IKENBERRY, G. John – After Victory. Institutions, Strategic Restraint, and the Rebuilding of Order After Major Wars, Princeton: Princeton University Press, 2001.

4 «A Europe whole and free». Discurso do presidente George W. H. Bush em Mainz, na República Federal da Alemanha em 31 de maio de 1989. Disponível em: http://usa.usembassy.de/etexts/ga6-890531.htm

5 Relatório do Secretário-Geral das Nações Unidas Boutros Ghali intitulado «Uma Agenda para a Paz: diplomacia preventiva, imposição e manutenção da paz»,17 junho 1992. Disponível em: http://www.unrol.org/files/A_47_277.pdf

6 FREIRE, Maria Raquel – «O fim da URSS e a nova Rússia: alinhamento de política externa e a sua vizinhança próxima», In in Pedro Aires de Oliveira (org.) – O Fim da URSS, a Nova Rússia e a Crise das Esquerdas, Lisboa: Edições Colibri, 2013.

7 KUPCHAN, Charles – No One’s World: The West, the Rising Rest, and the Coming Global Turn, Nova Iorque: Oxford University Press, 2012.

8 O acrónimo BRIC surgiu pela primeira vez num Relatório da Goldman Sachs, em outubro de 2003, e identificava quatro Estados como se podendo tornar numa grande força na economia mundial: Brasil, Rússia, Índia e China – as economias BRIC. Ver WILSON, Dominic e PURUSHOTHAMAN, Roopa – Dreaming with the BRICs: the path to 2050. Global Economic Paper 99, Nova Iorque: Goldman Sachs, 2003.

9 Resolução 1973, de 17 de março política externa e a sua vizinhança pró-2011, no CSNU, sobre a aplicação de uma zona de exclusão aérea da NATO sobre a Líbia. Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N11/268/39/-PDF/N1126839.pdf?OpenElement

10 Para estudos que tentam contrariar esta tendência, ver RUPNIK, Jacques –1989 as a Political World Event: Democracy, Europe and the New International System in the Age of Globalization, Routledge, 2013, e LAWSON, George, ARMBRUSTER, Chris e COX, Michael – The Global 1989. Continuity and Change in World Politics, Cambridge: Cambridge University Press, 2010.