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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.42 Lisboa jun. 2014

 

RECENSÃO

Regimes Democráticos em Acção

Marcelo Camerlo*1

 

*Investigador de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

 

Quanto importa a forma do governo para o bom funcionamento dos sistemas democráticos? Após mais de 20 anos desde que o tema foi decididamente colocado na agenda, tendo Juan Linz como a sua mais destacada referência, são dois os principais ensinamentos que a literatura académica nos oferece. O primeiro, mais desenvolvido e partilhado, é que uma análise adequada da forma de governo (parlamentarista, semi-presidencialista, presidencialista) deve incluir a sua articulação com outros arranjos institucionais, tais como o sistema partidário, as regras eleitorais, a estrutura da legislatura ou a organização territorial. O segundo, menos explícito mas quase sempre presente, é que o funcionamento desses arranjos depende do uso concreto que deles façam os diferentes actores de um dado sistema político. Estas constatações têm implicado o progressivo reconhecimento tanto das variações internas como das similaridades externas das diferentes formas de governo. São exemplo do segundo as referências à ‘presidencialização’ de regimes parlamentares que apresentam modalidades de competição partidária bipolar, ou as dinâmicas parlamentares na distribuição de pastas ministeriais verificadas nos chamados «presidencialismos de coalizão». Consequentemente, aumenta o consenso em torno à ideia de que as democracias presidenciais podem funcionar tão bem (ou tão mal) quanto as democracias parlamentares ou semi-presidenciais, e vice-versa. Nesta linha, de acordo com alguns autores, as vantagens relativas não dependeriam tanto de atributos intrínsecos a cada forma de governo, mas sim dos contextos particulares de implementação.

Apesar disso e das frequentes referências cruzadas, o estudo do parlamentarismo e semi-parlamentarismo (na Europa, sobretudo ocidental) e o estudo do presidencialismo (na América, sobretudo latina) em grande parte têm percorrido caminhos separados, com um certo desconhecimento mútuo das suas práticas efectivas. Com a ambição de se debruçar sobre estes aspectos, o livro Presidencialismo y Parlamentarismo. América Latina y Europa Meridional propõe-se a colocar ‘cara a cara’ o desempenho de diferentes regimes democráticos através de um conjunto de estudos exploratórios realizados por reconhecidos especialistas. Baseado em informação minuciosa que inclui uma revisão actualizada do estado de arte, o livro, apesar de um certo desequilíbrio organizacional, cumpre optimamente com o seu objectivo, constituindo um material indispensável para o estudo das democracias contemporâneas. Serão apresentadas, de seguida, as suas principais contribuições e, num segundo momento, algumas propostas para uma agenda de investigação futura.

 

Quatro Proposições de um Guião Implícito

O livro oferece estudos de casos sobre cinco democracias presidencialistas, duas parlamentaristas e uma semi-presidencialista, organizados em dois grupos (latino-americano e europeu) e precedidos, cada um, por um capítulo introdutório. Alejandro Bonvecchi e Javier Zelaznick debruçam-se sobre os usos e efeitos dos diferentes recursos do governo do presidente argentino. Olhando para o caso do Brasil, Octavio Amorim Neto explica como é que funciona um regime que combina um presidente forte com um dos congressos mais fragmentados do mundo. Peter Siavelis examina o funcionamento do poder executivo chileno, introduzindo à questão da distribuição partidária dos ministérios a consideração do papel das redes informais. Diego Valdés desenvolve um estudo normativo e das dinâmicas concretas do executivo mexicano, optando por uma perspectiva comparada com os Estados Unidos. Jorge Lanzaro explica a configuração, funcionamento e modificação do original e bem-sucedido presidencialismo consociativo uruguaio. Por seu lado, Juan Luis Paniagua analisa os factores que no regime parlamentarista espanhol derivaram na configuração de um sistema de governo de tipo presidencialista. José Tudela Aranda incorpora a esta análise o nível ‘sub-estatal’, observando o papel que, neste processo, têm as Comunidades Autónomas espanholas. Gianfranco Pasquino descreve como o governo italiano deveria funcionar segundo o quadro normativo em vigor e como de facto funciona, avaliando as razões pelas quais os mecanismos adequados não produzem as práticas desejadas. Finalmente, Marina Costa Lobo analisa as dinâmicas e implicações do processo que, no semi-presidencialismo português, levaram ao destacado protagonismo do Primeiro-ministro. Estes diferentes estudos de caso podem se observar como articulados em torno de um guião implícito, mencionado mas não detalhado pelo organizador do livro, composto das seguintes quatro proposições.

Primeira proposição: enquanto os chefes de governo de regimes presidencialistas (P) contam com os instrumentos institucionais suficientes para governar de modo unilateral (que incluem faculdades sobre a nomeação de ministros e a estrutura do gabinete, iniciativa legislativa, poderes de veto e poderes de decreto), os chefes de governo parlamentaristas e semi-presidencialistas (PM) encontram-se formalmente limitados para tais desempenhos (basicamente, pelos voto de confiança e de censura do parlamento, e pelas faculdades de nomeação dos ministros, de dissolução do governo e de fiscalização constitucional do presidente). Se bem que existem variações e uma certa inclinação para sobrevalorizar o caso próprio, o que sobressai é que tanto os PM partilham similares níveis de restrição quanto os P apresentam graus elevados de discricionariedade. E, particularmente no segundo caso, a tendência regional tem promovido o fortalecimento desses atributos.

Segunda proposição: contudo, existem significativas instâncias moderadoras tanto das potenciais inclinações unilaterais dos regimes presidencialistas como do poder de acção restringido dos regimes semi-presidencialistas. Primeiro, encontram-se os mecanismos institucionais. As análises dos casos latino-americanos referem-no, seja quanto a atributos democráticos básicos (tais como os que desde 1977 possibilitam progressivamente a presença da oposição no congresso e a alternância política no México), seja quanto a decisões de engenharia constitucional mais pontuais (tais como o controlo do ministro chefe de gabinete por parte do congresso argentino com moção de censura incluída ou a provisão de mecanismos de domínio do processo legislativo para os líderes partidários na câmara de deputados brasileira). Tal como os atributos presidenciais, os atributos que reforçam o papel dos congressos latino-americanos têm evidenciado um progressivo fortalecimento nas últimas décadas. Os casos europeus, por seu lado, indicam a presença de diversas atribuições dos regimes semi-presidencialistas com potencialidade moderadora das restrições externas, tais como poderes de decreto-lei e decreto-legislativo, faculdades para a organização e funcionamento do gabinete, controlo da administração pública, instrumentos regulamentários vários para se posicionar como legislador dominante e, no caso espanhol, faculdade de dissolução das câmaras. Segundo, encontram-se instâncias moderadoras que derivam da dinâmica do próprio jogo político. As análises dos casos latino-americanos sugerem que governar unilateralmente tem um custo e pode ser menos sustentável no tempo, sendo mais bem-sucedidas as estratégias presidenciais que incluem a procura e permanente negociação do apoio de diferentes actores políticos. Isso acontece principalmente quanto ao suporte (legislativo) dos partidos políticos, mas também dos governadores nos sistemas federais e dos eleitores nos casos uruguaio e mexicano. Numa direção similar, evidências europeias indicam um uso extremadamente reduzido de mecanismos efectivamente punitivos dos governos. A moção de censura espanhola nunca foi utilizada com sucesso em mais de 32 anos de vida democrática, nenhum dos instáveis governos italianos tinha caído pela aprovação de um voto de censura explícito até 1998, e situação similar verifica-se para o caso português. Ainda, as intervenções verdadeiramente significativas do presidente da república e de outros actores limitam-se a situações pontuais, em contextos de excepcionalidade, enquanto as constrições do Parlamento começam a ser significativas logo que o governo, por diferentes razões de política ordinária, perde a sua confiança legislativa.

Terceira proposição: existem diferentes estratégias de governo para lidar com as instâncias moderadores e a procura dos suportes de governabilidade, tanto no início como durante o exercício do mandato. Os estudos sobre os regimes presidencialistas indagam melhor este aspecto. No início do mandato, a modalidade mais referida é a conhecida distribuição de pastas ministeriais, observada mais claramente nos «governos de coalizão». Todavia, as possíveis alternativas não passam tanto pela opção dicotômica entre gabinetes de um ou de mais do que um partido (que se manifesta mais como um atributo sistêmico), mas pelas possíveis variantes dentro de cada um destes tipos de gabinetes. Neste sentido vai a identificação dos dois ‘padrões de governabilidade’ brasileiros, nomeadamente os «governos de coalizão», com ou sem controlo da agenda, cujas respectivas configurações dependem não só do número de partidos no gabinete (que desta perspectiva quase sempre se qualificam como maioritários) mas também da sua proporcionalidade (nível de ‘coalescência’). O estudo sobre o caso chileno introduz duas contribuições para a compreensão desta estratégia da distribuição de pastas. Por um lado, a amplitude da sua funcionalidade, que não fica limitada à procura de suporte legislativo mas também aos efeitos para a consolidação democrática e para a legitimidade pública. Por outro lado, os seus limites, que aparecem quando os cidadãos começam a perceber esta prática como uma questão de quotas fechadas entre partidos. O regime uruguaio apresenta o caso mais contra-intuitivo neste sentido, pois tem produzido «governos de coalizão» com um sistema bipartidário. Se é certo que se trata de uma combinação presente em outras democracias latino-americanas, a novidade, apresentada como razão para o seu êxito, passa por um certo respeito da proporcionalidade (derivada dos resultados eleitorais) e pela sua extensão (que excede o gabinete para chegar aos restantes âmbitos estatais). Durante o mandato, o exercício do governo efectuae através de duas estratégias: a) a manutenção ou o aumento dos suportes de governabilidade, em particular o legislativo, ou b) a implementação de medidas unilaterais. O mecanismo mais habitual na primeira é a distribuição de recursos fiscais, que pode adoptar a forma de clientelismo (mas não necessariamente), e que se destina á obtenção de apoios tanto dentro como fora do congresso. Interessantemente, a alternativa unilateralista verifica-se mais frequentemente nas situações em que o presidente não tem o necessário suporte de governabilidade, seja porque não o conseguiu obter inicialmente, seja por deficiências na sua gestão. Oferecem evidências neste sentido os usos das faculdades de veto e decreto e a distribuição fiscal nos casos argentino e brasileiro que, no segundo, se complementam com a criação de agências executivas paralelas às pastas ministeriais. A análise da experiência chilena oferece uma avaliação e sugestiva do uso destas agências e das redes informais.

Em termos gerais, as análises do presidencialismo mostram que ambas as estratégias tendem a ser alternativas (a maior controlo dos suportes de governabilidade menor uso dos mecanismos unilaterais). Adicionalmente, se bem que não sempre de forma explícita, parece haver acordo quanto ao facto de a primeira estratégia ser mais efectiva e, até, mais desejável. Por seu lado, condicionados por seus regimes, a estratégia primária dos governos europeus passa pelo controlo da maioria legislativa, ficando as modalidades unidireccionais condicionadas por esta. Como grande parte dos sistemas parlamentaristas, a preocupação principal dos constituintes espanhóis ou dos primeiros reformadores portugueses foi a de garantir a estabilidade institucional através de governos fortes que, com controlo de maiorias legislativas, evitassem demissões antecipadas. O objectivo alcançou-se de modo contundente, mas com o elevado custo da debilitação do parlamento nas suas diferentes funções e, particularmente no caso espanhol, do distanciamento dos cidadãos. Em Itália, o caminho foi diferente. Afectada pelo ‘complexo do tirano’ pós-fascista, em Itália procurou-se evitar governos excessivamente fortes, o que, paradoxalmente, derivou na ditadura dos partidos políticos sobre todo o processo decisório.

E a modo de síntese, quarta proposição: os arranjos institucionais importam, mas de um modo complexo. Os autores oferecem três contribuições neste sentido. Primeiro, a maioria dos casos traz-nos evidências sobre a relevância que têm os mecanismos institucionais na configuração e na transformação das dinâmicas concretas que assume o jogo político. São exemplo disto os impactos das modificações introduzidas pela constituição brasileira de 1988, pelas reformas constitucionais portuguesa de 1982, uruguaia de 1996 e as várias mexicanas posteriores a 1977, ou ainda pela reforma eleitoral italiana de 1994.

Segundo, o sentido desta relevância pode ser ambivalente, apresentado variações geográficas e temporais. Assim, a esperada estabilidade governativa e a competência bipolar da Itália é fortemente questionada por Espanha e Portugal, por ter resultado num parlamento debilitado. A distribuição partidária de pastas do governo chileno, vista antes como promotora da legitimação pública, hoje é observada como repartição partidocrática. A historicamente bem-sucedida co-participação uruguaia é entendida no México como uma ocupação indevida do âmbito estatal.

Terceiro, corrobora-se a ideia de que os alcances dos arranjos institucionais dependem dos usos que deles façam os diferentes actores políticos. Neste sentido vão os dilemas que surgem, no caso mexicano, da combinação da utilização cidadã positiva dos novos mecanismos institucionais com a resistência à mudança da sua classe política, ou ainda a consideração de que as deficiências do parlamentarismo italiano não se explicariam pelo seu desenho constitucional (que até seria o apropriado), mas pela qualidade da sua classe política e dos próprios eleitores.

 

Elementos para uma Agenda Futura

O livro assume-se como um trabalho exploratório. Assim sendo, uma agenda de investigação que permitisse avançar para uma abordagem teórica mais articulada e abrangente poderia incluir os seguintes elementos.

Primeiro, a elaboração de um modelo analítico comum, do qual se derivem hipóteses a ser avaliadas nos diferentes casos de estudo. Um tal modelo deveria incluir a caracterização sistemática da estrutura e de funcionamento do órgão executivo (a caixa preta a ser revelada) e uma identificação e discussão das causas e/ou consequências das variações nos seus desempenhos.

Segundo, o desenho de uma tipologia compreensiva e realista das formas de governo. Por um lado, devem resolver-se as divergências de critérios para identificar os próprios tipos (são dois ou três? ou mais?). Por outro lado, as definições não deveriam restringir-se ao nível formal (que poderiam levar a que a Argentina qualificada de semi-presidencialista e os Estados Unidos de não-presidencialista) e gerir com cautela as situações excepcionais (pelas quais várias democracias latino-americanas arriscariam ser consideradas de parlamentaristas, e a Itália de semi-presidencialista).

Terceiro, a inclusão do papel da liderança como uma das dimensões de análise relevantes. Em termos gerais, a literatura apresenta um desfasamento em relação à evidência empírica de casos onde a configuração e o uso dos arranjos institucionais aparecem significativamente condicionados pelo desempenho de personalidades fortes. Quarto, o incremento da heterogeneidade dos casos de estudo selecionados. Com vista a uma maior generalização das teses teóricas propostas, uma futura agenda não deveria excluir os grandes casos de referência (os Estados Unidos para o caso do presidencialismo, por exemplo) e aspirar à inclusão progressiva tanto das democracias de regiões ‘distantes’ quanto de outras como a Bolívia, o Equador ou a Venezuela que, fugindo aos padrões institucionais tradicionais, apresentam níveis de sucesso, pelo menos em termos de inovação institucional, estabilidade governamental e legitimidade eleitoral.

 

Notas

1A pedido do autor o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.