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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.42 Lisboa jun. 2014

 

RECENSÃO

A Guerra que começou em Agosto e ia acabar no Natal1

Manuela Franco*2

 

*Diretora do Instituto Diplomático. Diplomata. Investigadora do IPRI-UNL. Foi secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação do XV Governo Constitucional.

 

Cem anos depois da Guerra de 1914, com tantas outras guerras, tantos outros países feitos e desfeitos, e tantos mais milhares de milhões de caídos, desaparecidos e mutilados, é impressionante o afã e zelo com que se continua a escrever sobre o facto do incidente – hoje considerado de importância menor – do assassinato do herdeiro do trono imperial da Áustria-Hungria por um revolucionário sérvio ter resultado numa guerra mundial de tão graves e profundas consequências. Como pôde soçobrar com tanta facilidade uma ordem, politicamente estável desde 1815, em crescente prosperidade, alfabetização e melhoria de condições de vida? Porventura a estabilidade cria instabilidade?

É um facto que, fechado o ciclo da Guerra Fria e de seis décadas de paz na Europa ocidental, novas e graves ameaças se desenham no futuro da região euro-asiática. Toda a clássica fronteira oriental, do Mar do Báltico ao Mar Negro, do Mediterrâneo Oriental ao Golfo Pérsico sofre uma forte onda de contestação geopolítica cujos resultados não podemos antecipar. Assim ganham novo interesse os trabalhos que estudam e analisam o comportamento dos actores que, milenar e principalmente, governam tão vastos territórios. Pode também dizer-se que nesse, já longínquo, princípio do século XX, os «jovens» anarquistas e socialistas revolucionários, embebidos em leituras de Nietzsche e Bakunin, movidos pelo objectivo comum de romper com a ordem estabelecida, pululavam por toda a Europa e América, atirando bombas para dentro das Bolsas e comboios e assassinando a tiro ou à facada figuras de proa e governo desde a Imperatriz Sissi ao presidente dos Estados Unidos3.

Pode ainda dizer-se que em 1914, o assassinato de um herdeiro de um trono imperial não era coisa menor. Pelo contrário, tocava fundo na luta pela melhor forma de governo que então corria, a terrível oposição entre o «antigo regime» de monarca por direito divino e os governos saídos da «soberania popular», a libertação dos «povos sujeitos» pelo exercício do supremo direito político á autodeterminação. Que tais territórios deixassem de ser «herança dinástica», negociável, e que as populações passassem a deter autoridade sobre fronteiras rigidamente soberanas, eram factores que convergiam numa dimensão de combate político brutal, em boa parte responsável pela radicalidade das posições em confronto e pela dificuldade de «pazes de compromisso».

Certo é que a Áustria apontou as culpas à Sérvia, e lhe declarou guerra. Em apoio à Sérvia, a Rússia, sua patrona, mobilizou o exército. A Alemanha, aliada da Áustria, considerou essa mobilização uma ameaça inaceitável e declarou guerra à Rússia e à sua aliada França. O plano Schlieffen obrigava o exército alemão mobilizado a iniciar marcha para França, via Bélgica, cuja invasão desta juntou o Reino Unido à guerra contra a Alemanha. Escassas semanas depois do assassinato, todas as grandes potências europeias estavam em guerra. E, com elas, todo o mundo onde a respectiva bandeira determinava fronteiras e povos coloniais. Em breve se lhes juntaria o Império Otomano, também ele em defesa da sua periclitante integridade.

Todos acreditavam que seria assunto para umas belas marchas e umas grandes batalhas, rapidamente resolvidas. De regresso no Natal.

 

«... The Terrible ‘Ifs’ Accumulate...»4

Porém, uma vez empenhados, os povos da Europa não revelaram urgência em retirar. O bloqueio que se impôs em 1916 na frente ocidental poderia ter produzido uma paz de compromisso. Mas poucos favoreciam tal solução. Porque haviam os alemães, com batalhas ganhas por todo o lado, abandonar um centímetro do solo que tanto lhes havia custado a conquistar? Para ceder a um adversário que em breve, contra si, o usaria noutra guerra, decerto pior? Como podiam os franceses contemplar celebrar paz com o invasor ainda a ocupar muito do seu território? E os britânicos, aquiescer num compromisso que deixasse a Bélgica em mãos alemãs?

Os austríacos lutavam pela preservação do seu império histórico, multinacional, corporizando na velho adversário russo todos os impulsos de autonomia dos «eslavos do sul». Os russos lutavam pela conservação do estatuto de potência, pela capacidade de proteger os povos eslavos (mesmo quando estes não pediam), para conter a Alemanha, para cumprir as obrigações da aliança com a França. Os franceses, apostados em recuperar a Alsácia-Lorena, batiam-se contra o avanço do inimigo tradicional. Aos britânicos, confrontados com a maior ameaça continental desde 1815, importava defender as regras do direito das nações, trampolinadas com a violação do estatuto de neutralidade da Bélgica, país que – recorde-se – era filho da sua precaução estratégica com o continente, após a debacle napoleónica. Os alemães lutavam pela causa austríaca, pretendiam rechaçar a ameaça eslava a oriente e bater os rivais que, a ocidente, invejosos e hipócritas, obstavam consistentemente à sua afirmação como potência mundial.

Os diplomatas podiam tentar ansiosamente evitar uma guerra, no que estavam decerto acompanhados por muitos homens de negócios. Dir-se-ia hoje que a gestão política não esteve à altura. Isto se quisermos acreditar que todos queriam a paz. Muitos eram os que reclamavam, impacientemente, a guerra imediata.

 

Kriegsschuldfrage à la Russe

Com este livrinho agitado, McMeekin vem juntar-se a um grupo crescente de historiadores e investigadores que procuram um lugar ao sol nas fileiras da veneranda questão da «culpa da guerra». Trata-se de redistribuir culpas, aqui e no concreto, tirando da Alemanha e da Turquia para dar a Rússia.

Do seu ponto de observação no Bósforo, McMeekin professor da Koç University em Istambul, já se debruçou, com interesse, sobre a construção do Caminho de Ferro Berlim Bagdade (The Berlin-Baghdad Express, The Ottoman Empire and Germany’s Bid for World Power 1898-1918) em que desenterra a história do famoso Drang Nach Osten da Alemanha desde o final do século XIX, e da montagem da Parceria Público Privada que construiu parcela significativa da rede ferroviária otomana, e cujas peripécias duraram até as vésperas da Grande Guerra. Mais recentemente, McMeekin escreveu, sob título July 1914, uma investigação sobre os actores e os acontecimentos dos trinta e sete dias entre o assassinato do herdeiro do trono austríaco e o início da Grande Guerra, onde já introduz algum correctivo à sua versão das culpas: entre acções, omissões, e erros diplomáticos crassos, não se recorta um culpado «limpo». Resumindo: a Alemanha teve mais responsabilidade no início, fosse por dar o «cheque em branco» a uma Áustria vingativa, fosse pela loucura da invasão da Bélgica. Mas: a própria Alemanha foi acicatada pelos austríacos, cuja inflexibilidade e atrapalhação levaram longe demais o acerto de contas com a Sérvia; e pela Rússia e França, cujas pré mobilizações pareciam confirmar aos alemães o cenário pesadélico de um ataque iminente em duas frentes.

Com as Origens Russas da Primeira Guerra Mundial, um trabalho anterior e que aqui se analisa, Sam McMeekin dedicou-se a trazer ao palco o papel da Rússia no deflagrar, no batalhar e no concluir da Grande Guerra. Apoiado em documentação russa, turca, alemã, austríaca e britânica, incluindo os Arquivos da Política Externa Imperial Russa (AVPRI) e o Arquivo da História Militar do Estado Russo (RGVIA), o autor pretende convocar interesse numa reinterpretação da participação russa na Grande Guerra. Argumenta, bem, que sem referência política russa, é impossível tratar os últimos cem anos de história nas terras do ex-império otomano – quando este se alargava da Trácia e do Mar Egeu ao Mar Negro, à Anatólia, Arménia turca, Cáucaso, Pérsia, Mesopotâmia e Síria. Sustenta aliás que mesmo a cronologia-base da Grande Guerra só pode ser bem compreendida se atenderaos objectivos de guerra da Rússia imperial. Desde o incidente de Sarajevo que provocou a crise, ao drama da mobilização que marcou o rebentar da guerra, os problemas do plano de guerra alemão, o bloqueio na frente ocidental, a tragédia de Gallipoli, os massacres arménios de 1915, o acordo Sykes-Picot, a partilha da Turquia asiática, a revolução de 1917, todos eventos notáveis, todos intimamente relacionados com a política externa da Rússia.

Capítulo a capítulo, o autor explora de entre estas, todas questões que podem apoiar o seu ponto de vista, deixando cair, por vezes com ligeireza o que porventura exceda o número de páginas que terá alocado. Em apoio desta severidade, veja-se o capítulo introdutório onde tropeçamos em frases como «nada de importância estratégica duradoura estava em jogo» na frente da Flandres ou a afirmação que a Rússia nada tinha a recear das forças alemãs na frente oriental, ou ainda que a sua colossal derrota em Tannenberg foi «acidental». Numa das suas afirmações mais fúteis, McMeekin adianta que esta Guerra se poderia chamar «Guerra da Sucessão Otomana», na medida em que a dissolução do Império otomano foi um dos resultados! Mas como também foi determinante para a dissolução do Império austro-húngaro e do próprio Império russo, ficamos ligeiramente em dúvida sobre qual a guerra que o autor tem em mente.

O primeiro grande argumento incriminatório da Rússia Imperial é o de ter avançado para mobilização de forma dissimulada, provocando a resposta da Alemanha e daí a guerra. Com um entusiasmo que se compreende causado por interessantes fontes primárias, McMeekin alinha a questão dos cronogramas de mobilização, estabelecendo a precedência da mobilização russa, questão interessante mas rarefeita e com as características do vernacular «antes de ser já o era».

É sabido que as lições de 1870 estavam gravadas na cabeça de cada oficial de estado maior europeu: perder a corrida na mobilização era meio caminho para perder a guerra. Há 40 anos que as potências europeias vinham devotamente fortificando as suas máquinas militares. A campanha italiana na Tripolitânia tinha sido uma limpeza; as Guerras Balcânicas de 1912 e 1913, guerras relâmpago, ofensivas, com resultados imediatos. Em 1914, a teoria militar ensinava que a guerra futura seria curta,decidida por batalhas ofensivas iniciais, travadas pelos exércitos de recrutas concentrados, em massa, nas fronteiras. O objectivo de toda esta mobilização e concentração era chegar ao campo de batalha com um máximo de força, pois era com força que se ganhavam as batalhas. Milhões de homens tinham de ser chamados, organizados em unidades de combate, equipados com um vasto aparelho de armas e serviços de apoio, enviados por comboio para os respectivos pontos de concentração, tudo num par de dias. Quando cada barco, cada comboio tinham, há anos, sido designados – como tinham de ser – para transporte de tropas que teriam de chegar a horas e em boas condições à frente de combate, em nenhum país era possível alterar os requisitos militares ao sabor das contingências políticas. Prevalecia assim, de facto, um entendimento que a mobilização significava a guerra… mas, na verdade, também houvera mobilizações parciais nas recentes guerras balcânicas, das quais tinha sido possível retroceder.

Nas suas «incursões» nas origens da Primeira Guerra Mundial, AJP Taylor sublinhou bem que só na Alemanha é que a mobilização inevitavelmente significava a guerra: os planos envolviam não só a concentração mas também a marcha para o território dos vizinhos. Para o governo austríaco, uma declaração de guerra era uma manobra política, para o governo russo uma ordem de mobilização era uma contra-manobra; mas tais ordens punham em marcha processos administrativos que não podiam ser nem interrompidos nem revertidos sem causar um caos que iria colocar a nação a mercê dos seus adversários.

Por outro lado, Taylor concluiu que, apesar de todas as grandes potências desejarem aumentar seu próprio poder relativo, nenhuma procurou conscientemente a guerra antes de 1914. Ao invés: todas as grandes potências acreditavam que se possuíssem a capacidade de mobilizar as suas forças armadas mais rápido do que qualquer um dos potenciais adversários, tal seria elemento de dissuasão suficiente para evitar a guerra e permitir alcançar os respectivos objectivos de política externa. Assim, os estados-maiores das grandes potências desenvolveram cronogramas elaborados para mobilizar mais rápido do que qualquer um de seus rivais. Quando a crise começou em 1914, embora nenhum dos estadistas da Europa quisesse uma guerra mundial, a necessidade de mobilizar mais rápido do que potenciais rivais criou um movimento inexorável rumo à guerra. Foi assim, que os líderes de 1914 se tornaram prisioneiros da lógica dos calendários de mobilização e estes calendários que foram feitos para servir como elemento dissuasor trouxeram, implacavelmente, a guerra. O estado maior russo mantinha que a mobilização era equivalente a guerra. A mobilização geral era por conseguinte uma acção belicosa dirigida às Potências Centrais.

McMeekin produz peças de arquivo interessantes mas não chega a traduzir ao leitor por que forma os russos se podiam autonomizar do colectivo europeu: o tempo era precioso e a liderança russa não tinha qualquer razão para adiar o inevitável, tanto mais quanto era sabido que na linha da partida estava em séria desvantagem vis-a-vis os seus adversários: maior território, piores linhas de comunicação interna. As preparações da Áustria quanto à Sérvia eram evidentes. Os russos estavam agudamente cientes das fraquezas das suas forças de combate. Os planos estavam incompletos e mal preparados. Não havia uma estratégia coordenada para a tal herança otomana. Como boa parte dos seus pares, a maior parte dos líderes russos acreditava que a guerra ia ser curta. Depois se veria.

O segundo argumento incriminatório versa os objectivos políticos e os acontecimentos militares no teatro oriental. McMeekin argumenta que as circunstâncias reunidas em 1914 vieram dar asas a antigos sonhos russos de derrubar e expulsar os turcos de Constantinopla, assegurar a preponderância no Mar Negro e alargar os seus domínios a Anatólia oriental, Pérsia e Azerbaijão.Aventa que a Rússia teria por objectivo de guerra não tanto os Balcãs como todo o conjunto do Próximo Oriente, «uma guerra… que toda a gente queria». Aos sonhos imemoriais de conquistar Constantinopla, a que sempre se refere pelo nome czarista de Tsargrad McMeekin considera também que o interesse pelos Estreitos dos Dardanelos estavam agora inflacionados pelas rivalidades dos novos e ascendentes estados balcânicos e a ameaça de um renovado poderio naval turco…

O autor assinala, bem, que há mais de um século que a Rússia procurava expandir para sul, à custa dos turcos. Os russos travaram guerras contra territórios otomanos em 1811-1812, 1828-1829, 1853-1856 e 1877-1878, resultando na aquisição de maior parte da costa do Mar Negro e grande parte do Cáucaso. McMeekin porém relega para plano muito secundário factores relevantes em todo este contexto complicado do pan-eslavismo e pan-germanismo, traços que caracterizavam o pensamento dominante e constrangiam consideravelmente a acção dos decisores, fossem reis, políticos, militares ou diplomatas. O autor nunca entra realmente nos assuntos balcânicos. Antes revela uma enorme distância, falando em «bagatelas balcânicas» (p. 101). Ao avaliar as razões de entrada da Rússia na guerra, não valora, por exemplo, o impacto da crise de anexação da Bósnia Herzegovina pela Áustria em 1908, quando a Rússia teve de se dobrar às ameaças da Áustria e Alemanha, dali tirando a convicção profunda de que, como protector universal da gente eslava, não poderia sustentar nem mais uma semelhante humilhação. Em Moscovo, um tal impacto em sede de política interna era visto como incalculável e «acção no local» era decerto preferível à vergonha da passividade.

Apesar de muitos aspectos positivos, como industrialização, medidas de transformação interna e esforço de modernização das forças armadas, na sua imensidão, autocracia e atraso secular, a Rússia era uma potência com pés de barro. A vitória contra Napoleão tinha deixado o país de rastos; e a segunda metade século XIX não lhe tinha corrido especialmente bem. A destruição total da frota otomana por ocasião da Guerra da Crimeia motivara a aliança europeia que levou à derrota da Rússia e lhe vedou o acesso ao Mar Negro; e as vitórias estrondosas que obtivera na Guerra Russo-Turca de 1877 foram-lhe violentamente sonegadas no Congresso de Berlim, tanto na frente oriental como na frente balcânica; em 1904, fora derrotada na guerra com o Japão; em 1905 tivera uma primeira revolução; em 1909, tivera de obrigar a Servia a «engolir» a anexação austríaca da Bósnia-Herzegovina; e apesar dos sucessos da Liga Balcânica contra a Turquia, em 1913, tivera que se encolher seriamente no apoio às reivindicações sérvias de acesso ao Mar Adriático. Para cúmulo, no início de 1914, assistira, impotente e desesperada, à chegada a Constantinopla do general alemão Liman von Sanders, que vinha treinar e assumir funções no exército otomano.

Não admira pois a apreensão com que o Czar e os seus ministros – bem apoiados no seu ultra competente serviço de espionagem em terras otomanas – seguiam o que lhes parecia tornar-se cada dia uma mais preponderante posição alemã junto da Sublime Porta.

A entrada da Turquia na guerra teve um impacto considerável nos russos, e um dos mais interessantes capítulos de McMeekin versa os pormenores da entrada dos Otomanos na guerra ao lado das Potências Centrais. A matéria não é nova, mas a forma desenvolta com que o episódio é relatado vale a leitura.

Uma das consequências do Tratado de Berlim era a Rússia estar proibida de fazer passar vasos de guerra pelos Estreitos. Tinha que os construir in situ, e a data mais breve em que os seus estariam construídos seria 1915. Ora, em Janeiro de 1914 a Turquia aguardava entrega iminente de 5 vasos de guerra, 3 couraçados em construção em Inglaterra e 2 nos Estados Unidos, para além de outros barcos, menores, mas também de guerra, encomendados a Itália e a França. Estava assim perspectivada uma superioridade naval turca a muito curto prazo.

Oficialmente, o Império Otomano era neutro. A 2 de Agosto de 1914 assinou um acordo secreto com os alemães, mediante o qual iria receber algumas compensações territoriais, mas sobretudo alcançar o grande objectivo de acabar com o regime das capitulações. Na semana seguinte, dois vasos de guerra alemães, o Breslau e o Goeben, entraram no Bósforo contrariando as leis da neutralidade. Os turcos inventaram então a solução engenhosa de «comprar» os barcos aos alemães, mudando o pavilhão e eliminando a questão da violação da neutralidade. O passo seguinte foi a 29 de Outubro de 1914, quando, sob comando alemão, os ditos couraçados avançaram para o Mar Negro e deram cabo da marinha de guerra russa. Com o panache deste pequeno ajuste pela destruição da sua frota na Guerra da Crimeia, os otomanos juntavam-se oficialmente à Grande Guerra. A partir de 1915, novas dinâmicas se geraram. McMeekin leva a sua história às frentes leste e sudeste, procurando aprofundar nomeadamente a frente caucasiana. Algumas das partes mais atrevidas referem-se ao incitamento do governo russo a que os seus aliados tratassem dos aspectos da guerra que mais lhes convinham, em Gallipoli, na Transcaucásia ena campanha da Pérsia. No seu Capítulo VI entra com pormenores interessantes na chamada campanha da Transcaucásia, uma frente dura e difícil, assegurada com bastante glória pelos russos.McMeekin apoia-se em documentação russa para mostrar como os jogos de guerra russos planeavam que gregos, arménios e outros cristãos se voltassem contra o governo turco, dentro de linhas, queimando habitações muçulmanas e destruindo pontes e outras vias de comunicação. É aqui que o autor traz elementos sobre os arménios capazes de inflamar os difíceis debates que esta questão sempre gera. Deixa entender que a administração russa recorreu a cumplicidade religiosa para convencer elementos da população arménia a receber armas e preparar movimentos de insurreição em território otomano. McMeekin não recua em explorar as ilusões infundidas pelos russos ao prospectivo movimento insurreccionista arménio, ligando o seu drama claramente a uma traição russa e consequente retaliação turca. No fundo dá apoio ao argumento turco de que houve excessos mas se tratou de uma questão de guerra.

 

«Russian Diplomatic Bullying»

Tomar controle dos estreitos, impor a autoridade russa na Trácia e em Adrianopla: McMeekin atribui à diplomacia russa uma colossal capacidade de manipular britânicos e franceses, os quais – passivos e em detrimento próprio – aparecem a prosseguir os objectivos prioritários definidos pela Rússia para se alcandorar a potência principal. Nesta versão, a manipulação russa era tão competente que a sua candidatura a Constantinopla obteve a anuência de Lord Grey, do Rei Jorge V e de Churchill, que disseram imediatamente que sim ao Czar, sem pensar sequer em reclamar coisa nenhuma para Inglaterra. Nada mais nada menos.

A manipulação russa é apresentada como instigadora do envolvimento em Gallipoli. No entanto, existe ampla documentação diplomática inglesa mostrando que a ideia de uma segunda frente contra as Potências Centrais, a abrir numa região austríaca ou otomana, foi ponderada desde o início como forma de quebrar o bloqueio na frente ocidental, sendo resistida pelo SE Guerra Kitchener, no final de 1914, apenas por não dispor de recursos para montar a operação5. Na altura, pensavam poder contornar e furtar-se a um ataque frontal na frente francesa, usando o poder naval para entrarem no Mar Negro pelo Mediterrâneo e abrir uma frente de enfraquecimento do lado alemão. Foi no princípio de Janeiro de 1915, quando os russos, sob pressão no Cáucaso, pediram apoio dos Aliados para uma diversão contra os exércitos otomanos, que se firmou a decisão de lançar a Campanha de Gallipoli. Os britânicos acharam-se capazes de forçar os Dardanelos, desembarcar em Constantinopla, tirar os turcos da guerra e ajudar os russos. Uma ideia magnífica. O desastre aconteceu... os aliados australianos e neo-zelandeses sofreram o principal embate. E Churchill teve de se retirar do jogo.

Antes de malograda, Gallipoli foi a ocasião em que se formalizou o pedido do Czar de, no caso de vitória aliada, Constantinopla ser anexada pela Rússia. Aliás a concordância inglesa a que a questão de Constantinopla e dos Estreitos fosse resolvida em consonância com as «necessidades russas» fora adiantada na ocasião da entrada dos turcos na guerra, em Outubro de 1914, na altura motivada pelas divisões no governo russo onde havia que acomodar uma corrente pro-alemã. «Russian diplomatic bullying» é a referência às manobras do MNE Sazonov invocar estas pressões políticas internas que favoreciama transferência da Rússia para o campo alemão, para «arrancar» a ingleses e franceses a «cedência» de Constantinopla.

Sobre isto o presidente francês Poincaré escrevia, em Março de 1915, ao seu embaixador em Moscovo: «a atribuição de Constantinopla, da Trácia, dos Estreitos e das margens do Mar de Marmara à Rússia implica a partição do Império Otomano. Não temos nenhuma boa razão para desejar tal partição». E acrescentava que introduzir a Rússia no Mediterrâneo faria dela um grande poder naval, mudando todo o equilíbrio de poder europeu6. Teria de ser... «Mas, "dizia Grey" nem nós nem os franceses gostamos da coisa»7.

É difícil caracterizar o governo russo como especialmente oportunista, num tempo de deslocação social e política brutais... sobretudo se comparado com aliados ou adversários.

 

Os «Sonhos Imemoriais»

Desde a conquista da Alsácia-Lorena e da confirmação do Império em 1871 que a potência alemã podia e queria ser notada. Qualquer colectânea de documentos diplomáticos que se consulte revela pormenores de conversa em que algum líder ou diplomata europeu ouviu de um governante ou diplomata alemão frases «grosseiras» ou «imperiosas». As crises sucediam-se, em curva ascendente. Contando já só as do século XX: 1902, Guerra Anglo-Boer; 1904, a Guerra Russo Japonesa; 1905, 1906, 1911, 1º, 2º e 3º dramáticos incidentes germano-franceses sobre Marrocos; 1908, anexação pela Áustria da Bósnia-Herzegovina; 1912 e 1913, 1ª e 2ª guerra balcânica; ocupação de Scutari, iminência de guerra com a Sérvia, Áustria, Rússia; fim do Império Otomano na Europa, redefinição de sistema de alianças, novas fronteiras, novas tensões deixando toda a imprensa a anunciar a guerra iminente.

A Itália separava-se da Áustria-Hungria que permanecia ligada à Alemanha, dentro do laço que os unia como Potências Centrais, com a monarquia dual sobranceiramente descrita como «numero dois». A Inglaterra estabelecia uma aliança com o Japão, assinava com a Rússia um acordo de esferas de influência na Pérsia em 1907, e aproximava-se da Entente. Em contrapartida, a Rússia voltava-se de novo para o sudeste europeu, visto que ao procurar porto de águas quentes no Pacífico entrara em choque com o Japão, que lhe infligira uma derrota surpreendente fechando a possibilidade de expansão nesta região.

A França republicana e a Rússia czarista tinham uma relação mais estreita e de certa forma co-dependente, em parte dirigida contra a ameaça alemã e por outra parte, sustentada pelo importante investimento francês na industrialização russa. Os franceses eram porventura os mais vocais quanto ao perigo alemão. Já em 1911, quanto os alemães haviam provocado o famoso episódio do «Salto do Panthera» (um barco de guerra que fizeram entrar em Agadir) quase começara a «Guerra». Na altura, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Delcassé, dizia que não se podia nem sonhar em viver em paz duradoura com a Alemanha e que Paris, Londres e São Petersburgo tinham de se convencer de que a «guerra é, infelizmente! Inevitável»; e que importava preparar-se, sem perder um minuto. Sucessivamente, na primeira Guerra Balcânica, Poincaré, então presidente do Conselho, tinha assumido uma linha mais dura que o próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros Sazonov, a quem queria convencer a arrancar para a guerra. Era natural da Lorena e segundo as suas próprias palavras, vivia para recuperar as províncias perdidas para a Alemanha em Sedan. Uma vez eleito Presidente da República, na primavera de 1913, Poincaré foi um advogado incansável da renovação militar e da mobilização russa. Deslocou-se em visita a Moscovo nos dias de Julho que precederam a I Guerra Mundial e até hoje não se sabe bem qual foi o teor das conversas que teve com Nicolau II.

 

«Nous aimons mieux contribuer à la culture d’un grand jardin Ottoman que d’avoir à nous seuls un petit jardin en Syrie»8

A partição do império otomano era um destes sonhos imemoriais. Importa entender que se tratava de uma função da política europeia e que estava estreitamente associada às fronteira russa, austro-húngara e, conforme o poder otomano ia sendo expulso da Europa por força dos exércitos e do princípio das nacionalidades foram-se constituindo outras soberanias, com fronteiras geralmente problemáticas, como a grega, a búlgara, a romena, a sérvia. Daí a importância geopolítica da frente balcânica durante toda a Grande Guerra Estas autodeterminações foram-se afirmando durante o século XIX e após a Grande Guerra tornaram-se entidades politicas independentes ou autónomas. Desde então, quando falamos em sucessão do Império Otomano referimo-nos a «Turquia Asiática», à parte que corresponde às províncias que não foram incorporadas na constituição da República Turca de Ataturk e constituem hoje o moderno Médio Oriente e que vão até a fronteira do Irão, abarcando parte da antiga Transcaucásia, Kurdistão, Grande Síria, Arábia, Mesopotâmia.

Note-se que só em 1830, com a invasão da Síria, derrota e quase conquista de Constantinopla por parte do Pasha do Egipto, o albanês Mehmet Ali, é que a Inglaterra definiu uma política otomana. Fosse durante as guerras napoleónicas, fosse durante a guerra da independência grega, a política adoptada para o império otomano era ditada pela preocupação predominante com o equilíbrio de poder na Europa e com as exigências de manutenção desse equilíbrio. O destino otomano não era uma preocupação... e quiçá, apenas esquecendo a existência desse império e lembrando a questão austríaca se possa compreender a política britânica da época da independência grega. Aqui nasceu a política de «independência e integridade do império otomano», forma inglesa de dizer que os desígnios franceses e russos sobre Constantinopla não seriam tolerados. Tratava-se mais de obstar a que a partição aproveitasse a terceiros do que, sobre ela, exercer um desejo activo. Esta política foi definida nos idos de 1830 e manteve-se até 1914.

Todavia, evitar o colapso e partição do Império Otomano colocava enormes dificuldades, isto é, as próprias dificuldades dos otomanos se defenderem contra o enorme poder científico e industrial adquirido pela Europa desde a revolução industrial.

O Império Otomano tinha de permanecer inviolado, porém não se conseguia defender a si próprio. E foi assim que, sob o nome de «reforma», os elementos de emulação dos métodos europeus vieram subverter ainda mais a, já de si fraca, capacidade de funcionamento do IO. Agora, ou o IO soçobrava pela introdução de tantas politicas que contrariavam o seu próprio sistema ou se tornava um protectorado europeu. Não podia porém tornar-se protectorado de um único estado, pois as outras potências não o permitiriam. Assim ou as potências se guerreavam, ou negociavam pacificamente a divisão do «bolo»: dilemas que a Grã-Bretanha e a Europa cada vez mais teriam de encarar.

Por uma razão ou por outra as partições propostas desde a guerra da Crimeia, ora por russos ora por ingleses nunca chegaram a acontecer: se se pudesse fazer, como se faria? A que potências se atribuiriam que regiões? Não havia uma maneira boa... mas havia presunções, noções, expectativas que Se e Quando o IO fosse partilhado, certas regiões iriam para certas potências. Um bom índice destas ideias consta numa comunicação do embaixador britânico em Constantinopla a Lord Gray, em Junho de 1913: comentando as propostas turcas de nomeação de inspectores gerais europeus para as diversas províncias, dizia

«alinha de menor resistência e fricção seria que os funcionários estrangeiros para as províncias nordeste da Anatólia fossem russos; para a Mesopotâmia, britânicos; para a Síria, franceses; e para Adana e Ásia Menor ocidental, alemães ou outros».

Ainda em 1913, Lord Grey, Ministro dos Negócios Estrangeiros britânicos sustentava que

«a única política que podemos subscrever é a que visa evitar o colapso e partição da Turquia asiática... pois qualquer outra política poria em questão a posse de Constantinopla e muito provavelmente resultaria numa guerra europeia»9.

Todos estes esquemas deixavam de fora a questão de Constantinopla e dos Estreitos. Era uma questão crucial. A Rússia estava determinada a alcança-los e as outras potências determinadas a negar-lhos. Enquanto esta questão estivesse pendente, o Império Otomano tinha chances.

 

Sykes -Picot

Tanto a França como a Grã-Bretanha tinham de arranjar maneira de equilibrar o enorme aumento de poder que poderia advir a Rússia da ocupação de Constantinopla em caso de vitória aliada. Daí que esta decisão tivesse que levar a outras decisões.

Os franceses, de resto detentores de mais de 60 por cento da divida pública otomana, informaram logo de seguida os russos que o governo da república tencionava, oportunamente anexar a Síria. Em francês, «Síria» queria dizer a «Síria integral», das montanhas do Taurus ao Sinai e do Mediterrâneo ao deserto, incluindo o velayet da Palestina. Em Março de 1915 o Comité de l’Asie Française comentava

«Quant ‘a l’incorporation des colonies allemandes... un surcroît de savanes tropicales et de Nègres peut être désirable, on ne saurait en tout cas le mettre en ligne avec l’affirmation de nos titres héréditaires sur les pays des Croisades, sur les territoires d’Adana et d’Antioche, où l’action occidentale a été si française depuis le commencement du moyen âge que tous les Européens s’y appellent encore des Francs».10

Com a política para o oriente em ruínas, a Grã-Bretanha precisava fazer alguma coisa: ou tomava o seu quinhão ou resignava-se a perder posição. É a lógica da posição imperial. Inicialmente, em Novembro de 1915, os ingleses indicaram Bassorá, Golfo Pérsico, Mesopotâmia até Bagdade e Haifa. Logo depois surgiu a possibilidade de investir na revolta árabe contra os otomanos. Era mais um interesse para conciliar com os franceses pois seria na zona deles que iria cair o que Lord Gray via

«quando a Turquia desaparecer, deve haver – no interesses do Islão – uma unidade política muçulmana independente, centrada nos lugares santos islâmicos e que inclua a Arábia».11

Quanto ao segredo, Gray explica-se bem: primeiro, e antes que houvesse uma vitória sobre a Turquia no campo de guerra, seria muito negativo para todos admitir a partição. Logo, tudo devia permanecer secreto até a vitória aliada; também era preciso esconder que o Sherife de Meca estava a negociar com infiéis contra o seu legítimo Califa (...). E o importante estava plenamente explicado e escrito entre quem tinha que saber, i.e., os aliados.

Esta perspectiva ilumina uma questão que arcou todo o esforço de guerra aliado: o temor constante com a precariedade das alianças numa guerra «empatada» onde qualquer coisa era vista como podendo favorecer drasticamente o adversário. Daí o empenho posto em negociar um máximo de trâmites por forma a não dar azo a rupturas nem mudanças de campo. Assim se constituiu a equipa Sykes-Picot, cujos mapas, inicialmente pensados para evitar zangas dentro da Entente, assumiram uma fama desproporcionada graças às sensacionais revelações soviéticas dos acordos de guerra em 1917 e, mais tarde, por via do conflito da criação dos Mandatos da Liga das Nações, e das crises da sucessão otomana, vieram a ser constituídos em arma de arremesso anti-britânica e anti-francesa. Os soviéticos tiraram a Rússia da guerra. Em m Fevereiro de 1919, a trote, num cavalo branco, o General francês, Franchet d’Espèrey, entrou em Constantinopla e a cidade começou a ser efectivamente dividida. Só o contra ataque e a vitória de Ataturk é que asseguraram que a capital de impérios se mantinha sob a bandeira turca.

 

Notas

1A pedido da autora o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2A autora escreve estritamente a título pessoal.

3Macmillan, Margaret – «The Great War’s Ominous Echoes», New York Times, 13 de Dezembro de 2013        [ Links ]

4Winston Churchill, a propósito de Gallipoli, Churchill, Winston – The World Crisis, 2ª edição, Londres, 1938, pp. 208-209.         [ Links ]

5Kedourie, Elie – England and the Middle East, The Destruction of the Ottoman Empire, 1914-1921, Londres: Bowes& Bowes, 1956        [ Links ]

6Idem

7Idem

8«Comité de l’Asie Française, Jul-Dec. 1914», Andrew, C. M. e Kanya-Forstner, A. S.– «The French Colonial Party and French Colonial War Aims, 1914-1918», In The Historical Journal, Vol. 17, N.º 1, 1974, pp. 79-106.         [ Links ]

9Kedourie, Elie – England and the Middle East, The Destruction of the Ottoman Empire, 1914-1921         [ Links ]

10Andrew, C. M. e Kanya-Forstner, A. S.– «The French Colonial Party and French Colonial War Aims, 1914-1918».         [ Links ]

11Kedourie, Elie – England and the Middle East, The Destruction of the Ottoman Empire, 1914-1921        [ Links ]