SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número42Portugal e as Pequenas Potências na Grande Guerra de 1914-1918As origens da Grande Guerra e o estatuto de Grande Potência: o caso da Alemanha índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.42 Lisboa jun. 2014

 

CENTENÁRIO DA GRANDE GUERRA

A Grande Guerra e as relações internacionais de Portugal. Da Monarquia à República1

The Great War and the Portuguese International Relations: from the Monarchy to the Republic

David Castaño*

 

* Investigador no IPRI-UNL onde desenvolve um projecto de pós-doutoramento sobre processo de consolidação da democracia portuguesa (1976-1982). Doutor em História Contemporânea. Tem-se dedicado ao estudo da história contemporânea portuguesa e da história das relações internacionais, centrando-se no período do Estado Novo e da transição e consolidação democrática. A sua tese de mestrado, «Paternalismo e Cumplicidade: As relações luso-britânicas 1943-1949», recebeu em 2005 o Prémio Teixeira de Sampayo. Foi um dos coordenadores da publicação da obra Portugal e o Atlântico: 60 anos dos acordos dos Açores. Entre os seus últimos trabalhos destacam-se, em co-autoria com o General Garcia dos Santos, Apontamentos Políticos. Eanes e os partidos (Bertrand, 2013); Mário Soares e a Revolução (D. Quixote, 2013); e João Ninguém. Soldado da Grande Guerra, de capitão Menezes Ferreira (Bertrand, 2014).

 

RESUMO

Neste artigo procuramos recuperar algumas das ideias que ajudam a explicar a participação portuguesa na Grande Guerra e a opção do Partido Democrático pelo envolvimento do País na frente europeia. Um pleno entendimento da participação portuguesa na Grande Guerra exige não apenas um recuo temporal, mas uma visão abrangente entre dinâmicas internas e externas. Nas primeiras, importa ter em consideração o binómio monarquia/república, e também as profundas divergências que rapidamente dividiram o campo republicano. Nas segundas, há que ter em conta três vectores tradicionais da política externa portuguesa: a aliança inglesa, a dualidade peninsular e o império.

Palavras-chave: I Guerra Mundial, Portugal, Monarquia, República.

 

ABSTRACT

In this article we seek to recover some of the ideas that help to explain the Portuguese participation in the Great War and the option of the Democratic Party of sending troops to the European front. A full understanding of the Portuguese participation in the War requires not only a reference to its antecedents, but a comprehensive view of internal and external dynamics. In the domestic context we must take into consideration the monarchy/republic dichotomy and also the differences that quickly divided the Republican field. In the external context we must take into account three traditional vectors of Portuguese foreign policy: the Anglo-Portuguese alliance; the peninsular duality and the empire.

Keywords: World War I, Portugal, Monarchy, Republic.

 

Neste artigo procuramos fazer uma revisitação aos antecedentes e causas próximas que ajudam a explicar a participação portuguesa na Grande Guerra e a opção do Partido Democrático pelo envolvimento do País na frente europeia. Não se trata de uma investigação nova, baseada em fontes primárias, mas de uma leitura e interpretação alicerçada em alguns estudos dedicados a este tema.

Um pleno entendimento da participação portuguesa na Grande Guerra exige não apenas um recuo temporal, mas uma visão abrangente entre dinâmicas internas e externas. Nas primeiras, importa ter em consideração o binómio monarquia/república, e também as profundas divergências que rapidamente dividiram o campo republicano. Nas segundas, há que ter em conta três vectores tradicionais da política externa portuguesa: a aliança inglesa, a dualidade peninsular e o império.

O texto encontra-se dividido geográfica e cronologicamente. Assim, a primeira parte é dedicada à questão colonial. O colonialismo europeu no final do século XIX, a Conferência de Berlim e as ameaças aos territórios africanos portugueses, são um factor determinante na política interna portuguesa na transição para o século XX e ajudam a explicar o posicionamento de Portugal perante a guerra. No entanto, estava também em causa a dualidade peninsular. Sem uma referência à situação então vivida na Península Ibérica e ao impacto da mudança de regime em Portugal no país vizinho, dificilmente se pode compreender a evolução da política externa portuguesa nestes conturbados anos. É desse aspecto que trata a segunda parte do artigo. Finalmente, a terceira parte centra-se sobretudo nas dinâmicas internas, e é dedicada à opção e ao empenho dos democráticos no envio de uma força expedicionária para combater em solo europeu. É esta complexa teia entre política interna e política externa que procuraremos articular, recuperando os principais pontos analisados por diversos historiadores que se dedicaram a este tema.

 

África

No último quartel do século XIX, assistiu-se a um fenómeno de extensão da influência dos países europeus nos continentes africano e asiático. Curiosamente, este movimento surgiu depois dos europeus terem progressivamente deixado de possuir colónias no continente americano, região onde os Estados Unidos pretendiam assumir um papel preponderante de acordo com a célebre doutrina Monroe. Existem várias teses que procuram explicar este fenómeno: motivos económicos e financeiros, relacionados com a procura de matérias-primas e de mercados para a colocação de produtos manufacturados; motivos religiosos (rivalidade entre missionários católicos e protestantes); motivos demográficos; motivos estratégicos; psicológicos; políticos… Entre estes destacava-se o nacionalismo que se fez sentir na Europa de duas maneiras distintas. Por um lado como movimento unificador, no caso da Alemanha e da Itália, e, por outro, como movimento pulverizador que seria particularmente sentido no seio do Império Otomano.

Independentemente da perspectiva adoptada, a verdade é que se assistiu a uma corrida e a uma partilha de vastas zonas do globo que até essa data não estavam sob dominação efectiva de qualquer país europeu. Do Norte de África ao Extremo Oriente, as principais potências europeias lançaram-se numa corrida aos impérios que dividiu, muitas vezes a regra e esquadro, o globo.

No final do século XIX, entre colónias e protectorados, os britânicos controlavam cerca de um quarto da população mundial que vivia em todos os continentes. Por seu lado, os franceses tinham colónias no Norte de África, na Costa do Marfim e na Indochina. Os holandeses, além de pequenas possessões espalhadas pelo globo, detinham a Indonésia. E a Bélgica e a Alemanha tinham passado a deter territórios coloniais em África. Esta corrida, além de sacrificar zonas que até essa data não tinham sido alvo de ocupação formal ou de disputa de esferas de influência, colocou também grande pressão nos territórios coloniais portugueses, cada vez mais cobiçados pelos poderes europeus emergentes.

O crescente interesse pelo continente africano conduziu à realização da Conferência de Berlim (1884-1885), na qual ficou consagrado o princípio da ocupação efectiva em detrimento do princípio dos direitos históricos, colocando em causa os interesses portugueses no continente. Na sequência desta conferência, Portugal empenhou-se em garantir uma ocupação efectiva dos seus territórios e procurou assegurar que as restantes potências europeias não se oporiam à sua pretensão de unir Angola e Moçambique, criando assim um vasto território que atravessava o continente africano ligando a costa atlântica à costa do Índico. Curiosamente, a maior oposição à pretensão portuguesa viria não da França ou da Alemanha, interessadas em reforçar as suas posições no continente africano, mas da secular aliada que tinha interesses antagónicos (o projecto de união do Cabo ao Cairo, preconizado por Cecil Rhodes). Quando uma expedição militar portuguesa, liderada por Serpa Pinto, entrou em território disputado com os britânicos, o governo de Sua Majestade prontificou-se a exigir às autoridades portuguesas uma retirada. Era o célebre ultimato2. A nível interno, a posição inglesa foi fortemente atacada, criando-se um clima de patriotismo que viria mais tarde a ser aproveitado com sucesso pelos republicanos. Por outro lado, a luta entre regeneradores e progressistas inviabilizou o sonho da existência de uma ligação entre as duas colónias, a África Meridional portuguesa, já que, mesmo depois do ultimato, os ingleses garantiram a Portugal uma faixa de comunicação entre Angola e Moçambique, na qual se situava o cobiçado planalto de Manica. No entanto, rivalidades partidárias inviabilizaram esta solução, e o que viria a ser acordado com a Inglaterra, desta vez sem oposição, foi um tratado pior do que aquele que tinha sido considerado uma infâmia.

Também a nível externo as consequências deste episódio seriam profundas. É que, após o ultimato, o governo de Lisboa procurou o apoio da Alemanha e da França nas suas pretensões contra a Inglaterra. Acontece que a resposta não foi a esperada. Aproveitando os desentendimentos entre Lisboa e Londres, o kaiser alemão sugeriu que o seu país e a Inglaterra dividissem entre si o Império Português. Por seu lado, os franceses, temendo um entendimento entre estes dois, deixaram claro que a divisão teria de ser tripartida3. Contudo, esta era uma solução que não agradava os britânicos, pois, significaria entregar importantes territórios na África Austral a dois competidores. Perante este cenário, era preferível a manutenção desses territórios em mãos portuguesas. Foi esta posição que permitiu que nos anos seguintes, através de uma hábil política diplomática conduzida em grande parte pelo próprio rei D. Carlos, se tivesse verificado um desanuviamento da tensão e uma reaproximação à Inglaterra.

Acontece que as crónicas necessidades financeiras do Estado português voltaram a trazer para a ordem do dia o problema colonial, uma vez que, além de serem alvo de vários apetites externos, as colónias representavam no final do século XIX um peso no orçamento português, havendo quem defendesse como solução do problema a sua alienação4. A via encontrada pelo Governo português não era aparentemente tão drástica, mas comportava elevados riscos: em troca de um avultado empréstimo britânico, Portugal daria como garantia os rendimentos alfandegários das colónias. Esta solução não foi bem recebida por alemães e franceses que, vislumbrando um eventual incumprimento português (em 1892 Portugal tinha declarado uma bancarrota parcial), defendiam que o que estava realmente em causa era uma alteração do status quo em África. O Governo alemão sugeriu então que, em vez de um empréstimo britânico, se fizesse um empréstimo anglo-alemão, garantido igualmente pelos rendimentos das colónias. Em caso de resposta negativa por parte dos britânicos, os alemães ameaçavam celebrar um entendimento alargado com a França e a Rússia a fim de evitar o que entendiam ser uma manobra britânica para se apropriar das colónias portuguesas.

O espectro de uma aliança entre os três maiores poderes continentais obrigou a Inglaterra a recuar. No Verão de 1898, a Alemanha e a Inglaterra chegaram finalmente a um acordo: nenhum dos dois países faria um empréstimo a Portugal sem o envolvimento do outro; não seria admitido o envolvimento de terceiros; o eventual empréstimo seria garantido pelos rendimentos de Moçambique e Angola; caso Portugal viesse a pretender vender as colónias estas seriam repartidas entre as duas partes; e finalmente, ficava estipulada a divisão das respectivas esferas de influência.

Mais uma vez, esta era uma solução que não agradava à Inglaterra. No fundo estava a discutir a divisão de algo que de maneira informal já controlava. Por outro lado, uma das razões que a levou a celebrar este acordo com a Alemanha, relacionava-se com a pretensão, que obteve, de garantir a neutralidade alemã na guerra contra os bóeres. Por isso, uma vez celebrado o acordo, o Governo britânico informou o embaixador português em Londres sobre o seu conteúdo e deu a entender que Portugal deveria recusar o empréstimo conjunto. Além disso, a Inglaterra ajudou Portugal a encontrar uma solução alternativa que passava pela obtenção de um empréstimo em bancos privados franceses.

A fim de evitar problemas como os anteriores, o governo de Lisboa preparava-se para aceitar que este empréstimo tivesse como contrapartidas as receitas alfandegárias de Portugal continental e das ilhas atlânticas. Esta hipótese foi, no entanto, duramente criticada pela Inglaterra que exigiu uma garantia escrita do governo de Lisboa em como os Açores jamais passariam a ser controlados por terceiros. Era um importante sinal, demonstrativo da importância geo-estratégica que o arquipélago iria desenvolver nas décadas seguintes. Essa garantia foi dada e os britânicos confirmaram os seus compromissos com o seu velho aliado5. Durante mais de dez anos a sorte das colónias portuguesas não voltou a estar no topo das preocupações dos governantes portugueses. No entanto, essa situação alterou-se em 1912.

Em Março desse ano, a Inglaterra, preocupada com o ritmo de crescimento da frota alemã, procurou um entendimento com a Alemanha. A principal preocupação britânica era a manutenção da sua supremacia naval e existiam algumas contrapartidas que poderiam ser oferecidas caso a Alemanha estivesse disposta a desistir do seu programa de construções navais. Entre estas, encontrava-se Angola.

Após um ano de negociações, os representantes dos dois países chegaram a um entendimento que recuperava vários pontos da convenção de 1898. Desta vez, no entanto, a Alemanha adoptou uma nova estratégia e, mesmo antes do acordo ter sido rectificado, o chanceler alemão reconheceu a sua existência, procurando desta forma apresenta-lo como um facto consumado e criar problemas entre a Inglaterra e a França que, mais uma vez, tinha sido ignorada. Entretanto, a Alemanha continuava a desenvolver o seu programa naval, tendo este até sofrido uma aceleração. Nestas circunstâncias a Inglaterra não estava disposta a ceder6 e o Império Português permaneceu intacto.

Como defendeu Hobsbawm, a sobrevivência do Império Português em África deveu-se, em primeiro lugar, «à incapacidade dos seus modernos rivais para chegarem a um acordo preciso sobre a maneira de dividir entre eles aqueles territórios»7.

O início das hostilidades, em Julho de 1914, constituiu assim mais do que uma ameaça, uma hipótese de clarificação e de reafirmação da presença de Portugal em África. Logo em Setembro de 1914, foram enviadas para Angola e Moçambique as primeiras expedições que tinham como principal objectivo travar as previsíveis ofensivas alemãs oriundas do Sudoeste Africano, actual Namíbia, no caso angolano, e da África Oriental alemã, actual Tanzânia, no caso moçambicano.

Não cabe aqui fazer o relato das operações militares portuguesas nos teatros africanos. Deve, no entanto, sublinhar-se que o resultado da acção das tropas portuguesas nos territórios africanos não foi positivo. Aniceto Afonso defende que esta se caracterizou por «inúmeras incapacidades, improvisações e fragilidades com divisão de responsabilidades entre as autoridades políticas e administrativas e os comandos militares»8. Referindo-se concretamente à campanha de Moçambique, António José Telo não traça um cenário mais animador:

«O resultado final deste considerável esforço foi amplamente negativo. As reduzidas ofensivas portuguesas correram mal, o território da colónia não foi defendido e as baixas foram imensas à escala nacional: 2007 europeus e 2804 militares indígenas mortos. Morreram mais portugueses em Moçambique do que na frente da França, com a diferença que os mortos em Moçambique foram fundamentalmente provocados por razões sanitárias. No final da guerra, uma parte do Norte de Moçambique estava sublevado e as campanhas de pacificação continuam por alguns anos.»9

Apesar destes balanços negativos, a verdade é que o principal objectivo foi conseguido: no final do conflito, Portugal tinha ultrapassado diversos momentos críticos que tinham colocado em causa a integridade do Império e mantinha as colónias que vinham sendo cobiçadas há décadas por vários países europeus. Este resultado não se deveu a uma efectiva capacidade de controlo sobre os vastos territórios africanos mas a um conjunto de factores externos que propiciaram este desfecho. Complexa foi também a manutenção da dualidade peninsular, ameaçada após a queda do regime monárquico. Vejamos então qual a situação política vivida na Península Ibérica na primeira década do século XX.

 

Península Ibérica

Em Outubro de 1910 foi implantado um regime republicano em Portugal. A nível externo, uma das principais preocupações dos republicanos foi assegurar o reconhecimento do novo regime pela velha aliada. Para esse efeito, três meses antes da revolta de Outubro, foi enviada a Londres uma delegação que foi recebida no Foreign Office pelo subsecretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Obviamente que o Governo inglês não tomou nenhuma atitude que pudesse ser lida como um apoio à causa republicana, mas também não manifestou qualquer intenção de apoiar a monarquia dos Bragança. Esta posição merece uma explicação.

Desde 1906 assistia-se a uma aproximação entre Londres, Paris e Madrid, que reagiram às declarações públicas do kaiser Guilherme II a favor da independência de Marrocos, firmando os acordos de Algeciras e de Cartagena que pretendiam contrariar as pretensões alemãs na área do estreito de Gibraltar. Esta aproximação permitiu que após o regicídio de Fevereiro de 1908, que fez soar um alarme na vizinha Espanha, o rei Afonso XIII tenha revelado as suas ambições sobre Portugal, quer à França quer à Inglaterra10. A crise política vivida em Portugal servia assim de argumento às históricas ambições iberistas num momento em que a Espanha se recompunha da derrota sofrida em 1898. Os estudos do historiador Hipólito de la Torre Gómez, apesar de deixarem claro que se tratava de posições do rei e não de opções estratégicas do Governo espanhol, revelam que imediatamente após o golpe de 5 de Outubro, alguns ministros espanhóis defenderam em reunião do executivo o bombardeamento de Lisboa e que no final desse mês, o exército do país vizinho tinha junto da fronteira três divisões prontas para entrar em Portugal. Não se tratava, portanto, de uma mera fixação do monarca, verificando-se a existência, quer no governo, quer nas forças armadas, de sectores intervencionistas que foram em grande parte vencidos pela posição moderada do presidente do Conselho, José Canalejas11.

De qualquer modo, estas confidências à tradicional aliada do país vizinho eram inconcebíveis anos antes. A aproximação entre a Inglaterra e a Espanha esvaziava a importância da dualidade peninsular. Na opinião de António Telo, a Inglaterra não estava muito preocupada com uma alteração do regime em Portugal, pois essa hipótese permitir-lhe-ia negociar um eventual novo enquadramento peninsular e um acordo com a Alemanha tendo como moeda de troca o Império Português12.

Este cenário ajuda a compreender a posição de wait and see adoptada pelos ingleses que, apesar de não terem tomado qualquer atitude contra o novo regime, foram sucessivamente adiando o reconhecimento da República, até ao momento em que foram forçados a agir como resposta aos franceses, que avisaram que iriam reconhecer a República depois de aprovada a Constituição e de eleito o Presidente da República. Logo de seguida, em Outubro de 1911, as incursões monárquicas a partir da Galiza, sublinharam a fragilidade dos laços externos do novo regime, que não conseguia obter da tradicional aliada qualquer tipo de apoio perante as ameaças originárias do outro lado da fronteira. Nos anos que antecederam o conflito mundial a aliança luso-britânica perdera assim muito do seu significado. Para os ingleses, o único ponto fundamental passava por garantir que as ilhas atlânticas não viessem a ser usadas por um poder rival, havendo mesmo uma corrente que defendia que a amizade com Espanha e a sua adesão à Entente poderia justificar uma eventual absorção de Portugal pelo seu vizinho. Entre os adeptos desta tese encontrava-se Winston Churchill, então primeiro lord do almirantado.

Em 1912, um relatório do almirantado defendia que a aliança luso-britânica não trazia vantagens directas para a Inglaterra, implicando, pelo contrário, pesadas responsabilidades, dada a situação crítica que se vivia nas forças armadas portuguesas, afectadas pela mudança de regime. Paralelamente, a Espanha e as suas ilhas atlânticas, eram vistas pela marinha britânica como peças cada vez mais importantes num xadrez europeu em movimento, que se aproximava de um conflito bélico13.

Dois anos mais tarde, Churchill lembrava que caso o almirantado tivesse de decidir entre a amizade de Portugal e a de Espanha, a primeira teria de ser abandonada em benefício da segunda. Churchill ia ainda mais longe e admitia, como «mais que provável», que uma aproximação da Espanha à Entente se viesse a traduzir na anexação de Portugal, sendo que nesse cenário a Inglaterra deveria aceitar essa anexação em troca da cooperação espanhola14. Acontece que esta visão não era partilhada pelo Foreign Office, que continuava a defender a dualidade peninsular15, embora esta não representasse o antagonismo de outrora, uma vez que neste período se procuravam manter em paralelo boas relações com os dois estados peninsulares.

Por outro lado, o rei espanhol, que tinha confessado pessoalmente as suas pretensões a Churchill16, continuava a não esconder as suas ideias relativamente a Portugal e chegou a oferecer ao Presidente francês a utilização das Baleares, a passagem de tropas por território espanhol e mesmo a beligerância do seu país em troca da anexação de Portugal17. São estes factos que devemos ter em consideração quando procuramos analisar a posição adoptada pelos republicanos quando deflagrou a Grande Guerra.

 

Portugal

Com alguns cambiantes, a defesa das colónias, a procura de reconhecimento internacional do novo regime e mesmo a independência nacional foram tradicionalmente apresentados pela historiografia como as razões que explicam a entrada de Portugal no conflito. No entanto, como bem explicou Nuno Severiano Teixeira, estes argumentos são insuficientes18.

Como já tivemos oportunidade de observar, as colónias portuguesas estiveram, de facto, no centro das atenções das grandes potências europeias nas décadas que antecederam o conflito e foram vistas, principalmente pela Inglaterra, como uma das moedas de troca que poderia ser utilizada a fim de evitar esse mesmo conflito. Por outro lado, durante a guerra, os dois maiores territórios africanos, Angola e Moçambique, foram atacados pelos alemães, e os ingleses utilizaram esses territórios como pontos de apoio e de passagem das suas tropas. Severiano Teixeira defende ainda que as colónias portuguesas poderiam também vir a ser utilizadas no quadro negocial do pós-guerra. Nesse sentido, existiam realmente ameaças sobre o império colonial português. No entanto, como o mesmo autor sublinha, a defesa das colónias e uma intervenção armada no continente africano não implicava qualquer intervenção na frente europeia nem uma beligerância activa. Apesar do envio de tropas para Angola e Moçambique e dos confrontos travados nesses territórios contra os alemães, e não obstante as facilidades concedidas aos ingleses, a Alemanha não declarou guerra a Portugal. Isto explica porque uma boa parte da elite política portuguesa defendia que o País deveria limitar-se a defender a integridade territorial das colónias e manter uma neutralidade pró-britânica. Ou seja, a defesa das colónias não justificava nem a beligerância nem a entrada de Portugal na guerra europeia.

Estas foram defendidas por outros dois motivos: a necessidade de obter o reconhecimento internacional da República e como forma de garantir o esvaziamento da ameaça espanhola. Como também já verificámos, estes eram problemas reais, que poderiam ser resolvidos se Portugal entrasse na guerra ao lado dos aliados. Por um lado, a beligerância portuguesa traduzir-se-ia num claro reforço do reconhecimento internacional que os republicanos procuravam obter e, por outro, esvaziava a ameaça espanhola, uma vez que os adeptos da união ibérica deixariam de poder contar com a indiferença, ou mesmo com eventuais apoios internacionais.

No entanto, como também notou Severiano Teixeira, estes objectivos seriam plenamente alcançados caso Portugal, ao contrário da Espanha, saísse da neutralidade e declarasse a beligerância. Acontece que a beligerância não implicava a participação de Portugal no esforço de guerra travado nos campos de batalha europeus. Para explicar essa participação, este autor defende que temos de procurar razões de ordem interna e não razões de ordem externa.

A entrada de Portugal na Guerra ao lado dos aliados, com um papel activo nos combates militares que se travam na Europa, era a via que permitiria aos democráticos de Afonso Costa manterem a sua posição hegemónica no sistema político-partidário português, através da união, se não de todos os portugueses, pelo menos de todos os republicanos, em torno de um grande objectivo nacional que criasse uma vaga de patriotismo que não admitia dissenções. Ora, uma vaga desta dimensão não se formaria apenas com o envio de forças para África, nem mesmo com uma declaração de beligerância. Era na Europa que se desenharia o pós-guerra. Nesse sentido, o projecto radical só teria sucesso através da participação portuguesa no esforço de guerra europeu19.

Falta, no entanto, referir um outro aspecto tão ou mais importante que aqueles que já referimos: a questão financeira.

Desde finais de 1914, os governos portugueses vinham solicitando assistência financeira a Londres e invariavelmente a resposta que obtinham era que, dada a situação de guerra que se atravessava, apenas seriam concedidos créditos a Portugal caso o país tivesse de entrar em guerra. O desenrolar do conflito veio agudizar as necessidades financeiras do Estado português que, por exemplo, comprava cereais e os vendia com prejuízo a fim de evitar repercutir nos consumidores finais os aumentos verificados no seu preço, justificados em parte pelo extraordinário aumento dos custos de transporte. Era o chamado «pão político». Acresce que não era apenas na escassez de trigo e de outros cereais que se faziam sentir os efeitos da guerra. Verificava-se também falta de carvão, um combustível essencial no início do século XX, cuja carência se repercutia em todos os domínios da economia, e a guerra submarina afectava não apenas o comércio que garantia a importação de bens essenciais, mas também as trocas com as colónias. A solução era, pois, a beligerância, uma vez que esta permitiria ao país beneficiar do pacto de colaboração económica interaliado e obter da Inglaterra um empréstimo que, além de permitir a compra de armas, viabilizasse a compra de trigo, travando a crise de câmbio que se adivinhava. Para Afonso Costa, apenas a entrada na guerra poderia travar o isolamento financeiro que estava a afectar profundamente o País20.

Acontece que no Verão de 1914, o País estava num impasse. No poder estava o governo minoritário de Bernardino Machado, apoiado pelo presidente da República, Manuel de Arriaga, mas que não tinha uma posição clara sobre qual deveria ser o posicionamento do país em caso de conflito. O Partido Democrático de Afonso Costa era maioritário na Câmara dos Deputados, mas os evolucionistas liderados por António José de Almeida e os unionistas de Brito Camacho detinham o controlo do Senado.

Para os democráticos, a participação na Guerra poderia trazer a paz interna e a glória externa. Mais, era uma ocasião de ouro para reafirmar a hegemonia do Partido Democrático sobre os demais partidos republicanos. Nas palavras de António Telo, a guerra «era a espada que podia cortar o nó górdio do que parecia ser a inevitável queda da República radical e promover um renascimento nacional»21. A maior dificuldade dos intervencionistas foi a de fazer erguer essa grande vaga que teimava em não aparecer. É que esta só poderia surgir no horizonte de duas formas: através de um ataque alemão ou de um pedido inglês em nome da aliança.

Relativamente ao primeiro aspecto importa sublinhar, como já referimos, que durante os primeiros dois anos da guerra se registaram confrontos entre forças militares portuguesas e alemãs no Sul de Angola e no Norte de Moçambique sem que Portugal tivesse quebrado o seu estatuto de neutralidade. Acresce que durante este período as relações diplomáticas entre os dois países não sofreram qualquer alteração22.

Relativamente ao segundo ponto importa clarificar qual a posição inglesa relativamente ao posicionamento de Portugal no conflito.

Assim que deflagrou o conflito o Governo inglês pediu que Lisboa não declarasse a neutralidade nem a beligerância, uma vez que a declaração de neutralidade implicava um conjunto de obrigações que colocava os beligerantes em situação de igualdade. O Governo de Sua Majestade solicitou ainda várias facilidades de ordem logística e mesmo a compra de armas. Londres conhecia bem a fragilidades das forças armadas portuguesas e temia ter de assumir pesados encargos caso Portugal declarasse a beligerância. Por outro lado, a imediata entrada de Portugal poderia ter consequências em Espanha e em Itália (país que integrava a Tríplice Aliança mas que se mantinha neutral), sendo que para os aliados a evolução do posicionamento destes dois países era muito mais importante do que a beligerância portuguesa. Finalmente, a entrada de Portugal na guerra impediria que os seus territórios coloniais viessem a ser utilizados num cenário de paz de compromisso com a Alemanha. Nesse sentido, tem razão Rui Ramos quando, evocando João Chagas, então embaixador em Paris e um dos mais acérrimos intervencionistas, defende que, em primeiro lugar, Portugal teve que lutar contra a Inglaterra23. João Chagas foi precisamente um dos principais opositores da política moderada do então ministro dos Negócios Estrangeiros, Freire de Andrade, que entendia que o País deveria apenas responder positivamente às solicitações da aliada. O escritor Aquilino Ribeiro relata no seu diário um encontro que manteve com o representante diplomático de Portugal em França, que é bem revelador da postura dos radicais24.

A porta da beligerância que os democráticos procuravam atravessar abriu-se ligeiramente em Setembro de 1914, quando a França solicitou a Portugal a cedência de peças de artilharia que eram necessárias na frente europeia. Tinha finalmente chegado a oportunidade por que ansiavam. O ministro da Guerra defendeu então que a «honra» das Forças Armadas estaria em causa se as armas fossem enviadas para França sem os respectivos artilheiros. O Governo francês não contrariou este argumento e aceitou o envio dos artilheiros e das peças.

A passagem pela porta começava a fazer-se sem grandes dificuldades. No entanto, era preciso mais. Era necessário escancará-la e transformá-la num arco de triunfo. Perante a resposta francesa, o Governo português respondeu que sendo assim, e uma vez que não se desejavam ferir susceptibilidades no seio do exército português, era preferível optar pelo envio de uma divisão completa. Acontece que o País estava longe de poder dispor, num curto espaço de tempo, de uma divisão completa, efectivamente preparada para combater. Por isso o Governo português aceitou a sugestão inglesa: primeiro seguiriam as peças de artilharia, depois, numa segunda fase iriam os homens e as restantes armas, assim que as tropas estivessem preparadas25. Para muitos observadores nacionais e estrangeiros muito provavelmente este cenário nunca se iria verificar, isso explica porque mais tarde se designou como «milagre» à instrução dada em Tancos. Perspectivando-se a criação de um executivo de Unidade Nacional, caiu o governo de Bernardino Machado. O novo Governo, apoiado pelo Partido Democrático, era liderado pelo antigo presidente da Câmara dos Deputados, Vítor Hugo de Azevedo Coutinho, mas rapidamente ficou conhecido como «os miseráveis de Vítor Hugo». É que a unidade ficou comprometida assim que Brito Camacho tornou pública a sua oposição à política dos democráticos. Camacho teve conhecimento da posição inglesa relativamente ao envolvimento de Portugal na guerra e defendeu que o País deveria limitar-se a satisfazer os pedidos da aliada. Posicionamento idêntico era partilhado por um importante sector do Exército, que não escondeu o seu descontentamento: Vários oficiais manifestaram o seu desagrado relativamente à política intervencionista entregando ao Presidente da República as suas espadas.

Perante esta agitação, que ficou conhecida como o «movimento das espadas», o Presidente Arriaga chamou um militar, o general Pimenta de Castro, para chefiar um novo governo que se pretendia «nacional» e que tomou posse em Janeiro de 1915. O envio de uma força expedicionária para França deixou de ser prioritário e apenas se mantiveram os preparativos para o envio de novas forças para África.

A nível interno, Pimenta de Castro promoveu a realização de nova legislação eleitoral e anunciou que, contrariamente ao previsto, o parlamento não iria reabrir, o que implicava o adiamento das eleições. Os democráticos responderam organizando uma reunião de deputados e de senadores em Santo Antão do Tojal de onde saíram apelos à revolta. Esta foi alastrando, alimentada por sentimentos antimonárquicos, já que os monárquicos tinham deixado de ser perseguidos durante o governo de Pimenta de Castro. A iniciativa partiu da Marinha, que na madrugada do dia 14 de Maio se revoltou contra o Governo. As forças leais ao executivo bombardearam os navios revoltados e estes responderam abrindo fogo sobre a cidade. A capital esteve à beira da guerra civil e mesmo a demissão do Governo não impediu a continuação dos confrontos onde participam inúmeros civis armados. O poder passou então para uma Junta Constitucional que levou o País a eleições em Junho de 1915.

Controlando a máquina eleitoral, os democráticos conseguiram uma larga maioria e obtiveram mais de dois terços nas câmaras dos deputados e dos senadores. Entretanto, Manuel de Arriaga apresentou a demissão, e foi substituído por Teófilo Braga. Afonso Costa não queria ir para o governo pois sabia que se o fizesse não poderia implementar a política intervencionista que vinha advogando, mas acabaria por assumir a chefia do executivo meses depois, no final de Novembro de 191526. Os democráticos tinham finalmente o poder. No entanto, este não era suficiente para que a estratégia intervencionista pudesse ser imediatamente posta em prática. Faltava pouco.

No início de 1916, o Governo francês sugeriu que a Inglaterra solicitasse a requisição dos navios alemães que se encontravam nos portos portugueses. A acção dos submarinos alemães estava a causar sérios problemas ao esforço de guerra aliado e os navios alemães que se tinham refugiado nos portos dos países neutrais quando se iniciou o conflito começaram a ser muito cobiçados. No segundo dia de Fevereiro de 1916, a Inglaterra solicitou ao Governo de Lisboa a requisição desses navios. O Governo português respondeu que aceitaria satisfazer a solicitação, mas exigiu que esse pedido fosse feito em nome da aliança, de forma a salvaguardar eventuais represálias. No dia 17 desse mês surgiu o almejado pedido: em nome da aliança, a Inglaterra solicitava a requisição de todos os navios inimigos que se encontravam em portos portugueses. No final de Fevereiro, o pedido foi levado a cabo com particular ênfase e empenho: Numa operação surpresa, os navios alemães foram ocupados e as bandeiras alemãs foram substituídas pelas das cinco quinas. A 9 de Março surgiu a resposta formal da Alemanha que se declarou em estado de guerra com Portugal. O primeiro objectivo dos intervencionistas fora conseguido. Faltava no entanto o segundo, tão ou mais importante que o primeiro. O envio de uma força expedicionária para França.

Para alcançar este objectivo era importante, em primeiro lugar, procurar o maior número possível de suporte político. Este desiderato já se tinha verificado em 1914 e não tinha sido bem-sucedido. Com a declaração de guerra alemã, os democráticos esperaram que fosse possível um entendimento alargado.

No dia 10 de Março de 1916, numa sessão conjunta, as duas câmaras votaram a favor da criação de um executivo de reconciliação nacional que abarcasse as várias sensibilidades políticas. Acontece que rapidamente se percebeu que esse alargamento não deveria ser tão lato que englobasse os católicos e menos ainda os monárquicos. Os unionistas de Brito Camacho aproveitaram essas exclusões para permanecerem de fora. Posicionamento idêntico foi adoptado pelo Partido Socialistas Português. Restavam os evolucionistas de António José de Almeida, que aceitaram integrar o novo executivo. Para contrabalançar a hegemonia dos democráticos, a liderança do Governo foi entregue ao líder dos evolucionistas.

No entanto, o envio de uma força expedicionária para a frente europeia continuava a encontrar resistências na velha aliada. Em Abril de 1916, o Governo inglês defendeu que a melhor forma que Portugal tinha para participar na guerra seria através de um reforço do esforço militar em Moçambique e de uma intensificação das defesas marítimas do País. Esta posição foi contrariada por Afonso Costa, que nesse Verão se deslocou a Londres para tratar pessoalmente do assunto. As armas negociais utilizadas foram os navios alemães apreendidos. Em troca de uma participação de Portugal ao lado dos aliados na frente europeia e da obtenção de um empréstimo que serviria para cobrir todos os encargos que essa participação envolvia (transportes, abastecimentos, treinos e armas, etc.), o Governo de Lisboa cederia à aliada 80 por cento dos navios apreendidos27. Quando a questão se tornou pública, embora sem que todos os seus contornos tivessem sido conhecidos, Brito Camacho tratou de sublinhar as contradições dos democráticos: Portugal tinha-se apoderado dos navios alemães para fazer face às necessidades económicas que atravessava; como consequência, a Alemanha tinha declarado guerra a Portugal mas o Governo tinha decidido desfazer-se de boa parte dos navios28.

Acontece que, como já observámos, não foi esta a única, nem mesmo a principal razão que levou o Governo português a responder tão prontamente ao pedido inglês. No entanto, foi este o argumento que permitiu o envio de um corpo expedicionário para França.

Após a declaração de guerra feita pela Alemanha, iniciaram-se as diligências tendo em vista a constituição de uma divisão que deveria combater na frente ocidental. Para esse efeito foi montado um campo de instrução em Tancos. Várias revoltas, que segundo os democráticos eram impulsionadas pelos monárquicos, cedo revelaram o descontentamento do exército relativamente às teses intervencionistas. O conflito desenvolvia-se há dois anos e, apesar da censura, conheciam-se bastante bem os seus efeitos devastadores. O sonho dos louros e da glória tinha um lado cada vez mais negro e sangrento e, embora em guerra com a Alemanha, não existia qualquer sentimento de ameaça concreta que pudesse sublimar as virtudes da guerra. No final de 1916, o histórico herói da Rotunda, Machado dos Santos, encabeçou um movimento contra o envio de forças para a frente europeia. Não eram só os monárquicos que não viam com bons olhos os embarques para França. Em Janeiro de 1917, Portugal e Inglaterra assinaram finalmente a convenção militar que iria reger a participação portuguesa na frente europeia. Este documento estipulava que Portugal enviaria uma divisão reforçada, que se traduzia em 35 mil homens. Nesse mesmo mês seguiram as primeiras tropas. Pouco depois, Portugal sugeriu o envio de mais 20 mil militares, de forma a que fosse possível constituir duas divisões, proposta que foi aceite pela Inglaterra. O transporte das tropas portuguesas foi um processo lento e moroso que se prolongou por onze meses. Apenas em Novembro de 1917 Portugal ocupou o seu sector que se estendia por cerca de 12 quilómetros no Sul da Flandres, no vale do rio Lys.

A esperada onda de patriotismo não varreu o País e, além dos problemas relacionados com a participação de Portugal na guerra, o Governo debateu-se com os graves problemas económicos e financeiros. Estes problemas estão na origem da ruptura da coligação dos evolucionistas com os democráticos. Em Maio de 1917, foi atingido um novo patamar de conflitualidade social e Lisboa viveu em clima pré-revolucionário. No final desse ano, Sidónio Pais liderou com sucesso uma junta revolucionária que derrubou o Governo. Pouco tempo depois, a batalha de La Lys revelaria as debilidades da política voluntarista dos democráticos.

A nível interno a estratégia intervencionista revelou-se um completo fracasso. Apesar do carácter efémero do regime de Sidónio, a República jamais se recomporia das divisões internas que a corroíam. A nível externo, apesar dos diversos erros cometidos, manteve-se o que era considerado essencial: o império e a dualidade peninsular. No entanto, não é a participação de tropas portuguesas nos campos da Flandres que explica esta situação. Como noutras ocasiões, a manutenção da integridade nacional deveu-se essencialmente a factores externos que inviabilizaram uma acção concertada das grandes potências.

O travo amargo da derrota militar de La Lys é um dos elementos essenciais na queda da República e na implantação da ditadura militar. Já os espectros da partilha do império, da unidade peninsular e das crónicas debilidades financeiras do país, estão na origem da afirmação política de Oliveira Salazar que dará particular atenção a todas essas questões.

 

Data de recepção: 9 de Abril de 2014

Data de aprovação: 14 de Maio de 2014

 

Notas

1A pedido do autor este texto não adopta as normas do novo Acordo Ortográfico.

2Sobre o ultimato ver: Teixeira, Nuno Severiano – O Ultimatum Inglês. Política Externa e Política Interna no Portugal de 1890. Lisboa: Publicações Alfa, 1990.

3Telo, António José – Primeira República I. Do Sonho à Realidade. Lisboa: Editorial Presença, 2010, p. 237.         [ Links ]

4Ramos, Rui – A Segunda Fundação (1890-1926). Lisboa: Editorial Estampa, 1994, pp. 145-146.         [ Links ]

5Telo, António José – Primeira República I. Do Sonho à Realidade. pp. 245-248.         [ Links ]

6Ibidem, pp. 288-294.

7Hobsbawn, Eric J. – A Era do Império 1875-1914. Lisboa: Editorial Presença, 1990, p. 79.         [ Links ]

8Afonso, Aniceto – «Portugal e a guerra nas colónias». In Rosas, Fernando, e Rollo, Maria Fernanda (coord.) – História da Primeira República Portuguesa. Lisboa: Tinta-da-China, 2009, p. 293.         [ Links ]

9Telo, António José – Primeira República I. Do Sonho à Realidade, p. 437.         [ Links ]

10Ibidem, pp. 260-261; Ramos, Rui – «Aparências e realidades: os republicanos perante a Aliança Inglesa até à Primeira Guerra Mundial». In Meneses, Filipe Ribeiro de, e Oliveira, Pedro Aires de (coord.) – A I República Portuguesa: Diplomacia, Guerra e Império. Lisboa: Tinta-da-China, 2011, pp. 97-98;         [ Links ] Gómez, Hipólito de la Torre – «A I República e a Espanha». In Meneses, Filipe Ribeiro de, e Oliveira, Pedro Aires de (coord.) – A I República Portuguesa: Diplomacia, Guerra e Império, pp. 120-121.         [ Links ]

11Goméz, Hipólito de la Torre – El Império del Rey. Alfonso XIII, Por tugal y los ingleses (1907-1916). Mérida: Editora Regional de Extremadura, 2002, pp. 77-80.         [ Links ]

12Telo, António José – Primeira República I. Do Sonho à Realidade. p. 268.         [ Links ]

13Goméz, Hipólito de la Torre – El Império del Rey. Alfonso XIII, Portugal y los ingleses (1907-1916), pp. 118-123.         [ Links ]

14Ibidem, pp. 143-144.

15Goméz, Hipólito de la Torre - El Império del Rey. Alfonso XIII, Portugal y los ingleses (1907-1916), p. 154.         [ Links ]

16Ibidem, p. 86.

17Telo, António José – Primeira República I. Do Sonho à Realidade, pp. 278-286;         [ Links ] Goméz, Hipólito de la Torre – El Império del Rey. Alfonso XIII, Portugal y los ingleses (1907-1916), p. 127.         [ Links ]

18Sobre a entrada de Portugal na Primeira Guerra veja-se Teixeira, Nuno Severiano – O Poder e a Guerra 1914-1918. Objectivos Nacionais e Estratégias Políticas na Entrada de Portugal na Grande Guerra. Lisboa: Editorial Estampa, 1996;         [ Links ] veja-se também a síntese do mesmo autor, «Portugal na “Grande Guerra”, 1914-1918: as razões da entrada e os problemas da conduta». In Teixeira, Nuno Severiano (coord.) – Portugal e a Guerra. Lisboa: Edições Colibri, 1996, pp. 55-69.

19Teixeira, Nuno Severiano – «Portugal na “Grande Guerra” 1914-1918: as razões da en-trada e os problemas da conduta», pp. 56-62.         [ Links ]

20Ramos, Rui – A Segunda Fundação (1890-1926), p. 516.         [ Links ]

21Telo, António José – Primeira República I. Do Sonho à Realidade, p. 299.         [ Links ]

22Esta situação é salientada no último livro de José Medeiros Ferreira, Ferreira, José Medeiros – Não Há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal)dita da Integração Europeia. Lisboa: Edições 70, 2013, p. 15.         [ Links ]

23Ramos, Rui – A Segunda Fundação (1890-1926), pp. 498-499.         [ Links ]

24Aquilino transcreve assim as afirmações proferidas por João Chagas no encontro que ambos mantiveram na Embaixada de Portugal em Paris no dia 3 de Agosto de 1914: «Portugal ainda não declarou a beligerância, não senhor, e todavia é urgente que a declare. É uma questão de decoro e de independência. Se quer viver, se quer ser alguém no concerto da Europa futura, apressa-se a entrar em guerra com o pouco que tem, com o pouco que pode dar, contra os impérios centrais. O contrário é o suicídio»; «De hoje em diante tomo a peito levar o meu país à guerra; vou pregar a cruzada; serei Pedro Eremita […] Todas as razões e mais uma nos aconselham a entrar em guerra. O próprio interesse da humanidade». Este posicionamento de Chagas levou Aquilino a questionar-se: «Em nome de que justa, necessária causa, se podem despachar par a o matadoiro os meus pobres, ignorantes, pacíficos labregos?». Ribeiro, Aquilino – É a Guerra. Diário. Lisboa: Livraria Bertrand, 1975, pp. 63-65.

25Sobre este episódio ver: Ramos, Rui – A Segunda Fundação (1890-1926), pp. 499-500;         [ Links ] e Telo, António José – Primeira República I. Do Sonho à Realidade, pp. 308-310.         [ Links ]

26Ramos, Rui – A Segunda Fundação (1890-1926), pp. 512-514;         [ Links ] Meneses, Filipe Ribeiro de – «Intervencionistas e anti-intervencionistas». In Rosas, Fernando, e Rollo, Maria Fernanda (coord.) – História da Primeira República Portuguesa. Lisboa: Tinta-da-China, 2009, pp. 267-276.         [ Links ]

27Telo, António José – Primeira República I. Do Sonho à Realidade, pp. 336-337.         [ Links ]

28Meneses, Filipe Ribeiro de – «A União Sagrada». In Rosas, Fernando, e Rollo, Maria Fernanda (coord.) – História da Primeira República Portuguesa, p. 281.         [ Links ]