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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.42 Lisboa jun. 2014

 

CENTENÁRIO DA GRANDE GUERRA

Nota introdutória: Grande Guerra

Nuno Severiano Teixeira*, David Castaño**,1

 

* Professor catedrático de Relações Internacionais e Vice-Reitor da Universidade Nova de Lisboa. Diretor do IPRI–UNL. Doutorado em História pelo Instituto Universitário Europeu (Florença) e agregado em Ciência Politica e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa. Foi Visiting Professor na Universidade Georgetown (2000) e Visiting Scholar no Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Califórnia, Berkeley (2004). Foi ministro da Administração Interna (2000-2002) e ministro da Defesa (2006-2009) do Governo português. Tem obra publicada sobre história militar, história das relações internacionais, história da construção europeia e segurança e defesa.

** Investigador no IPRI-UNL onde desenvolve um projecto de pós-doutoramento sobre processo de consolidação da democracia portuguesa (1976-1982). Doutor em História Contemporânea. Tem-se dedicado ao estudo da história contemporânea portuguesa e da história das relações internacionais, centrando-se no período do Estado Novo e da transição e consolidação democrática. A sua tese de mestrado, «Paternalismo e Cumplicidade: As relações luso-britânicas 1943-1949», recebeu em 2005 o Prémio Teixeira de Sampayo. Foi um dos coordenadores da publicação da obra Portugal e o Atlântico: 60 anos dos acordos dos Açores. Entre os seus últimos trabalhos destacam-se, em co-autoria com o General Garcia dos Santos, Apontamentos Políticos. Eanes e os partidos (Bertrand, 2013); Mário Soares e a Revolução (D. Quixote, 2013); e João Ninguém. Soldado da Grande Guerra, de capitão Menezes Ferreira (Bertrand, 2014).

 

Um século depois da Grande Guerra, a sua história é tudo menos pacífica. Não há, ainda, cem anos depois, uma visão comum sobre o conflito mais devastador da história da humanidade.

Vencedores e vencidos, beligerantes e neutros, todos têm uma narrativa diferente. E não foi possível um denominador comum, um consenso mínimo, nem sequer sobre o sacrifício das vítimas que, parece óbvio, deveria ser consensual.

Construção social, a História introduz, sempre, essa pluralidade de visões, experiências e representações. Mas no caso da Grande Guerra ela é sobredeterminada pelo discurso nacionalista que à época conduziu à guerra e hoje se reflecte, ainda, nas comemorações oficiais do Centenário da Grande Guerra.

Em geral, mas por maioria de razão no contexto das comemorações, a função do historiador não é a de alimentar as narrativas oficiais ou de lhes conferir legitimidades retrospectivas. Não é a de construir uma história oficial ou de patrocinar os discursos dos poderes públicos. É, pelo contrário, a de construir uma narrativa que acrescente conhecimento, que assinale os erros, combata as ideias falsas e desconstrua os mitos. Ora, é precisamente para esse objectivo que este número especial da revista Relações Internacionais dedicado à Grande Guerra quer contribuir.

Cem anos volvidos sobre os acontecimentos de Sarajevo, a História, a Ciência Política e as Relações Internacionais continuam empenhadas na procura de novos olhares, novas fontes e novos métodos, no fundo, novas luzes que ajudem a iluminar este período crucial da história mundial. Nessa pluralidade de pontos de vista há, pelo menos, uma pergunta comum: o que está na origem do conflito – um conflito cuja dimensão e intensidade assumiram contornos até então desconhecidos?

É esta multiplicidade de abordagens e narrativas que este número especial da Relações Internacionais espelha, procurando traduzir alguns dos grandes debates que, nos últimos anos, têm atravessado o campo do estudo da Primeira Guerra Mundial: a questão das responsabilidades pelo deflagrar do conflito, o papel das pequenas e grandes potências, a ascensão de potências não-ocidentais, ou a questão dos seus limites cronológicos.

De um ponto de vista da Teoria das Relações Internacionais, Carlos Gaspar analisa como o impacto da Grande Guerra serviu, não apenas para evidenciar a urgência de transformar as relações entre os estados, mas também para demonstrar a necessidade de estudar sistematicamente a política internacional. Partindo deste momento fundador, é traçada a árvore genealógica da disciplina de Relações Internacionais e dos seus ramos, particularmente o realista e as suas correntes, distinguidas através das diferentes interpretações sobre as origens e a natureza da Grande Guerra.

De um ponto de vista historiográfico, Filipe Ribeiro de Meneses analisa o debate em torno das origens da Grande Guerra não apenas no âmbito da questão da culpa, mas da sua dimensão temporal, sugerindo que para uma melhor compreensão do conflito se recue a 1911 e se avance até 1923, e que ao mesmo tempo, além da história militar e diplomática se tenha em consideração a história cultural, nomeadamente o fenómeno da cultura de guerra que a antecede e cujos efeitos não se esgotam quando se firmam os acordos de paz.

Bruno Cardoso Reis analisa o papel das pequenas potências através de um estudo comparativo que envolve a Sérvia, a Bélgica e Portugal e procura medir o impacto das pequenas potências em conflitos de grande escala, chegando à conclusão de que «mesmo pequenas potências relativamente fracas podem ter um grande impacto em guerras». Esse não foi, no entanto, como aliás o autor sublinha, o caso de Portugal. Como pequena potência imperial periférica, Portugal procurou essencialmente obter da guerra o reconhecimento internacional do novo regime e a manutenção de um império ameaçado pelas alterações no equilíbrio de poder europeu. Esse é o processo descrito por David Castaño, através da conjugação entre as dinâmicas internas e externas.

Patrícia Daehnhardt, reflecte sobre o conceito de «estatuto» de grande potência e analisa, paralelamente, o debate histórico em torno do papel da Alemanha como principal responsável pelo deflagrar do conflito. Desde o Tratado de Versalhes que atribui à Alemanha a responsabilidade moral da guerra e consequentemente lhe impõe pesadas reparações de guerra, passando pela crítica desta visão e, finalmente, pelas teses revisionistas de Fritz Fischer, até ao centenário que agora se comemora, no qual vê, sobretudo, a recuperação da tese de Lloyd George, segundo a qual, as potências teriam sido arrastadas para o conflito.

Ora é, precisamente, esta tese que o historiador sérvio Danilo Šarenac questiona ao defender que os dois livros que marcaram o panorama da historiografia da Primeira Guerra Mundial no momento do seu centenário e que partilham essa ideia2, tendem a simplificar o contexto balcânico ao imputar ao nacionalismo sérvio as principais responsabilidades pelo deflagrar do conflito.

Mas este foi um conflito, verdadeiramente, mundial e as ondas de choque destas alterações não se circunscreveram aos espaços imperiais formais e foram aproveitadas pelas potências asiáticas para promoverem uma alteração ao status quo regional. Esse é o processo descrito e analisado por Raquel Vaz-Pinto que explica os diferentes objectivos que estão na origem da entrada da China e do Japão na Grande Guerra. Apesar da escassez dos resultados obtidos por ambos os países, a autora sublinha a importância do conflito como marco inicial da ascensão asiática e como momento revolucionário na perspectiva das relações internacionais.

Finalmente, o dossier encerra com uma recensão de Manuela Franco ao livro de Sean McMeekin, The Russian Origins of the First World War. É mais do que uma mera recensão e questiona a tese do autor que atribuiu grande capacidade diplomática aos russos, remetendo para um conjunto de questões, em particular, o do destino político do império otomano.

 

Notas

1A pedido dos autores o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2Clark, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914, Nova York: HarperCollins, 2013;         [ Links ] Macmillan, Margaret – The war that ended peace. The road to 1914, Nova York, Random House, 2013.         [ Links ]