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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.41 Lisboa mar. 2014

 

RECENSÃO

Nação E Identidade Nacional Em Moçambique

Alexandra Dias Santos*1

 

* Leciona na Universidade Europeia, onde coordena a licenciatura em Ciências da Comunicação. Licenciada em História pela Universidade Nova de Lisboa (FCSH) e doutorada em Sociologia pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS – UL). A sua investigação incide sobre ideologia e nacionalismo em Angola, temas que estuda a partir da produção literária, sendo o tema da sua dissertação de doutoramento a obra do escritor angolano Pepetela.

 

Seja na percepção do público em geral, seja na dos académicos, a ideia de que vivemos num mundo crescentemente globalizado e interdependente vem a par com uma de sentido contrário, segundo a qual esse mesmo mundo é atravessado por correntes que enfatizam o local e o particular. Assim, ao lado de trabalhos sobre cosmopolitismo, vemos não só persistirem, como até florescerem, os estudos em torno da nação e dos nacionalismos. Em consonância com esta tendência internacional, duas colectâneas recentes vieram contribuir para as discussões em torno do nacionalismo e do desenvolvimento das identidades nacionais nos países antes sujeitos à colonização portuguesa: Sure Road? Nationalisms in Angola, Guinea-Bissau and Mozambique2, que será tratado numa próxima recensão; e Em Torno dos Nacionalismos em África, organizado por Augusto Nascimento e Aurélio Rocha. Antes de nos debruçarmos sobre esta última obra, vale a pena salientar que estes trabalhos não constituem pedradas no charco, antes se inserem num campo de investigação que vem merecendo, desde há largos anos, a atenção dos académicos. Relativamente a Angola, o interesse pelas origens do nacionalismo proporcionou uma série de estudos que podem já considerar-se clássicos, como os trabalhos seminais de Mário António Fernandes de Oliveira e de Douglas Weeler na década de 1960, os de Ronald Chilcote, David Birmingham e Michael Samuels, publicados em 1972, e os de Jill Dias, na década de 1980. Estando sobretudo centrada na análise da imprensa periódica, esta linha de investigação continua a florescer, como mostra o trabalho de Jeremy Ball, entre tantos outros que seria difícil enumerar. Outra corrente de investigações é a que foca a atenção nos movimentos de libertação e nas suas ideologias, sobressaindo aí os estudos de Christinne Messiant e de Jean-Michel Mabeko Tali a respeito do MPLA, que complementam a investigação de arquivo com a história oral. Uma outra linha de pesquisa toma em consideração a relação entre literatura e nacionalismo. Inaugurada por Alfredo Margarido na década de 1980, este tipo de pesquisa tem tido continuidade, sobretudo no campo dos estudos literários, nos trabalhos de investigadores como José Carlos Venâncio, Pires Laranjeira e Inocência Mata, para citar só alguns. Uma outra perspectiva é a que questiona a articulação entre nacionalismo e identidades colectivas parcelares, onde situamos a vasta obra de Ruy Duarte de Carvalho e, mais recentemente, os trabalhos de teor antropológico de Nuno Porto, Justin Pearce, Didier Péclard e Inge Brinkman. Algo sui generis, as recentes investigações de Fernando Tavares Pimenta a respeito do nacionalismo branco desafiam certas convenções que associam o nacionalismo em África exclusivamente ao desenvolvimento de sentimentos anticoloniais.

Por comparação, o panorama dos estudos sobre identidades nacionais e nacionalismo em Moçambique apresenta-se mais fragmentado. Entre as obras de referência a respeito das origens do sentimento identitário moçambicano salientam-se os trabalhos de Jeanne-Marie Penvenne, Patrick Chabal, Antonio Hohlfeldt e Ilídio Rocha. O nacionalismo da Frelimo e do Estado moçambicano foi alvo de vários estudos de Michel Cahen, que desde a década de 1990 vem também dedicando atenção à relação entre nacionalismo e formas de identidade colectiva parcelares. Muito recentemente, o sociólogo Nuno Domingos tem explorado o «nacionalismo banal» em Moçambique, nomeadamente nas manifestações desportivas. Já no campo dos estudos literários, vários investigadores têm explorado a relação entre literatura e nacionalismo, salientando-se os trabalhos de Maria Benedita Basto e Rita Chaves.

Face a este cenário de relativa escassez, é certamente bem-vinda a recente colectânea Em Torno dos Nacionalismos em África, editada por Augusto Nascimento e Aurélio Rocha, centrada em Moçambique. Acolhendo participações de investigadores portugueses e moçambicanos, a colectânea abarca diversas perspectivas, sendo porventura o traço de união entre os textos a vontade de falar de «nacionalismos em África», por oposição aos «nacionalismos africanos» – subentendendo-se o objectivo de compreender cada manifestação de nacionalismo no respectivo contexto político, social e económico, enfatizando as dinâmicas locais, a par de uma visão mais generalista.

Iniciando-se com um texto de cariz reflexivo da autoria de Augusto Nascimento – «Dos nacionalismos às independências em África: ensaio de problematização de percursos políticos em África» – a colectânea prossegue com uma investigação de Paulo Jorge Fernandes acerca da emergência de sentimentos nacionalistas entre os brancos de Moçambique – «“A África pertence aos Afrikanders”: imprensa e “nacionalismo afro-europeu” em Moçambique nos finais do século XIX». Segue-se o texto de Teresa Cruz e Silva a respeito da Missão Suíça, mais tarde Igreja Presbiteriana de Moçambique, onde se formou o líder histórico da Frelimo, Eduardo Mondlane.

Neste, estabelece-se uma ligação entre o desenvolvimento de uma imprensa em língua vernácula no Sul de Moçambique e a criação de uma identidade nacional moçambicana – «O nacionalismo em Moçambique e o papel da Igreja. O caso das igrejas protestantes no Sul de Moçambique (1940-74)». A relação entre a identidade nacional e outras formações identitárias é abordada em dois trabalhos: no de Gregório Firmino – «Diversidade linguística e Nação-Estado na África pós-colonial: caso de Moçambique» – discute-se a possibilidade de valorizar as línguas autóctones; no de Aurélio Rocha – «A “questão nacional” em Moçambique» – descreve-se a constituição de uma identidade moçambicana como projecto, focando os sucessivos entraves à sua implantação. O texto final, de Luís Bernardo Honwana – «Nacionalismo africano: memória e desafios» – situa no tempo e problematiza a relação entre os nacionalismos africanos e o pan-africanismo, entendido como projecto de longo prazo que cabe ainda realizar.

Não sendo possível, por constrangimento de espaço, comentar todos estes trabalhos, opta-se por fazer referência a apenas alguns deles. Neste sentido, importa salientar o texto de Augusto Nascimento, que de algum modo introduz as discussões que os restantes autores desenvolverão, ao mesmo tempo que sinaliza alguns dos principais constrangimentos de tipo teórico com que se debatem os estudiosos dos nacionalismos em África. Entre estes destaca-se o alerta em relação a visões finalistas da História, a advertência em relação à demasiado comum «interferência da lealdade nacionalista na produção de saber» (p. 14), e ainda a crítica relativamente ao estabelecimento de um nexo determinístico entre resistência anticolonial e nacionalismo – se este elo muitas vezes sustenta as narrativas dos partidos no poder, não pode porém satisfazer os investigadores (p. 18). Quanto às questões teóricas de fundo, Nascimento procura situar o nacionalismo, por um lado, na sua relação com os ideários do pan-africanismo, do pan-negrismo, do renascimento cultural do homem africano e da negritude (pp. 21-23), e, por outro, na sua relação difícil com a etnicidade, que terá resultado no esmagamento da diversidade cultural (p. 29), salientando ainda a interessante, e pouco estudada, questão da produção pelas elites de sínteses culturais nacionais (p. 33). É neste sentido que retoma a divisão entre nação cívica e nação orgânica – popularizada por Hans Kohn, para quem a partilha de formas políticas seria capaz de sustentar o compromisso mútuo dos cidadãos uns para com os outros3 – defendendo que se estaria agora a entrar numa nova fase, na qual se privilegiaria um nacionalismo que, sendo de tipo cívico, seria mais capaz de integrar as diferenças, tanto as de tipo étnico quanto as religiosas e linguísticas (pp. 35-36).

É no campo dos estudos sobre as origens dos nacionalismos que podemos situar o trabalho de Paulo Jorge Fernandes, que «procura compreender e caracterizar o nascimento de uma ideologia nacionalista “euro-africana”, seguindo o que foi escrito nos jornais africanos» (p. 47). A preocupação com a contextualização será porventura a característica mais marcante deste trabalho de investigação histórica, que detecta convergências entre o pensamento plasmado nos jornais de Lourenço Marques e o que surge expresso na imprensa dos vizinhos territórios do Cabo, do Transvaal e do Natal. Na senda do que foi feito por Pimenta para Angola, Fernandes ultrapassa uma concepção estreita de nacionalismo, revelando um quadro complexo onde se movem não apenas as elites africanas ditas protonacionalistas, cuja presença nos jornais já vinha sendo estudada, como também colonos e os seus descendentes. Entre estes, Fernandes detecta o desenvolvimento de uma «tensão autonomista» (p. 45), e mesmo de «um “nacionalismo branco”, embora apresentando um enfoque africanista […], fenómeno que irá preceder o advento do discurso nativista, com o qual irá concorrer nas primeiras décadas de novecentos» (p. 46). Fernandes conclui que «se as páginas dos periódicos desempenharam um papel central na mobilização em torno de mitos colonialistas e se serviram para caucionar políticas imperialistas nos territórios ultramarinos, também seriam usadas pelos africanos – brancos, negros e mestiços – para legitimar a sua modernidade e estabelecer formas de interpelação do governo central, por vezes ultrapassando as vontades do poder ultramarino» (p. 47).

Finalmente, importa fazer referência ao estudo de Gregório Firmino, que aborda as questões em torno da diversidade linguística de Moçambique. Contrariando a ideia muitas vezes expressa de que o uso das línguas vernáculas seria indutor de conflito social e impeditivo da unidade nacional, Firmino defende que «os conflitos sociais nas situações pós-coloniais têm menos a ver com sentimentos primordiais divisionistas do que com a criação de mecanismos que possam promover a coexistência de diferentes forças sociais no seio da sociedade civil» (p. 113). A causa das divisões e do mal-estar social não reside, portanto, e de acordo com o texto bem sustentado de Firmino, no multilinguismo, mas antes na desigual distribuição do poder. Estando os vários grupos sociais adequadamente representados, a diversidade não seria indutora de tensão – basicamente defende que a nação pode ser «coesa e unitária» sem que tenha que ser homogénea do ponto de vista cultural (pp. 117-118).

Na sua variedade, os trabalhos reunidos em Em Torno dos Nacionalismos em África revelam a existência de questões comuns, sobressaindo o difícil problema da articulação entre as resilientes identidades colectivas parcelares, o projecto de construção da nação, e o quadro supranacional do pan-africanismo. As respostas muito diferentes entre si que os investigadores dão a estas questões são reveladoras de uma abertura académica que vale a pena salientar e saudar.

 

Notas

1A pedido da autora este texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2Morier-Genoud, Eric (ed.) – Sure Road? Nationalisms in Angola, Guinea-Bissau and Mozambique. Leiden & Boston: Brill, 2012.         [ Links ]

3Uma posição mais recentemente retomada por Jürgen Habermas, quando argumentou a favor de um «patriotismo constitucional», ou seja, do desenvolvimento de um tipo específico de solidariedade nacional, baseada na lealdade dos cidadãos às instituições políticas. Ver Kohn, Hans – The Idea of Nationalism. Nova York: MacMillan, 1944;         [ Links ] e Habermas, Jürgen – The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press, 1996.         [ Links ]