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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.41 Lisboa mar. 2014

 

Para Além da Fluidez e das Relações de Poder. O Caso do Sudão Do Sul

Beyond the spontaneity and the power relations: the case of South Sudan

Jeane Silva de Freitas*, Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann**,

 

*Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (Brasil).

**Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (Brasil), e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Relações Internacionais (GEPRI/UEPB). Doutorado (2007) em Ciência Política pela Universidade de Sao Paulo – USP.

 

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar a problemática da independência do Sudão do Sul, partindo de uma análise teórica sobre a imposição das fronteiras na região. O Sudão do Sul se tornou um país independente em 9 de julho de 2011, após uma votação nacional em prol da secessão do país. Todavia, algumas questões políticas e econômicas ainda permanecem sem solução desde sua independência, especialmente no que se refere à contestação da região de Abyei. Nesse sentido, a ênfase recai sobre a avaliação das relações de poder e as consequências dessa dinâmica para o povo sudanês, no quadro das teorias pós-modernistas.

Palavras-chave: Sudão do Sul, secessão, relações de poder, fronteiras

 

ABSTRACT

This article aims to analyze the issue of the independence of South Sudan, starting with a theoretical analysis on the imposition of borders in the region. Southern Sudan became an independent country on July 9th 2011, after a nationwide vote in favor of country secession, however, some political and economic problems still remain unresolved since their independence, especially with regard to the defense of Abyei region. Thus, the emphasis is on the evaluation of power relations and the consequences of this dynamic for the Sudanese people, with the framework of the postmodernist theories.

Keywords: South Sudan, secession, power relations, borders

 

Este trabalho tem como objetivo analisar o processo de independência do Sudão do Sul, a partir da imposição das fronteiras, tendo em conta a avaliação das relações de poder estabelecidas naquela região. Buscar-se-á analisar os reflexos dessa interação no povo sudanês. Para cumprir esses objetivos, enquadraremos essas questões nos pressupostos pós-modernistas, por permitirem lançar um novo olhar sobre o conflito fronteiriço. Por se tratar de um estudo de caso relativa à discussão de fronteiras (física e simbólica) entre o Sudão e o Sudão do Sul, a teoria pós-moderna contribui com postulados críticos, além de apresentar novas nuances sobre o conceito da racionalidade nas relações internacionais. Nesse aspecto, fazendo-se uma analogia ao estudo de caso em apreço, a inserção da teoria pós-moderna nesse estudo se justifica em virtude de proporcionar uma nova interpretação sobre a definição do Estado-territorial-soberano contemporâneo, especialmente, na conjuntura em que estão inseridos os estados sudaneses. Assim, começaremos por discutir brevemente o arcabouço teórico pós-moderno, tomando-se por base as contribuições de alguns autores clássicos, como Michel Foucault e Jürgen Habermas. Em seguida, será discutido o caso da independência do Sudão do Sul e os reflexos dessa secessão no âmbito político-econômico e suas consequências para o agravamento do conflito entre esses dois estados. Considerando-se que a criação do Estado moderno foi um projeto exclusivamente ocidental, o argumento perseguido neste estudo é que a emblemática independência do Sudão do Sul representou um ponto de fluidez nas rígidas fronteiras africanas. Desse modo, a partir das indagações que serão empreendidas no decorrer desse trabalho, poderá se pensar a diferença, a não-conformação, a contestação e o pluralismo das relações internacionais. Destarte, a crítica pós-moderna, aqui inserida, buscará investigar as formas pelas quais foram construídas as estruturas, sociais dos estados sudaneses.

 

A Perspectiva Pós-Moderna Nas Relações Internacionais

«Temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza.»1

O estudo das relações internacionais (RI) é relativamente novo no campo das ciências que envolvem seu aparato analítico, se comparado à ciência política, a economia, a sociologia ou a filosofia, já que teve seu desenvolvimento no período posterior à I Guerra Mundial, momento no qual os estudiosos da época contribuíram significativamente no sentido de estruturarem uma disciplina que oferecesse uma ampla compreensão em torno do Estado como entidade soberana, além de buscarem explicações para respaldar a recorrência da guerra no sistema internacional. No entanto, nas últimas décadas do século xx, o que se observou no campo das relações internacionais (RI) foi uma espécie de «choque teórico», pois ainda que os anseios explicativos das teorias dominantes, realismo e liberalismo, se tenham pautado nas elucidações da realidade internacional, a súbita emergência de outros eventos históricos, como o fim da Guerra Fria, levaram os estudiosos da época a repensarem essas premissas teóricas2.

Somando-se a essas discussões surgiram outras críticas e questionamentos, não apenas no campo das RI, mas também em outras áreas do conhecimento, em função de uma junção de fatores conflituantes que surgiram simultaneamente na conjuntura internacional culminando em um período de crise, especialmente no que confere à «crise da modernidade, crise dos Estados nacionais, crise ambiental, crise de paradigmas, crise do conhecimento»3. Dentro dessa nova realidade, nasceu uma nova geração de estudiosos críticos buscando renovar os paradigmas dominantes. Assim, com as profundas transformações espácio-temporais que ocorreram na contemporaneidade, surgiu o discurso crítico pós-moderno. No entanto, faz-se necessário inicialmente definir, ainda que de forma pormenorizada, o que se compreende por modernidade, sobretudo, suas implicações para a produção de conhecimento. Desse modo, de acordo com Giddens4, a modernidade pode ser entendida como o «período histórico subsequente à Idade Medieval, que se caracteriza por: um conjunto de atitudes em relação ao mundo, que passa a ser visto como suscetível de transformação pela mão do homem; um conjunto de instituições econômicas, cuja maior inovação seria a emergência do capitalismo como modo dominante de produção, o industrialismo e a economia de mercado; e um conjunto de arranjos político institucionais, com papel privilegiado para o Estado nacional e a democracia representativa de massas»5.

O exposto acima também evidencia-nos outras importantes ideias intrínsecas ao caráter dinâmico da modernidade e as transformações no tempo e no espaço, a partir de um conjunto de elementos. Nesse sentido, ressalta-se que «o dinamismo da modernidade deriva da separação do tempo e do espaço e de sua recombinação em formas que permitem o “zoneamento” tempo-espacial preciso da vida social; do desencaixe dos sistemas sociais (um fenômeno intimamente vinculado aos fatores envolvidos na separação tempo-espaço); e da ordenação e reordenação reflexiva das relações sociais à luz das contínuas entradas (inputs) de conhecimento afetando as ações de indivíduos e grupos» (grifo do autor)6.

Nas sociedades pré-modernas, a noção de tempo e espaço é para quase todos os efeitos coincidentes, mas com o advento da modernidade, os ambientes foram socialmente moldados e influenciados, ou seja, «o que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza»7. Em virtude desses fatores, a modernidade não é apenas um período que se inicia a partir do colapso dos sistemas medievais, mas um conjunto qualitativo de novos paradigmas.

A crítica formulada pelos pós-modernistas resultou das crises epistemológicas da modernidade, com as quais emergiram novas interpretações sobre a realidade e um novo conceito de racionalidade, baseada no homem como sujeito. Tais fatores contrastaram fortemente com os preceitos da modernidade que, por sua vez, pautavam-se em uma visão antropocêntrica de mundo, mas que, ao mesmo tempo, contrapunham-se à ordem teocêntrica característica da época medieval8.

Assim, o pensamento pós-moderno se pautou por um estado de constante descrença em relação a vários aspectos da modernidade, desde a industrialização, urbanização e a revolução tecnológica do mundo, às concepções de Estado-nação, democracia liberal e humanismo, assim como, suas afirmações de neutralidade e objetividade nos processos constitutivos da ciência9. Por outro lado, os autores pós-modernistas privilegiaram muitos elementos marginalizados pela modernidade como, por exemplo, as emoções, a intuição, a tradição e que, por sua vez, contribuíram para a construção do conhecimento.

Dentro da ideia moderna de história estão, implicitamente, as noções de progresso, continuidade, evolução e razão, significando que o homem a construiu para justificar suas ações no tempo. Já para os pensadores pós-modernos houve um equívoco nessa noção de uma «história única», protagonizada pelo homem. Para essa corrente teórica, o relato histórico seria considerado legítimo se as percepções do «outro» também fossem expostas e analisadas, considerando-se que qualquer amostra de unidade pressupõe um ato prévio de poder e dominação10. Nesse sentido, os pós-modernistas vêem a história como um conflito entre diferentes perspectivas, isso porque a história, produto da modernidade, não é mais considerada como uma força libertadora, mas antes como uma fonte de subjugação, opressão e repressão.

As análises tradicionais das ri estiveram mais preocupadas em formular modelos explicativos, assim como recomendações políticas do cenário internacional do que, efetivamente, promover a restituição do caráter político às RI, integrando-se, assim, o aspecto teórico na prática política. Nesse sentido, o ponto de divergência entre os postulados tradicionais e os pós-modernos não estaria na «presença ou ausência do Estado, mas sobre até que ponto o princípio do Estado soberano oferece uma explicação plausível das práticas políticas contemporâneas»11. Desse modo, o questionamento não se limitaria apenas à análise da sobrevivência do Estado, mas do complexo «Estado-nação-autonomia» como uma entidade desprendida dos horizontes discursivos westfalianos12. Nesse contexto, o desafio pós-modernista residiu em reconduzir a concepção ética ao eixo político.

Assim, a ênfase da crítica pós-moderna recai sobre o discurso do poder estatal das teorias dominantes, evidenciando que tal prática se reproduziu a partir das relações de poder/ saber. Posto que, para essa corrente, «qualquer e toda prática é uma prática arbitrária de poder e, portanto, uma prática política», considerando-se que em todos os níveis das relações humanas se observou a dinâmica de um indivíduo tentando subjugar o outro pela busca do poder13. Deste modo, o posicionamento pós-moderno concebe o ser humano, antes de tudo, como um produto resultante do ambiente social, contrapondo-se à ideia moderna de sujeito autônomo e independente das estruturas sociais.

Por outro lado, sendo os pós-modernistas definidos como desconstrutivistas por se referirem as teorias dominantes como metanarrativas, levou os críticos do pós-modernismo a observarem algumas fraquezas nas análises contemporâneas dessa corrente pós-moderna. A problemática recai, de certo modo, sobre a possibilidade do pós-modernismo se tornar uma acusação niilista, ou seja, as críticas tomariam um sentido negativo, por serem feitas pelo simples fato de criticar, uma vez que esses pensadores rejeitam a perspectiva de uma realidade objetiva, como, também, o valor do conhecimento14. Em contrapartida, os pós-modernistas afirmam que não buscam provar com absoluta certeza aquilo que eles propuseram, mas apenas objetivavam levar à pauta a incerteza das reivindicações absolutistas do conhecimento e os seus possíveis danos para as ciências sociais e as relações humanas15.

 

Até onde vão as fronteiras? A independência do Sudão do Sul e os reflexos na região

«Um dilema pode ser identificado quando um ator persegue objetivos inconciliáveis, enquanto que uma disputa ocorre quando dois atores buscam o mesmo objetivo.»16

Nesta parte discutiremos o caráter inerentemente prático da teoria pós-moderna, no que concerne a compreensão do conflito entre os estados sudaneses, nos termos da imposição das fronteiras naquela região e, consequentemente, as implicações dessa secessão para a população sudanesa. Assim, sustenta-se que «toda interpretação traz em si imperativos políticos17, ou seja, as representações de um dado evento sugerem e delimitam as ações possíveis em resposta a ele»18. Posto de outra forma, significa dizer que esse estudo buscará ratificar a compreensão do conflito sudanês nos termos do princípio do Estado-territorial-soberano, delineando não apenas os critérios preestabelecidos em torno da territorialidade física do Estado-nação, mas também a percepção de «Estado» a partir das insurgências no território sudanês, especialmente a que culminou na independência do Sudão do Sul, clarificando a noção de fronteiras imaginárias naquele território. Assim, perseguindo o argumento central desse estudo, busca-se ratificar a hipótese de que a independência do Sudão do Sul representou um ponto de fluidez nas rígidas fronteiras africanas, o que corrobora com a argumentação pós-moderna, e escapa do âmbito da lógica positivista das teorias das RI.

Nessa esteira, do ponto de vista do direito constitucional, a Paz de Vestefália representou a instituição do status legal de Estado e a expansão das «fontes de legitimidade constitucional do Estado, até então conferida pelo sistema costumeiro da herança dinástica e conquista»19. Nesse ensejo, diferentemente das atribuições imputadas ao Estado régio da conjuntura estratégica anterior, a nova percepção de Estado territorial não se organizava em torno de um único indivíduo, mas respaldava-se numa noção de território indivisível e, para tanto, nutria tamanha importância para a manutenção de suas fronteiras.

É importante ressaltar que a Paz de Vestefália transplantou para a ordem institucional internacional o princípio de descentralização, pautado em uma diferenciação entre a esfera pública e a esfera privada. Nesse sentido, a concepção de soberania para a comunidade internacional resultaria de uma dinâmica contrastante entre as dimensões internas e externas do Estado territorial, tomando-se por base alguns fatores mutuamente excludentes, a exemplo do «monopólio da força pelo Estado dentro do seu território, legitimação do uso da força entre estados, ordem e relações contratualizadas no interior do Estado, anarquia e guerra de todos contra todos no exterior»20.

Corroborando com a ideia anterior, o caráter problemático do princípio da soberania do Estado, no plano interno, assumiu duas formas primárias: primeiro, envolveu tensões contínuas entre as dicotomias poder/autoridade e/ou entre estados soberanos/ pessoas soberanas. Todavia, tais tensões têm vindo a ser resolvidas por meio de distinções binárias entre o Estado e a sociedade civil. O segundo princípio, diz respeito ao conceito de comunidade política incorporado no princípio da soberania estatal e, para tanto, questionou-se o nível de compatibilidade com os processos políticos, econômicos, sociais e culturais21. Assim, diante de tais fatores, percebeu-se que a esfera doméstica foi apresentada como o domínio do progresso e a origem da cidadania ética.

Em termos externos, as relações entre os estados são convencionalmente entendidas como uma negação da comunidade, ou seja, considerando-se o caráter anárquico da esfera internacional, tendeu-se a percebê-lo como um ambiente construído a partir da ausência de progressos e princípios valorativos, contrariando os pressupostos de uma comunidade22. Nesse sentido, o sistema internacional é definido pela não existência de uma autoridade abrangente, segundo a qual, os conflitos de interesses seriam resolvidos. Ao mesmo tempo, existe uma dupla argumentação na percepção de que as relações internacionais são necessariamente uma questão de potencialidade, presumindo-se, por sua vez, que os estados agem autonomamente segundo seus interesses e que suas identidades são construídas embasadas nessas características como uma afirmação de poder23.

Dessa forma, observa-se que o Estado e o poder se confundem em sua lógica própria. Corroborando com tal afirmação, o pensamento de Foucault, ao delinear a relação entre o poder e a governabilidade, pontua que o poder é a estrutura basilar que organiza hierarquicamente a sociedade. Para Foucault, a sociedade é formada por um conjunto de poderes menores, continuamente empregados e imperceptíveis e, nesse caso, o poder do Estado é um deles. Assim, ao analisar o Estado em sua forma constitutiva, geralmente não se considera o fato de que o mesmo é resultado de «inúmeras mudanças internas provocadas pelas lutas políticas que buscam se afirmar hegemonicamente»24. Não obstante, Foucault define que o governo não se refere estritamente ao território, mas a «um conjunto de homens e coisas»25. Nesse sentido, a teoria característica dos «modelos de governo» ou a «forma de governar» dos estados sempre procuraram se afirmar nessa lógica de disputa de poder, gerando países cada vez mais complexos26.

Desse modo, a grande discussão em torno do princípio do Estado-territorial-soberano gira em torno das consequências resultantes dessas relações de poder e as prováveis consequências danosas para os cidadãos inseridos nesse território. No tocante a essa questão, é importante tecer algumas argumentações em relação à concepção contemporânea da chamada era pós-vestefaliana. Para tanto, observou-se que o cenário internacional da atualidade atravessa um período de grandes transformações políticas e uma acentuada ruptura com o modelo estatocêntrico vestefaliano, considerando-se que houve uma «superação da identidade tradicional da política com as fronteiras do Estado»27.

No tocante a essa questão, ressalta-se que o modelo político-institucional instaurado durante o período de formação da, então, República do Sudão, contribuiu consideravelmente para que houvesse uma bifurcação no poder estatal desse país. Nesse caso, a lógica do conflito envolvendo o Norte e o Sul do país partiu da premissa de que se unificaram povos distintos sob o comando de um único governo, ao passo que a atuação política e econômica do mesmo teria sido pouco efetiva fora de sua capital28. Tais fatores excludentes instigaram a emergência de movimentos separatistas e, consequentemente, o emblemático conflito entre os dois estados sudaneses na atualidade.

O conflito civil29envolvendo a República do Sudão e a República do Sudão do Sul teve suas raízes remotas no período pré-colonial, onde existiam tensões divergentes entre o Reino Unido e o Egito pelo controle administrativo do território colonial. Com a invasão dos egípcio-otomanos, em 1821, o território do Sudão foi dominado por uma «colcha de retalhos» de grupos pastoris, propiciando, assim, consequências desastrosas para os povos do Sul do país, como a utilização de trabalhadores dessa localidade no comércio de escravos, com vista à ascensão do Egito ao status de potência regional. Todavia, esse processo violento de construção do Estado sudanês não se restringiu apenas à população sulista, mas também a outras regiões que sofreram a mesma «combinação de marginalização político-econômica e discriminação sociocultural», a exemplo de Darfur, Kordofan, Nilo Azul, Beja e Núbia30.

Quanto a esse ponto, é pertinente salientar que o movimento separatista consiste na «manifestação expressa de um grupo nacionalista em se desmembrar de um Estado a que pertence com o intuito de formar um outro independente»31. Além disso, as razões que motivam a segregação de um território estão atreladas a vários fatores, incluindo-se nesse processo os conceitos de clivagem e lealdade, que para efeitos desse estudo, serão abordados implicitamente. No entanto, o processo de reconhecimento da nova área territorial se dá, na maioria das vezes, por meio de «rebeliões, revoltas, revoluções e, em boa parte dos casos, na forma de guerras civis e desordens institucionais»32. Nesse sentido, em virtude das tensões ininterruptas entre as elites nortistas do Sudão (maioritariamente muçulmanas) e a minoria cristã e animista do Sul do país, decidiu-se por um referendo consultivo na região Sul do Estado, em 9 de janeiro de 2011, com vista à separação do território e ao estabelecimento de uma nova fronteira internacional na região33.

Segundo Döpcke, as comunidades africanas pré-coloniais já incorporavam o conceito de fronteiras políticas em seus territórios e, nesse sentido, havia uma «espécie de soberania graduada, sendo absoluta no centro do Estado e ficando mais fraca na periferia». É importante sublinhar que essas fronteiras pré-coloniais funcionaram como mecanismos para separação de «entidades políticas», e não «entidades culturais, linguísticas ou étnicas»34. Desse modo, o autor ressalta que apesar da etnicidade africana ter tido certa relevância no processo de construção política desse continente, não se constituiu como um fator preponderante da «identidade» do Estado. Nesse sentido, o que se observou de fato foi sua definição por vias políticas para que houvesse uma estruturação na sua hierarquia doméstica.

Cabe ainda acrescentar que o programa de fronteiras implementado pelas potências colonizadoras no continente africano, «além de ignorar os interesses dos povos nativos, amiúde não dispunham de conhecimentos geográficos detalhados sobre extensas regiões», ou seja, traçavam seus novos limites territoriais sem considerarem a hidrografia e a topografia local35. Em virtude desses fatores, no período de formação da Organização da Unidade Africana (OUA), em 1963, muitos países desse continente reivindicaram modificações no seu ordenamento territorial, a exemplo da Somália – que pretendia incorporar ao seu território as populações originárias da etnia somali do Djibuti, da Etiópia e do Quênia; o Marrocos – que «contestava a independência concedida pela França à Mauritânia»; e Gana – advogando que as fronteiras herdadas da colonização não deveriam se consolidar, entre outros exemplos36.

Dentro de uma perspectiva pós-moderna, Rosenau37enfatiza que a análise histórica deve ser orientada por uma explicação relativista e, nesse caso, apoiando-se em uma «reorientação sobre o que foi dado como certo, quais sejam, o que tem sido negligenciado, as regiões de resistência, o esquecido, o irracional, o insignificante, o reprimido, [...] e tudo que a idade moderna nunca se importou em entender em qualquer detalhe específico»38. Assim, a questão da herança fronteiriça dos estados africanos, particularmente, no que se refere aos estados sudaneses, seja no âmbito político quanto no econômico, significou profundas mudanças no caráter governamental desses países, fatores que serão melhor explicitados na secção seguinte.

Outro aspecto importante no processo de formação das modernas fronteiras africanas foi a Conferência de Berlim, entre 1884 e 1885. Apesar de a conferência não ter tratado diretamente de questões de soberania e reivindicações territoriais, alcançaram-se alguns impactos positivos nessa ocasião, a começar pela popularização da «ideia de colonial», acelerando, desse modo, o processo de corrida pela África. Outra questão importante a ser observada na conferência foi a gradativa relevância do princípio da «ocupação efetiva» durante a partilha da África. Apesar de não ter sido um princípio inventado pela conferência, o mesmo adquiriu proporções expansionistas no continente africano, ainda que tenha sido formulado apenas para o seu litoral39. Assim, a importância atribuída ao princípio da «ocupação efetiva» está relacionada ao fato de que antes da Conferência de Berlim bastava-se apenas um acordo com os chefes locais para que as potências reivindicassem algum território. Esse princípio foi utilizado pela França e a Inglaterra «para questionar a soberania da Libéria no interior e para alargar suas próprias colônias»40.

Diante dessa conjuntura litigiosa, os dirigentes africanos elencaram tentativas de reduzir os riscos de conflitos relacionados a essas questões fronteiriças e, para tanto, na primeira sessão da Assembleia de Chefes de Estado e de Governo da Organização da Unidade Africana (OUA), em 1964, criaram a Resolução AHG/Res. 16 (I). O objetivo dessa resolução foi condenar explicitamente as políticas de revisão territorial e ratificar um compromisso entre os estados-membros, segundo o qual, os estados acordariam em respeitarem as fronteiras estabelecidas desde o período colonial. Posteriormente, esse acordo de respeito às fronteiras foi reafirmado pela União Africana por meio de seu artigo 4, inciso (b) do Ato Constitutivo, com base no princípio do uti possidetis juris41, com a finalidade de evitar novas tentativas de colonização e a expansão dos Estados42.

Aprofundando a discussão sobre a soberania territorial de um Estado, é interessante destacar que a implementação de modernas fronteiras, particularmente no continente africano, nitidamente não inibiu o movimento populacional, pelo contrário, em muitos casos, como os estados sudaneses, provocou um expressivo deslocamento de pessoas naquela região. Nesse sentido, pensando-se os impactos das fronteiras sob as populações fronteiriças, observou-se que «para as pessoas comuns, as fronteiras na África não representavam nem representam [...] barreiras significantes às atividades cotidianas»43. Salvo, nos casos em que essas populações se encontravam em territórios beligerantes, a exemplo dos cidadãos fronteiriços da região de Abyei44.

Ainda que seja correto afirmar que historicamente os negros africanos do Sul do Sudão foram extremamente marginalizados pelas elites árabes e muçulmanas do Norte, culpar única e exclusivamente o colonialismo pelas atuais divisões territoriais nessa região seria também ignorar outros aspectos constitutivos do Estado sudanês. Nesse sentido, ressalta-se o papel da imposição da superioridade racial árabe (característica persistente até hoje), por meio do comércio de «negros africanos do Kordofan e do Darfur para o Império Otomano, o Exército de Mohammadi Ali e para o homem branco»45.

Desse modo, considerando-se os argumentos supramencionados, salienta-se que as fronteiras africanas são consideradas permeáveis para as populações locais. Todavia, essa permeabilidade não é simplesmente ignorada, mas assume uma significação particular por meio de uma integração mental entre a identidade étnica e as nacionalidades implicadas nesse contexto. Em outras palavras, a identidade nacional se configura no mínimo «tão importante como a identidade étnica»46.

Nesse sentido, fazendo-se uma alusão à problemática da nacionalidade de muitos cidadãos sulistas que ainda residem na República do Sudão, ilustra-se que segundo o Acordo Quatro Liberdades (FFA – sigla em inglês), assinado em março de 2012 entre os governos de Juba e Cartum, seria garantida a abrangência dos direitos civis a essa população, ou seja, direitos de livre-trânsito, trabalho, propriedade e residência para os cidadãos sul-sudaneses residentes no lado errado das fronteiras recém-criadas. No entanto, embora o Governo de Cartum tenha assinado o FFA, não tem reconhecido os direitos de cidadania plena para as pessoas de nacionalidade sulista, forçando-os a saírem do território, com o qual possuíam históricos laços identitários47.

Em função da noção de «artificialidade» na política de fronteira africana, comumente se argumenta que os conflitos desse continente são resultantes dessa conjuntura conceitual. Nesse sentido, este estudo tem buscado demonstrar que a secessão do Sudão do Sul expôs esse caráter contestável das rígidas linhas territoriais africanas e as relações de poder envolvidas nesse processo, especialmente, no que se refere à contestação da província de Abyei.

 

Considerações Finais

No presente artigo, desenvolveu-se o argumento de que a emblemática independência do Sudão do Sul representou um ponto de fluidez nas rígidas fronteiras africanas. Com base nessa afirmação, procurou-se justificar tal estudo, tomando-se como pressupostos a corrente teórica pós-moderna, cujas percepções buscaram enfatizar o questionamento de que toda e qualquer prática política é uma forma arbitrária de poder. Considerando-se que em todos os níveis das relações humanas e, particularmente no caso do conflito entre o Sudão e o Sudão do Sul, observou-se a dinâmica de um indivíduo tentando subjugar o outro em busca do poder.

Nesse sentido, inicialmente, ressaltou-se que a criação do Estado moderno foi um projeto exclusivamente ocidental. Corroborando com essa vertente, os povos que sofreram o processo de colonização desses estados-nação tiveram que moldar suas estruturas aos parâmetros estabelecidos por essas potências europeias. Em seguida, buscou-se compreender o complexo contexto a partir do qual o Sudão do Sul emergiu como nação soberana no cenário internacional. Conforme se observou ao longo do trabalho, alguns fatores foram determinantes ao processo de secessão do Sudão do Sul, entre os quais, destacou-se a unidade do movimento de libertação dos povos do Sul, assim como o fato de que esse povo nunca se viu, histórica e culturalmente, parte integrante do Norte do país.

Destarte, conforme argumentado em momentos anteriores, a declaração de independência do Sudão do Sul incorporou um conjunto particular de suposições sobre a «fixação» de um novo território. Nesse sentido, destacou-se que após a separação dos dois estados, ainda persistem fortes tensões entre o Norte e o Sul do Sudão. Somando-se a esses fatores, buscou-se refletir sobre o novo sistema de estados soberanos, especialmente, a natureza mutável da soberania nas relações internacionais, a partir da contestação de que a natureza de um Estado em si está mudando. Portanto, as diversas questões levantadas ao longo desse estudo, particularmente no que tange a problemática apresentada pelos dois estados sudaneses, puderam ratificar ainda mais a característica crítica dos pós-modernistas, fortalecendo essa corrente teórica.

 

Data de recepção: 11 de março de 2013 | Data de aprovação: 5 de novembro de 2013

 

Notas

1Boaventura de Sousa Santos apud Santos, Ana Cristina – «Orientação sexual em Portugal: para uma emancipação». In Reconhecer para Libertar: Os Caminhos do Cosmopolitismo Multilateral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 339.         [ Links ]

2Resende, Erica Simone Almeida – A Crítica Pós-Moderna/Pós-Estruturalista nas Relações Internacionais. Coleção Relações Internacionais. Vol. 2. Organizado por Senhoras, Elói Martins, e Camargo, Julia Faria. BoaVista: ufrr, 2010, p.17.         [ Links ]

3Ibidem, p. 17.

4Giddens, Anthony – Conversations with Anthony Giddens: Making Sense of Modernity. Stanford: Stanford University Press, 1998.         [ Links ]

5Anthony Giddens apud Resende, Erica Simone Almeida – A Crítica Pós-Moderna/ Pós-Estruturalista nas Relações internacionais, 2010, p. 18.         [ Links ]

6Giddens, Anthony – As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: unesp, 1991, p. 21.         [ Links ]

7Ibidem, p. 22.

8Jürgen Habermas apud Arre a z a, Catalina, e Tickner, Arlene – «Postmodernismo, postcolonialismo y feminismo: manual para (in) expertos». In. Revista Colombia International. Bogotá. N.º 54, 2002, p. 16.         [ Links ]

9Pauline Marie Rosenau, apud Arreaza, Catalina, e Tickner, Arlene – «Postmodernismo, postcolonialismo y feminismo: manual para (in) expertos», 2002, p. 16.         [ Links ]

10Arreaza, Catalina, e Tickner, Arlene – «Postmodernismo, postcolonialismo y feminismo: manual para (in) expertos», p. 17.         [ Links ]

11Rob B. J. Walker apud Alves, Ana Cristina Araújo – «Além do Ocidente, além do Estado e muito além da moral: por uma política eticamente responsável em relação à diferença – o caso ruandês». In Revista Contexto Internacional. Vol. 27, N.º 2, 2005, p. 416.         [ Links ]

12Ibidem, p. 416.

13Richard Ashley apud Alves, Ana Cristina Araújo – «Além do Ocidente, além do Estado e muito além da moral: por uma política eticamente responsável em relação à diferença – o caso ruandês», p. 417.         [ Links ]

14Dornelles, Felipe Krause – «Postmodernism and ir: from disparate critiques to a coherent theory of global politics». In Rev. Global Politics Network. Primavera de 2002, p. 10.         [ Links ]

15Ibidem.

16Johan Galtung, apud Lopes, Liana Araújo – «A autoridade palestina e a resolução do conflito com Israel». 2006. 278 f. Tese (doutorado em Relações Internacionais) – Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2006, pp. 31-32.         [ Links ]

17Significando nesse contexto, dominação.

18Alves, Ana Cristina Araújo – «Além do Ocidente, além do Estado e muito além da moral: por uma política eticamente responsável em relação à diferença – o caso ruandês», 2005, p. 421.         [ Links ]

19Bobbit t, Philip – A Guerra e a Paz na História Moderna: O Impacto dos Grandes Conflitos e da Política na Formação das Nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 111.         [ Links ]

20Pureza, José Manuel – «Quem salvou Timor Leste? Novas referências para o internacionalismo solidário». In Santos, Boaventura de Sousa (org.) – Reconhecer para Libertar: Os Caminhos do cosmopolitismo multilateral. 2.ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 517.         [ Links ]

21 Walker, Rob B. J. – Inside/Outside: International Relations as Political Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 170.         [ Links ]

22Ibidem, p. 171.

23Ibidem, p. 172.

24 Silva, Ailton José – «A idéia de poder em Foucault: o Estado e a arte de governar». In Metávoia. N.º 12, 2010, p. 21.         [ Links ]

25 Foucault, Michel – Microfísica do Poder. 10.ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 166.         [ Links ]

26Ibidem, p. 166.

27Ibidem, p. 517.

28 Schneider, Luíza Galiazzi – «As causas políticas do conflito no Sudão: determinantes estruturais e estratégicos». Porto Alegre: Universidade Federal Rio Grande do Sul, 2008, p. 41.         [ Links ]

29Desde a independência do Sudão do Sul, ainda persistem fortes tensões envolvendo os dois estados sudaneses, isso porque não ficaram definidas as questões relativas à partilha das riquezas provenientes do petróleo, definição das fronteiras e o estatuto da região de Abyei.

30 Verhoeven, Harry – «Understanding the implications of South Sudan’s independence». In Year One of a Nation – South Sudan’s Independence. A Compendium of Pieces from e-International Relations, 2012, pp. 10-11. [Consultado em: 20 de dezembro de 2012]. Disponível em: http://www.e-ir.info/wp-content/uploads/Sudan-publication.pdf        [ Links ]

31 Castro, Thales – Teoria das Relações Internacionais. Brasília: funag, 2012, p. 136.         [ Links ]

32Ibidem, p. 136.

33 Iglesias, Mario A. Laborie – Sudan Del Sur: Entre La violência y La esperanza. IEEE.ES. Documento Informativo, 2011 pp. 3-4. [Consultado em: 20 de dezembro de 2012]. Disponível em: http://www.ieee.es/Galerias/fichero/docs_informativos/2011/DIEEEI24-2011SUDANDEL_SUR.pdf        [ Links ]

34 Döpcke, Wolfgang – «A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra». In Revista Brasileira Política Internacional. Vol. 42, N.º 1, 1999, pp. 80-81.         [ Links ]

35 Santos, Luís Ivaldo Viallafañe Gomes – A Arquitetura de Paz e Segurança Africana. Brasília: funag, 2011, p. 145.         [ Links ]

36Ibidem, pp. 47-48.

37 Rosenau, Pauline Marie – Postmodernism and the Social Science. Insights, Inroads, and Intrusions, p. 8.         [ Links ]

38Ibidem.

39 Döpcke, Wolfgang – «A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra», p. 84.         [ Links ]

40Ibidem.

41O uti possidetis foi um princípio utilizado para governar as independências da América Latina. Esse princípio foi aplicado originalmente «aos conflitos sobre fronteiras e território entre Estados, mas, no decorrer do tempo, foi tacitamente estendida para não reconhecer tentativas de secessão que, na visão de alguns Estados africanos, expressariam um legítimo direito de autodeterminação». In Döpcke, Wolfgang – «A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra», p. 92.

42 Santos, Luís Ivaldo Viallafañe Gomes – A Arquitetura de Paz e Segurança Africana, p. 49.         [ Links ]

43 Döpcke, Wolfgang – «A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra», p. 94.         [ Links ]

44Abyei é um dos oito distritos do Estado do Kordofan do Sul, no Sudão. A região é rica em petróleo e, por esse motivo, con-figura-se como o principal ponto de divergência administrativa entre a República do Sudão e a República do Sudão do Sul. Atualmente, ocupada pelas Forças Armadas do Sudão e o Exército de Libertação do Povo do Sudão do Sul (spla). Causando a migração forçada de milhares de habitantes da região.

45 Tynsley, Rebecca – «Premature adulation in Sudan». In Year One of a Nation – South Sudan’s Independence. A compendium of pieces from e-International Relations, 2012, p. 15. [Consultado em: 20 de Dezembro de 2012]. Disponível em: http://www.e-ir.info/wp-content/uploads/Sudan-publication.pdf        [ Links ]

46 Döpcke, Wolfgang – «A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra», p. 95.         [ Links ]

47 Mbaku, John Mukum – «South Sudan: seeking the right formula for peaceful coexistence and sustainable development». In Year One of a Nation – South Sudan’s Independence. A Compendium of Pieces from e-International Relations, 2012, p. 48. [Consultado em: 20 de dezembro de 2012]. Disponível em: http://www.e-ir.info/wp-content/uploads/Sudan-publication.pdf        [ Links ]