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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.40 Lisboa dez. 2013

 

RECENSÃO

 

Oportunismo e salvação

 

Helena Ferreira Santos Lopes1

Licenciada em História pela FCSH-UNL, mestre em Estudos Chineses pela School of Oriental and African Studies, Universidade de Londres, e doutoranda em História pela Universidade de Oxford.

 

Gao Bei, Shanghai Sanctuary. Chinese and Japanese Policy toward European Jewish Refugees during World War II. Oxford, Oxford University Press, 2013, 185 páginas.

 

A história dos judeus na China durante a II Guerra Mundial não está propriamente por fazer mas continua bastante desconhecida, nomeadamente na Europa, onde os estudos sobre o Holocausto se centram sobretudo no contexto europeu. Gao Bei pretende na sua obra Shanghai Sanctuary: Chinese and Japanese Policy toward European Jewish Refugees during World War II traçar um quadro das políticas chinesas e japonesas face aos refugiados judeus na conjuntura asiática. O título, ao remeter para Xangai, é redutor: embora a metrópole tenha sido o principal «porto de último recurso» para centenas de milhares de judeus durante o conflito, o livro de Gao reporta-se a políticas mais abrangentes do que os limites da cidade, fazendo referência, entre outros, à situação na Manchúria.

A ideia central de Gao Bei é a de que tanto as autoridades chinesas como japonesas conceberam políticas no que concerne aos judeus centradas nos seus respectivos interesses, sobretudo com o intuito de captar o poderio económico que julgavam ter todos os judeus e influenciar também favoravelmente a opinião pública, em particular a americana, para a sua posição durante a II Guerra Sino-Japonesa. No entanto, a autora argumenta que «houve diferenças evidentes entre as suas políticas. Os chineses nunca ameaçaram fazer mal aos refugiados se estes recusassem cooperar. Pelo contrário, os japoneses deixaram claro que a sobrevivência dos refugiados dependia do que contribuíssem para o [seu] plano» (p. 10).

A tese de Gao, repetida em frases similares ao longo de todo o livro, é, todavia, um pouco vaga, uma vez que nem a política chinesa teve um único centro durante o conflito nem a japonesa parece ter sido tão simplisticamente maquiavélica como a autora por vezes a caracteriza. O que ressalta após a leitura da obra é que, não obstante as autoridades chinesas e japonesas terem formulado planos para os refugiados judeus unicamente para satisfazer interesses nacionalistas acabaram, porém, por ajudar à salvação de milhares de pessoas dos horrores do Holocausto.

 

Política(s) Chinesa(s)

O estudo de Gao Bei alicerça-se numa miríade de fontes primárias e secundárias, com destaque para as dos arquivos chineses (na República Popular da China e em Taiwan), japoneses, americanos e britânicos. A aptidão linguística da autora em chinês, japonês e inglês coloca-a numa posição privilegiada para analisar material diverso mas nem sempre a sua análise parece contemplar essa variedade.

No que respeita às fontes chinesas, Gao Bei centra-se nas provenientes do governo nacionalista de Chiang Kaishek que embora continuasse a representar a China internacionalmente não controlava a totalidade do território chinês no período em análise, incluindo Xangai.

Gao Bei dá maior ênfase às políticas do governo do Kuomintang (KMT) face aos refugiados judeus vindos da Europa, nomeadamente a planos distintos concebidos em articulação ou por proposta de líderes judeus. Qualquer deles, contudo, sem resultados práticos, para criar condições de refúgio na China aos judeus europeus.

Em 1939 Sun Ke (também conhecido como Sun Fo), o único filho do «pai da nação chinesa» Sun Yat-sen, então presidente do Yuan Legislativo, propôs um plano para abrigar refugiados europeus judeus «depauperados e sem casa» no Sudoeste da China. A pretensão era a de impressionar favoravelmente a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, onde se supunha que círculos políticos fossem fortemente influenciados por interesses financeiros judaicos. Um outro plano com vista à migração de judeus da Europa Central para o interior da China foi apresentado por Jakob Berglas, judeu alemão com negócios em Xangai também em 1939. Bei menciona ainda um plano formulado anteriormente por Maurice William, intelectual americano judeu, que terá influenciado Sun Yat-sen.

William e Albert Einstein integraram, também, uma instituição americana de ajuda à China, e formularam supostamente a ideia de «encontrar uma nova casa na China para judeus alemães» (p. 41) em 1934, esforços que William tentou reativar em 1939 em contactos com o embaixador chinês nos Estados Unidos, o reputado pensador Hu Shi. Para William, «os judeus alemães poderiam oferecer à China treino técnico e científico; experiência industrial, comercial e financeira; competências e capital», ao passo que «os judeus americanos eram capazes de providenciar ajuda à China na sua guerra com o Japão» (p. 44). No entanto, nenhum destes planos se concretizaria, em parte, segundo a autora, porque a Administração americana se distanciou em 1939 dos esforços para salvar judeus europeus e não apoiou financeiramente os planos que o governo nacionalista chinês não poderia financiar sozinho (p. 49). Outra das razões possíveis para o fracasso foi a posição ambígua da China face à Alemanha, com quem mantivera boas relações até 1938.

Um outro aspecto da política do kmt face aos judeus europeus analisado pela autora é a concessão de vistos para Xangai. Embora entrar lá não requeresse visto,

«sobreviventes […] recordaram mais tarde que lhe era exigido mostrar aos oficiais nazis provas do seu plano de partida antes de receberem permissão formal para deixar a Alemanha ou a Áustria. Os que eram incapazes de obter vistos estrangeiros de entrada para deixar os seus países arriscavam ser enviados para campos de concentração» (p. 50).

Gao cita o caso mais conhecido de He Fengshan, o cônsul-geral da China em Viena que, tal como o português Aristides de Sousa Mendes, foi postumamente distinguido como «justo entre as nações», para concluir, com bases em fontes oficiais do governo nacionalista chinês, que entre 1938 e 1940 diplomatas chineses na Europa emitiram vistos para refugiados que quisessem ir para a China. Não era apenas por iniciativa dos diplomatas mas também porque estes «seguiam escrupulosamente instruções do Ministério dos Negócios Estrangeiros» (p. 50). Importa notar, porém, que os vistos concedidos para Xangai não seriam depois controlados pelas autoridades do KMT, uma vez que a cidade estava ocupada pelos japoneses. A autora considera a contínua emissão de vistos «um veículo para obter de facto, ou mesmo de jure, o reconhecimento por parte dos países ocidentais da reivindicação [dos nacionalistas chineses] a este “território perdido”» (p. 55).

Por outro lado, Gao Bei ignora as manifestações antijudaicas que também existiram na China durante a guerra com o Japão. A historiadora Zhou Xun, numa obra que, aliás, Gao inclui na sua bibliografia, havia já dedicado um capítulo a este tema no seu livro sobre a história das percepções chinesas sobre os judeus. Zhou Xun centra-se no governo colaboracionista de Wang Jingwei e refere várias manifestações de anti-semitismo, nomeadamente pela Xinmin Hui (Sociedade Renovação Popular) cujas acções antijudaicas, embora mal sucedidas, «conseguiram influenciar o pensamento de alguns líderes e intelectuais chineses» mesmo que «não necessariamente aprovassem a agressão japonesa em solo chinês»2. Os judeus foram «representados como o “epítome do capitalismo e imperialismo ocidentais”, bem como “os fundadores do comunismo”», percepções que Zhou considera serem menos o resultado de uma política japonesa sob influência dos nazis e mais derivadas de noções de nacionalismo e pan-asianismo.

Zhou também evoca um exemplo curioso que Gao ignora, o da «primeira actividade antijudaica de larga escala em Xangai»3: o lançamento de um grande número de panfletos anti-semitas para o meio de uma multidão que assistia a um jogo de futebol entre a equipa judaica e a equipa portuguesa.

 

Política Japonesa

Quanto à política japonesa face aos refugiados judeus, Gao Bei divide-a em dois capítulos. O primeiro centra-se essencialmente no período entre Dezembro de 1937 e Dezembro de 1939; o segundo entre Janeiro de 1940 e Agosto de 1945. São fulcrais as figuras de Yasue Norihiro e Inuzuka Koreshige, «peritos em questões judaicas» do exército que promoveram a investigação sobre os judeus na China e incentivaram políticas que os atraíssem. Estas, defende a autora, não foram motivadas por preocupações humanitárias mas sim pelo desejo de usar capital e know-how judaicos para o desenvolvimento da China ocupada, nomeadamente a Manchúria que desde 1931 estava controlada pelo Japão sob a fachada de um estado independente, Manchukuo.

Já antes da ocupação japonesa a Manchúria era local de residência de judeus, designadamente russos. Harbin tivera «a maior comunidade judaica do Extremo Oriente» (p. 60) embora após a invasão japonesa e a escalada de raptos de judeus em troca de resgates tenha feito com que «quase 70 por cento deles tenham deixado a cidade» (p.61). O principal destino era Xangai. Aqui, a comunidade judaica não era uniforme, destacando-se os judeus bagdadi (de Bagdade, Iraque), de que faziam parte famílias proeminentes como os Sassoons ou os Kadoories, e os judeus asquenazitas (de origem europeia), menos abastados e influentes do que os primeiros. A estes vieram juntar-se milhares de refugiados europeus em fuga das perseguições do Holocausto, de que o estudo de Gao Bei se ocupa.

A primeira política oficial japonesa em relação aos judeus foi aceite em Dezembro de 1936. Traçada pelo coronel Yasue, defendia a estratégia de «abraçar os judeus» para garantir investimento americano em Manchukuo. Deste modo, o número de refugiados judeus em Xangai aumentou consideravelmente, tornando-se a sua subsistência um factor de preocupação para as autoridades locais.

O coronel Yasue e o capitão Inuzuka defendiam que «Tóquio não deveria expulsar os judeus, uma vez que o poderio económico judaico na China, em Xangai em particular, poderia definitivamente beneficiar o Japão» (p. 70). A autora é muito crítica na apreciação das acções dos dois «peritos em questões judaicas»: «A política japonesa baseava-se na ganância e desespero do exército do Kwantung em obter capitais internacionais; os judeus eram os alvos de exploração» (p. 74). Apesar dos objectivos interesseiros eventualmente subjacentes, o resultado foi a chegada a Xangai de mais de 20 mil refugiados europeus, cujo destino era Xangai. Ainda que longe de idílico, era preferível aos países de origem onde os judeus eram perseguidos.

As políticas de Yasue e Inuzuka seriam abandonadas e estes afastados em 1940, quando, após a assinatura do Pacto Tripartite entre a Alemanha, a Itália e o Japão, este último terá começado a acatar as críticas da primeira face ao acolhimento que dava aos judeus europeus. Assim, «mais de mil judeus polacos, que estavam temporariamente a procurar refúgio em Kobe» foram transportados para Xangai (p. 112). Os refugiados polacos haviam recebido vistos de Sugihara Chiune, o cônsul japonês em Kaunas, capital temporária da Lituânia de 1920 a 1939, que emitiu mais de um terço do total de vistos concedidos pelos cônsules japoneses na Europa entre Janeiro de 1940 e Março de 1941 (p. 112), uma decisão que Sugihara tomou «de acordo com o [seu] sentido de justiça humana, por amor da humanidade» (p. 116) aproveitando zonas cinzentas na política oficial de concessão de vistos, o que acabou por garantir a saída de mais de dois mil judeus polacos para o Japão. Sugihara seria também honrado como «justo entre as nações».

A política japonesa face aos judeus sofreu assim mudanças em 1942, e no início de 1943 tinha sido concretizada a ideia de uma zona segregada em Xangai para onde foram encaminhados os refugiados que tivessem chegado à cidade após 1937. Mais de 20 mil refugiados viveriam até ao final da guerra numa zona que é por vezes referida como o «gueto de Xangai». A autora constata, porém, tal como observara Marcia Ristaino no seu estudo das comunidades judaica e russa em Xangai durante a guerra4, que este gueto em nada se comparava aos europeus, como o de Varsóvia, havendo muito mais liberdade de movimento e actividade, apesar das duras condições de vida.

Embora Gao Bei se reporte à situação dos judeus na China até 1945, a maior parte do seu livro debruça-se sobre o período anterior a 1940. Para um estudo detalhado da experiência de refúgio em Xangai obras anteriormente publicadas fornecem mais dados, nomeadamente o supramencionado livro de Marcia Ristaino ou até o documentário com o mesmo título Port of Last Resort (1998).

 

Conclusão

Alicerçado em fontes de arquivo, nomeadamente chinesas e japonesas, a autora demonstra como a questão dos refugiados judeus foi vista com pragmatismo pelas autoridades nacionalistas chinesas e pelas autoridades japonesas e como, apesar de os objectivos principais dos dois lados (garantir o apoio dos Estados Unidos) terem fracassado, o resultado prático foi a sobrevivência de muitos judeus europeus que encontraram em território chinês um abrigo quando o mundo lhes virou as costas. A autora peca por ignorar as políticas dos colaboracionistas chineses e por não desenvolver, com detalhe com que fizera até então, as políticas chinesas e japonesas face aos judeus nos últimos anos do conflito. O não uso de fontes alemãs e alguma falta de crédito reconhecida a trabalhos historiográficos anteriores, já observada numa outra recensão a este livro5, são também de mencionar.

Shanghai Sanctuary é, no entanto, um contributo válido para a historiografia da II Guerra Mundial, traçando, através do caso dos refugiados judeus, um ponto de contacto entre o teatro de guerra europeu e o asiático.

 

Notas

1A pedido da autora o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2ZHOU Xun – Chinese Perceptions of the ‘Jews’ and Judaism: A History of the Youtai., Richmond: Curzon Press, 2001, p. 142.         [ Links ]

3Ibidem, p. 147.

4 RISTAINO, Marcia Reynders – Port of Last Resort. The Diaspora Communities of Shanghai. Stanford: Stanford University Press, 2001        [ Links ]

5GOLDSTEIN, Jonathan – «Shanghai Sanctuary: Chinese and Japanese policty toward European Jewish refugees during World War II». In The China Quarterly. Vol. 125, Setembro de 2013, pp. 789-791.         [ Links ]