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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.40 Lisboa dez. 2013

 

RECENSÃO

 

Para a História da integração europeia no século XX1

 

Pedro Lains

Investigador do ICS-UL e professor convidado da Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica Portuguesa. É licenciado e agregado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa, e doutorado em História pelo Instituto Universitário Europeu (Florença). Publicou recentemente História da Caixa Geral de Depósitos, 1876-2010 (3 vols., Imprensa de Ciências Sociais, 2002-2011); e História Económica de Portugal, 1143-2010 (com Leonor Freire Costa e Susana Munch Miranda, Esfera dos Livros, 2011).

 

José Medeiros Ferreira. Não Há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal)Dita da Integração Europeia. Lisboa, Edições 70, 2013, 164 páginas

 

Este livro é acima de tudo um livro erudito. É baseado em investigação, em leituras secundárias, mas é sobretudo uma obra que oferece uma lição que vem de um profundo conhecimento da matéria de que trata. A erudição também se manifesta na forma como é escrito, isto é, um forma direta, sem rodeios semânticos ou lógicos, e facilmente acessível a quem desconhece o assunto. Em suma, é a ponta de um icebergue de conhecimento e investigação. E trata de um grande tema, um dos mais importantes da atualidade, especialmente para esta parte do nosso mundo, aquele em que a história narrada pelo livro se desenrolou.

A erudição do livro é desde logo espelhada no título, que encerra um certo enigma, alguma propositada dificuldade de interpretação, sobre a qual os leitores são obrigados a refletir. Em primeiro lugar, «Não Há Mapa Cor-de-Rosa» significa a ausência de um plano por parte dos sucessivos governos portugueses. Quase como se o mote português do caminho da integração europeia fosse o resultado de um impulso, de uma espécie de «luso-europeísmo», para usar outra analogia histórica, e não de uma razão de Estado. A segunda parte do título é mais clara. Trata-se da História simultaneamente mal contada e nem sempre feliz de alguma coisa que tem passado por «integração europeia». Quanto a esta perspetiva, o livro vai longe no passado e é sólido na argumentação, mas revela algum pessimismo sobre o futuro.

 

As versões dos vencedores não chegam

E do que trata então esta obra? Trata da História com «H» grande da integração europeia com «i» pequeno. Dá-nos uma narrativa das sucessivas manobras diplomáticas europeias – ou intergovernamentais – na procura de entendimentos entre as nações europeias, assim como dos respetivos falhanços. Dá-nos também uma narrativa do plano de germanização da Europa, levado a cabo durante a II Guerra Mundial e que poderia ter sido seguido, caso o desfecho da guerra tivesse sido outro. Toda essa história é contada de forma coerente, seguida, em vários planos e mostra-nos como é impossível entender a história da integração política, económica e financeira da Europa sem olhar para, pelo menos, todo o século XX, sem olhar para os planos que não foram concretizados, para os reveses, assim como para os sucessos. Medeiros Ferreira é um historiador indisciplinado para quem não bastam as versões dos vencedores.

Esta perspetiva, se bem que já tenha sido acolhida em obras de outros autores, é particularmente importante no contexto português. E podemos dar dois exemplos que refletem bem essa importância. Salazar é muitas vezes criticado na historiografia nacional mais apressada por ter escolhido o Império em detrimento da Europa – o que aliás é falso do ponto de vista económico, como sabemos. Em muitos livros de história política contemporânea portuguesa mais antiga está subjacente a ideia de que, se não fosse Salazar, Portugal teria integrado o grupo fundador da CEE, em 1957 ou mesmo em 1951. Este livro, ou melhor, a história que este livro tão bem narra, é a contraprova disso mesmo.

Um outro exemplo da necessidade da perspetiva alargada sobre a integração europeia é a interpretação da data da adesão de Portugal à CEE e da eventual demora dessa adesão. Essa data é amiúde interpretada na bibliografia especializada sem ter em conta o contexto das Comunidades Europeias e, em particular, as negociações do Ato Único Europeu, assinado em 1985, que representou um novo fôlego para as Comunidades. Essa imprescindível associação dos dois eventos, o alargamento e o Ato Único, é para mim uma prova de fogo da profundidade das análises da história da integração europeia. E é sempre pelos mesmos motivos: não conseguimos perceber a política nacional da segunda metade do século xx, sem perceber a política europeia, nem perceber a política europeia sem perceber as políticas nacionais.

É preciso prestar justiça ao livro pelo que se aprende com a sua leitura. E para isso, deixem-me passar por cima da revisitação que o autor faz dos fundamentos da integração europeia que residem no período de entre as duas guerras mundiais, quando se falou, embora apenas a partir de Locarno ou de Viena, e não de Berlim ou Paris, do pan-europeísmo.

Falemos em primeiro lugar de Portugal e da síntese que o autor faz das raízes da busca de intimidade política entre esse país e a integração europeia. Que é, simplesmente, esta: «grande parte da política externa [portuguesa, nos séculos XIX e XX] teve uma natureza material e financeira, e isso por um motivo muito preciso: a taxa de poupança interna sempre foi insuficiente para dar respostas aos desafios do desenvolvimento material da sociedade portuguesa». E isso aconteceu em 1902 (ou 1892), durante a I Guerra Mundial, durante a paz que se seguiu, e durante os consulados de Costa Cabral, Fontes ou do seu sucessor partidário Hintze Ribeiro (pp. 113-114). Assim como nos anos a seguir ao 25 de abril, de que o autor realça o «grande empréstimo» negociado em Washington, em 1977.

Esta interpretação tem um corolário relevante, que ajuda a ver as vantagens de olhar para os problemas internos através de um prisma externo, neste caso, o da integração europeia, no seu sentido mais lato. É que, para encurtar razões, a adesão de Portugal ao Mecanismo das Taxas de Câmbio, em 1992, no caminho para o euro, da qual pouco se escreveu até hoje, como o autor recorda, não teve em consideração os perigos desse défice da poupança interna que marca a nossa história económica como, aliás, a de outros países integrados em regiões mais desenvolvidas e ricas em tecnologia e capital para exportação. O ano de 1992 foi, assim, um momento inconsciente da vida política portuguesa e Medeiros Ferreira explica porquê.

 

Os desígnios Europeus da Alemanha Nazi

A segunda área em que este livro se revela mais importante é a da narrativa do plano alemão para a Europa da II Guerra Mundial. Trata-se de um plano complexo, não só por abranger quase tudo o que mexia sobre o III Reich, como porque nunca foi desenhado de forma clara, porventura propositadamente. Todavia, tanto quanto sei de outras parcas leituras que às vezes faço, ele está descrito no livro nos pormenores mais importantes. O autor fala-nos, por exemplo, da forma como Hitler equilibrava e previa continuar a equilibrar os desequilíbrios decorrentes das trocas internacionais com a Alemanha, a saber, o recurso aos impostos dos territórios ocupados, assim como aos tesouros dos respetivos bancos centrais. A evocação do plano nazi para a integração europeia é assustadora e devemos fazer com muito cuidado pontes para o presente. Todavia, a verdade é que, do ponto de vista económico, há muitas semelhanças entre esse passado que não se veio felizmente a concretizar e o presente que seguramente também mudará de forma a torna-lo muito diferente.

Confesso que não vejo no livro muitos motivos de esperança e é aí talvez que posso evocar o meu maior desacordo com o pano de fundo que o livro apresenta e que se espelha claramente no que o título nos diz e que referi no início desta apresentação. E esse meu desacordo vem também de uma leitura da história da integração europeia, da leitura que eu tenho procurado fazer e que tem dois pilares: o primeiro é que muito do que se tem procurado fazer com as instituições da integração não é apenas restabelecer eixos entre países dominantes, ou satisfazer ambições nacionais ou inclusivamente governamentais. Muito do que se procura fazer, parece-me, é restabelecer a economia europeia e internacional do século XIX, da idade de ouro da economia internacional entre 1870 e 1914, com o padrão-ouro à cabeça (e daí a obsessão com o euro). O segundo pilar refere-se ao facto de a história da Integração Europeia, desta vez com maiúsculas, desde 1945, 1947, 1951 ou 1957, conhecer impasses que foram resolvidos através daquela que é a maior arma do povo, isto é, nossa, contra os impérios e a estupidez, a democracia. Exemplos disso são o facto de os bloqueios à maior integração europeia, impostos por De Gaulle nos anos 1960 ou Thatcher na primeira metade dos anos 1980, terem sido ultrapassados, num caso com eleições e mudança de governo, no outro não.

Trata-se de um livro importante num momento importante. Podemos ir mais longe na procura de soluções sobre o presente conhecendo melhor o passado. E esse passado mostra-nos que há soluções inesperadas, algumas positivas para Portugal, e que é preciso saber trabalhar com elas. Portugal precisa da integração europeia, assim como esta precisa de todos.

Finalmente, há um aspeto importante que está fora desta obra e que a valoriza enormemente. José Medeiros Ferreira foi um ator nos negócios estrangeiros deste país, um ator que compreendeu cedo a importância da CEE, a inevitabilidade da CEE, para Portugal. Para além de óbvias qualidades pessoais, valeu-lhe porventura o facto de vir de uma das regiões mais cultas e historicamente mais abertas do país, os Açores, e de ter vivido anos formativos importantes na «Europa». Mas o livro não depende desse lado, não é personalizado e isso dá-lhe valor. É, repito, um livro erudito.

 

Notas

1Texto baseado no lançamento do livro que decorreu na Livraria Almedina em Lisboa, no dia 5 de novembro de 2013.