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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.40 Lisboa dez. 2013

 

RECENSÃO

 

José Medeiros Ferreira – a metáfora do Longo Curso

 

Mário Mesquita

Professor na Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa e na Universidade Lusófona. Licenciado em Comunicação Social pela Faculdade de Ciências Económicas, Sociais e Políticas da Universidade Católica de Lovaina. Membro do Conselho Executivo da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da República na década de 1970 e jornalista.

 

Pedro Aires de Oliveira e Maria Inácia Rezola (orgs.) O Longo Curso. Estudos em homenagem a José Medeiros Ferreira. Lisboa, tinta da China, 2011, 696 páginas

 

O livro O Longo Curso contém trinta e oito artigos no âmbito da história contemporânea e da ciência política. Na melhor tradição académica, é um livro de homenagem à vida e à obra de José Medeiros Ferreira, historiador e professor da Universidade Nova de Lisboa, que se retirou recentemente da atividade docente.

Atendendo à enorme diversidade dos estudos compilados neste volume, decidi centrar-me naqueles que focam diretamente a figura e a obra de Medeiros Ferreira. Não o faço apenas por razões pragmáticas, embora estas, por si só, fossem justificação suficiente dessa escolha. Mas – como escreveu Hannah Arendt, na sua laudatio de Karl Jaspers – se a obra em causa «não é apenas académica, se também resulta do “mérito na vida”, há um ato e uma voz vivos que a acompanham; a própria pessoa surge juntamente com ela»1. Por isso, optei por privilegiar a ligação entre a obra criada e o percurso de vida.

Por uma questão de método, afigura-se pertinente distinguir quatro tópicos na biografia de José Medeiros Ferreira: o estudante universitário, dirigente associativo e oposicionista ao salazarismo; o exilado político na Suíça, estudante e, depois, assistente na Universidade de Genebra; o dirigente partidário, deputado e governante após o 25 de abril de 1974; o professor e historiador da Universidade Nova de Lisboa, a partir de 1981.

Medeiros Ferreira efetuou os estudos secundários em Ponta Delgada, na atual Escola Secundária Antero de Quental. Conforme refere Pedro Aires de Oliveira, em «José Medeiros Ferreira um percurso cívico e académico» ganhou o gosto pela história, graças à influência de um professor, João Bernardo de Oliveira Rodrigues, a quem dedicou o oitavo volume da História de Portugal, coordenada por José Mattoso, que é da sua autoria. A sua ligação ao ambiente estudantil de Ponta Delgada perdurou quando já se encontrava na Universidade de Lisboa. O seu exemplo de «desobediência cívica» deixou marca na ilha de São Miguel, ajudando – escreveu Eduardo Paz Ferreira, hoje professor da Faculdade de Direito de Lisboa – «a abrir horizontes, culturais e políticos a muitos estudantes do Liceu Antero de Quental», entre os quais Jaime Gama, Paulo Jorge Melo, Francisco Nunes, José Jorge Magalhães Rodrigues, José Manuel Toste Rego, Margarida e Ana Maria Soares Ferreira, o próprio Eduardo Paz Ferreira e o autor deste texto.

O percurso cívico de José Medeiros Ferreira iniciou-se em Lisboa, como dirigente associativo, nas lutas estudantis contra a ditadura salazarista (1961-1965), à semelhança de figuras como Jorge Sampaio, Eurico de Figueiredo, Manuel de Lucena, Vítor Wengorovius, Mário Sottomayor Cardia e tantos outros, tendo sido expulso de todas as universidades do País, pelo período de três anos, devido à sua atividade contra o regime ditatorial (1965). «A crise estudantil marcou-me decisivamente – afirmou, num depoimento autobiográfico. Toda a educação para a responsabilidade recebida em casa [referindo-se à sua família] tomou um sentido coletivo e cívico».

O seu testemunho acerca da Faculdade de Letras de Lisboa, onde cursou Filosofia, nos anos 1960, é desassombrado. Socorro-me, novamente, do estudo de Pedro Aires de Oliveira: «A experiência foi simplesmente dececionante – “um deserto” é a expressão que lhe ocorre para definir o tipo de ensino então ministrado em Letras», à exceção de professores como o Padre Manuel Antunes, Osvaldo Market e Tiago de Oliveira.

Quando desempenhava o cargo de secretário-geral da Reunião Inter-Associações (RIA), organismo coordenador do movimento estudantil, foi detido, sem culpa formada, pela polícia política (1962). Cumpriu três meses de prisão no Aljube, tendo sido submetido à tortura do sono e ao isolamento celular. Os seus companheiros de cela, na cadeia do Aljube, foram o pintor Nikias Skapinakis e o nacionalista angolano, Joaquim Pinto de Andrade.

Prolongamento lógico da sua atividade como líder dos movimentos estudantis, José Medeiros Ferreira foi candidato a deputado nas listas da Oposição Democrática em 1965, ao lado de personalidades como Mário Soares e Salgado Zenha, em defesa das liberdades públicas e dos direitos humanos, do fim da guerra em África e da autodeterminação das colónias.

O papel de líder estudantil marcou de tal maneira a sua vida que – tendo sido, anos depois, distinguido pelo Estado português com algumas das mais importantes condecorações – costuma dizer que a distinção a que confere maior apreço sentimental lhe foi atribuída pelos seus colegas da Faculdade de Letras de Lisboa, ao aprovarem um «voto de louvor, agradecimento e confiança», quando, em plena luta académica, foi atingido pela repressão do Governo de Salazar.

Por discordar da guerra colonial, que prosseguia nas três frentes africanas da Guiné, Angola e Moçambique, rumou à Suíça (1968-1974). Ao contrário de outros colegas e amigos seus, fez questão em solicitar que lhe fosse concedido pela Suíça o estatuto de exilado político. O seu pedido foi deferido pelo Estado helvético, o que tinha efeitos práticos relacionados não só com a situação pessoal do requerente, mas também com o reconhecimento suíço da natureza ditatorial do Portugal salazarista. No plano político, integra o chamado «grupo de Genebra», com Eurico de Figueiredo, António Barreto, Carlos Almeida, Ana Benavente e Manuel Areias. Na Suíça casou com a sua companheira de geração universitária e de luta democrática, Maria Emília Brederode Santos, tendo nascido em Genebra, pouco antes do 25 de abril, o seu filho Miguel.

Alguns dos membros deste grupo de universitários editaram a revista Polémica, a partir de 1970, em que também colaborava Manuel de Lucena, exilado em Paris. A revista circulava clandestinamente em Portugal e nos meios da emigração política de Londres, Bruxelas, Paris, Argel e outras cidades de acolhimento. O investigador Vítor Pereira publica, em O Longo Curso, um estudo sobre «O exílio português na Suíça (1962-74)», considerando que a revista «teve uma certa influência» quer em Portugal, quer entre os refugiados políticos. O investigador refere, além disso, a lápide de homenagem aos exilados portugueses em Genebra nos anos 1960 e 1970 (p. 305), afixada na fachada do (então) café Landolt, onde conviveram, ao longo do século XX, refugiados políticos provenientes de diferentes países, entre os quais, Lenine – honni soit qui mal y pense.

Em comunicação enviada da Suíça ao III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro, em 1973, Medeiros Ferreira apontava como metas a democratização, a descolonização e o desenvolvimento que vieram a transformar-se nos grandes tópicos do Movimento das Forças Armadas (1974).

A relevância histórica – no duplo sentido de análise do contexto e de pensamento histórico com sentido prospetivo – desta comunicação enviada da Suíça ao Congresso de Aveiro justifica que lhe seja exclusivamente dedicado pelo historiador Luís Farinha o estudo intitulado «Medeiros Ferreira e o III Congresso da Oposição Democrática (1973): teses com futuro».

Luís Farinha considera que a comunicação de 1973 ao Congresso de Aveiro, no quadro de um país «adormecido e descrente, sobre a hipótese de o Estado Novo ser derrubado por militares», foi, «a este título, uma exceção e uma premonição notável do futuro que a Revolução de abril veio revelar».

O estudo de Luís Farinha sobre a tese de Aveiro descreve-a como uma análise institucional do papel das Forças Armadas portuguesas, perspetiva contrastante com a da maior parte das correntes oposicionistas. Se «instrumentalmente as Forças Armadas dependiam de um poder colonialista e autoritário» – sintetiza Luís Farinha – «estruturalmente, tudo parecia diferente» na medida em que constituíam, «na análise de Medeiros Ferreira, talvez o corpo nacional mais interclassista e mais representativo da nação».

Esta interpretação traduz essencialmente – permito-me acrescentar – o pendor institucionalista das análises históricas de Medeiros Ferreira, sem descurar os aspetos económicos e sociais, conforme se veio a confirmar na sua tese de doutoramento dedicada precisamente às Forças Armadas Portuguesas, a partir de 1910.

O regresso a Portugal registou-se em maio de 1974, pouco depois da Revolução de 25 de abril. Exerceu os cargos de ministro dos Negócios Estrangeiros (1976-1977), secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros (1975-1976), deputado à Assembleia Constituinte, à Assembleia da República (em várias legislaturas) e ao Parlamento Europeu.

Governante na época fundadora da democracia portuguesa, foi responsável governamental pela preparação diplomática do pedido de adesão de Portugal à CEE (março de 1977), sendo Mário Soares primeiro-ministro. Além disso, impulsionou a entrada da República Portuguesa no Conselho da Europa, em 1976.

Demasiado autónomo para se conformar à disciplina partidária, abandonou o PS em setembro de 1978, por divergências com Mário Soares relacionadas com a orientação que procurava imprimir à política externa. Pelo meio ficaram duas tentativas de organizar movimentos ou partidos-charneira: o grupo reunido em volta do Manifesto Reformador (liderado por Medeiros Ferreira e António Barreto) e o PRD (tendo como referência Ramalho Eanes).

Em meados dos anos 1990, regressaria ao PS, então sob a liderança de Jorge Sampaio. Assumiu a condição de deputado à Assembleia da República pelo círculo dos Açores, na era de António Guterres, tendo participado na campanha eleitoral que guindou Carlos César a presidente do Governo Regional dos Açores. Era uma espécie de regresso às origens, assinalado pela sua influente participação na lei de finanças das regiões autónomas (1998), em duas revisões constitucionais (1997 e 2004), em matéria relativa aos Açores e à Madeira2. A propósito do percurso político de José Medeiros Ferreira, o professor emérito da Universidade do Texas (em Austin), Lawrence S. Graham, autor de assinalável bibliografia sobre a transição para a democracia em Portugal, escreve:

«Embora haja muitos atores políticos envolvidos nestes acontecimentos, a vida e o empenho de José Medeiros Ferreira no seu curso constituem uma parte significativa do que se passou e ajudou outros, especialmente os estrangeiros, a compreender a realidade portuguesa de uma forma que por vezes escapa a alguma da literatura erudita mais recente, desde logo por emprestar um rosto humano ao complexo período de transição política que Portugal viveu.»

No que se refere ao percurso académico, José Medeiros Ferreira licenciou-se em Ciências Sociais pela Universidade de Genebra (1972), onde foi assistente na Faculdade de Ciências Económicas e Sociais (1972-1974).

Doutorou-se em História pela Universidade Nova de Lisboa (1991). Enquanto historiador, dedicou-Se à época contemporânea e especializou-se, simultaneamente, nas problemáticas da política internacional. É autor, entre outras obras, de Ensaio Histórico sobre a Revolução de 25 de Abril – O Período Pré-Constitucional (1983); Portugal na Conferência de Paz (1992); O Comportamento Político dos Militares; Forças Armadas e Regimes Políticos (Lisboa, 1992); Portugal em Transe (vol. viii da História de Portugal, orientada por José Mattoso, 1995) e Cinco Regimes na Política Internacional (2006).

Pedro Aires de Oliveira sintetiza desta forma o seu contributo enquanto professor e investigador: «Os grandes eixos da sua pesquisa e reflexão analítica organizam-se em torno de temas como os militares e a política, a história da política externa, os estudos sobre segurança e estratégia, e a análise prospetiva.»

Tal como afirma Aires de Oliveira a propósito de uma das obras de Medeiros Ferreira, este procura «um equilíbrio entre o narrativo e o analítico», porque, como diria Paul Ricoeur, não se pode diluir o conhecimento histórico na dimensão sincrónica de outras ciências sociais (a sociologia, a demografia, a economia…), o que não significa abdicar do rigor científico na investigação. Julgo que não corro demasiado risco ao sustentar que tal poderia ser o programa teórico de José Medeiros Ferreira.

Nuno Severiano Teixeira, que participou neste volume com um «Ensaio histórico sobre a política externa portuguesa», realça o papel pioneiro desempenhado por José Medeiros Ferreira no estudo da política internacional e da política externa portuguesa. Reportando-se aos anos de 1982-1983, refere que nesta matéria há um antes e um depois Medeiros Ferreira, porque, quando criou na Universidade Nova de Lisboa os primeiros seminários sobre política externa portuguesa, a situação era confrangedora:

«Nesse tempo – cito Severiano Teixeira – a história das relações internacionais não tinha direito de cidade na historiografia portuguesa, dominada pela história económica e social e, a que existia, era pobre e monopólio de um pensamento conservador e de direita. […] Confesso que foi um descanso quando encontrei em Portugal um professor que pensava as relações internacionais como uma ciência social e, sobretudo, que as pensava à esquerda» (pp. 669-670).

Em sentido complementar, David Castaño sublinha que Medeiros Ferreira não só «fez várias incursões no estudo da história das relações internacionais», mas acentuou a «importância do relacionamento entre as dinâmicas internas e externas no estudo da história», recorrendo «à pesquisa de fontes estrangeiras mesmo quando o seu objeto de estudo era a história nacional». O autor exemplifica com o uso de «documentação norte-americana, britânica e francesa para descrever as relações entre os militares e o poder político ao longo do século xx português» (p. 243).

Em O Longo Curso surge também pela pena de António Reis («Carta a um amigo») a questão de saber se José Medeiros Ferreira tem razão ao omitir do seu curriculum universitário a dimensão política da sua atividade. Fernando Rosas, na abertura do estudo «A Nova República (1919-26)», retoma a questão: Medeiros Ferreira «demonstrou com o seu percurso, que não há, nem deve haver, compartimentos estanques entre o direito e o dever da intervenção cívica e política de um professor universitário e uma vida científica e pedagógica construída com rigor, qualidade e dedicação».

Ao ler estas passagens, lembrei-me da prova de doutoramento de José Medeiros Ferreira, decorrida num anfiteatro da Universidade Nova de Lisboa, no início dos anos 1990. O orientador da tese, Oliveira Marques, depois de a ter percorrido, capítulo a capítulo, distinguindo os aspetos que tinha por mais inovadores, criticou, com a sua voz tonitruante, a circunstância de estar ausente do curriculum apresentado pelo candidato a menção à sua atividade de deputado constituinte, secretário de Estado e ministro dos Negócios Estrangeiros e outros dados relativos à sua intervenção política, até porque a democracia portuguesa – acentuava Oliveira Marques – só era possível porque Medeiros Ferreira, entre outros oposicionistas à ditadura e construtores da democracia, haviam privilegiado a atividade cívica e a participação política. Medeiros Ferreira respondeu sucintamente que a omissão se explicava porque gostava de cultivar uma certa alteridade entre o universitário e o político. Para voltarmos às origens, isto é, ao título, O Longo Curso é uma magnífica designação porque remete o insular para a metáfora marítima, lembra o comandante do navio a sulcar mares alterosos. O Longo Curso desde o estudante rebelde e, por isso, expulso das universidades do Estado Novo, ao professor consagrado. O Longo Curso desde o prisioneiro no Aljube e exilado político ao governante que exerceu os cargos com ideias próprias e lutou para aplica-las. O Longo Curso porque vem do passado mas não está fechado ao que o futuro possa trazer. E se mais não digo acerca deste percurso, que tive o privilégio de acompanhar – às vezes de perto, noutras ocasiões com maior distância – é porque, louvando-me no exemplo do próprio José Medeiros Ferreira, gosto de cultivar uma certa alteridade entre o biógrafo ocasional e o amigo de longa data.

 

NOTAS

1ARENDT, Hannah – Homens em Tempos Sombrios. Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p. 89        [ Links ]

2FERREIRA, José Medeiros – Com os Açores no Dobrar do Século. Lisboa: Edições Salamandra, 1999        [ Links ]