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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.40 Lisboa dez. 2013

 

Diferenciadores estratégicos da Guerra Aérea Remota1

Remote Air Warfare´s strategic differentiators

 

João Paulo Nunes Vicente

Tenente-coronel. Piloto-aviador. Doutor em Relações Internacionais pela FCSH-UNL (2013) e mestre em Military Operational Art and Science, pela Air University, Alabama, EUA (2009). Investigador do Centro de Investigação de Segurança e Defesa do Instituto de Estudos Superiores Militares (CISDI).

 

RESUMO

A propagação global da modalidade de Guerra Aérea Remota (GAR) exprime a emergência da guerra unilateral sem risco, assética para a ofensiva, letal para o inimigo e com reduzidas baixas colaterais – esta é a promessa e a realidade do emprego de drones. Aceitando a objetividade das vantagens operacionais da GAR, o artigo visa inquirir sobre que diferenciadores estratégicos concorrem para a preeminência futura da GAR. Sustentamos que a tendência de preeminência crescente da gar tem efeitos ao nível operacional, com impacto na conduta da guerra; efeitos genéticos refletidos na alteração das características e capacidades do Poder Aéreo; e efeitos políticos com impacto no processo de decisão sobre o uso da força.

Palavras-chave: Guerra Aérea Remota, execuções seletivas, drones, Unmanned Aircraft Systems

 

ABSTRACT

The global spread of Remote Air Warfare expresses the emergence of a riskless unilateral war, aseptic for the offensive, lethal to the enemy and with reduced collateral damage. This is the promise and the reality of employment of drones. Accepting the objetive operational advantages of Remote Air Warfare, this articles aims to determine which strategic differentiators contribute to its future preeminence. We argue that the growing preeminence of Remote Air Warfare will have effects at the operational level, with impact on the conduct of war; genetic effects reflected in the change in the characteristics and capabilities of airpower, and political effects which impact the decision making process about the use of force.

Keywords: Remote Air Warfare, Targeted Killings, Drones, Unmanned Aircraft Systems

 

Introdução

Em menos de uma década, os sistemas aéreos não tripulados (Unmanned Aircraft Systems – UAS) militares passaram de dezenas de exemplares para milhares de sistemas empregues por todos os ramos das Forças Armadas, incluindo mesmo organizações civis. A propagação global da modalidade de Guerra Aérea Remota (GAR) é revelada na atualidade pelo emprego de UAS americanos em combate, de forma simultânea e discreta, em seis teatros de operações, exprimindo a emergência da guerra unilateral sem risco, assética para a ofensiva, letal para o inimigo e com reduzidas baixas colaterais. Esta é a promessa e a realidade do emprego de UAS em que o novo interface da guerra aérea é uma imagem de alta definição, num monitor de computador, algures num bunker com ar condicionado, a milhares de quilómetros de distância do impacto da bomba.

Aceitando a objetividade das vantagens operacionais da GAR, pretendemos inquirir neste ensaio sobre que diferenciadores estratégicos concorrem para a preeminência futura da GAR, descortinando possíveis implicações para as relações internacionais.

Ao procurarmos respostas para estas dúvidas, sustentamos que a tendência de preeminência crescente da GAR tem efeitos ao nível operacional, com impacto na conduta da Guerra; efeitos genéticos refletidos na alteração das características e capacidades do Poder Aéreo; e efeitos políticos com impacto no processo de decisão sobre o uso da força. Para procurarmos apurar a natureza da problemática focaremos a análise, necessariamente breve, nas dimensões políticas, legais e no relacionamento do indivíduo e da sociedade com a Guerra.

 

A sedução política pela guerra aérea remota

O instrumento militar existe para impor a vontade de um regime sobre outro, no sentido de coagir o adversário a mudar a sua opinião, através de um espetro de opções que se estende desde o apoio humanitário até ao emprego de força letal ofensiva.

A capacidade de os militares encontrarem e destruírem coisas à distância nunca deixou de admirar os políticos americanos2. A tendência política americana de recorrer a contingentes militares limitados, sempre que confrontada com desafios que ameacem os interesses nacionais, está a ser levada aos limites com o recurso crescente à GAR. A isso não é alheio o facto de estes sistemas serem uma opção de relativo baixo custo, sempre disponível e com eficácia operacional elevada. Até porque, nos momentos que precedem a decisão política de ir para a Guerra, deparamo-nos com dois fatores desmotivadores essenciais: os interesses em jogo e o custo do esforço despendido, expresso em «sangue» e «tesouro». Um desses fatores, limitativos duma política militar agressiva, tem a ver com o risco para as próprias forças. Ou seja, a ênfase das populações e políticos ocidentais em encontrarem formas relativamente seguras de empregar a força letal, como a artilharia e o bombardeamento aéreo, leva a crer que valorizam mais as baixas militares amigas do que as baixas causadas entre a população civil adversária3.

Nesse sentido, o Predator e o Reaper são para a Administração Obama uma evolução tecnológica ao nível do que os mísseis de cruzeiro foram para o Presidente Clinton na década de 90 do século passado: uma forma de exercer uma política externa musculada, mas sem os custos inerentes ao emprego de forças terrestres. Esta ambição política é um dos catalisadores para a preeminência futura dos UAS e acima de tudo para impulsionar o desenvolvimento de sistemas mais capazes, nomeadamente em termos de alcance, persistência e autonomia. A atualidade da preferência política pelo emprego de UAS pode ser verificada na prática, constatando que em finais de 2011 os Estados Unidos da América (EUA) empregavam drones de ataque, de forma simultânea e contínua, em seis teatros distintos4, para além de conduzirem missões de vigilância em diversos países, incluindo a nível doméstico. Neste contexto, a operação em ambientes aéreos permissivos, em que a ameaça para os UAS é mínima, com apoio tácito ou explícito dos governos locais, permite maximizar a capacidade de persistência na recolha de intelligence e eventual ataque a alvos emergentes. Considerando a importância que a informação pode ter, enquanto poder, no âmbito das relações internacionais, facilmente se antecipa o impacto de uma capacidade persistente de vigilância na prevenção e combate de ameaças à segurança.

Como instrumentos de diplomacia coerciva, isto é, no âmbito da dissuasão e compulsão, o emprego de UAS de combate, ao reduzir os custos potenciais da ameaça e uso da força, pode ter implicações substanciais5. Em particular nas situações de maior assimetria entre os atores em disputa, e considerando que os custos humanos se afiguram praticamente nulos, a credibilidade de tais ameaças sairá reforçada, uma vez que o uso da força ocorrerá com maior facilidade e sem o demorado escrutínio político e público associado ao emprego de meios tradicionais. Da mesma forma, será de esperar que os estados possuidores de UAS de combate se tornem mais audaciosos e recorram mais frequentemente à GAR, de forma preventiva e como instrumento primordial de resolução de conflitos. O emprego de UAS traduz-se numa menor footprint militar que pode ser politicamente atrativa. O conceito de operação remota e as características associadas aos UAS para executarem ataques de longo alcance, permitem uma redução da necessidade de bases avançadas para a projeção de poder. Sem a necessidade deste requisito estratégico, reduz-se também a interferência internacional e a obrigação de reunir consensos alargados e mesmo coligações que apoiem o uso da força.

A aventura americana no Iraque e Afeganistão afastou o apetite de invadir regiões tribais no Paquistão. No entanto, a necessidade de substituir a opção convencional por uma solução política e publicamente mais aceitável, catapultou os UAS para um patamar de requisito operacional urgente. As «guerras clandestinas», porque não declaradas e empreendidas fora dos teatros de operações ativos, desenrolam-se sob a forma de «execuções seletivas» de alvos terroristas, efetuadas por drones e forças especiais em locais remotos do Paquistão, Iémen ou Somália. Desde 2002 foram efetuados, apenas nestes teatros, mais de quatro centenas de ataques, fazendo emergir o estatuto primordial desta modalidade na estratégia americana de GAR.6

Na campanha contraterrorista americana, o objetivo não será compelir a Al-Qaeda a parar as suas atividades terroristas, mas sim reduzir a sua capacidade efetiva para concretizar tais ameaças. Na perspetiva da Administração, a contabilização de insurgentes mortos e o constrangimento psicológico imposto aos seus contactos e movimentos demonstra a eficácia de tais ações, na medida em que a aniquilação sucessiva dos dirigentes terroristas dificulta a ascensão de elementos experientes e, como tal, diminui a ameaça da Al-Qaeda em concretizar ações terroristas de grande escala7. Neste sentido, a organização terrorista está severamente afetada após uma década de «execuções seletivas», na sua esmagadora maioria através de bombardeamento aéreo remoto.

Estas visões otimistas encaram o uso de UAS como a forma mais eficaz e precisa de empregar a força militar contra insurgentes. Todavia, a flexibilidade e adaptabilidade das redes terroristas torna difícil o objetivo de disrupção ao nível tático. Para além disso, os novos dirigentes tenderão a mostrar-se mais radicais, tanto no discurso como na execução de ações terroristas. De igual modo, as baixas civis causadas contribuem para uma alteração da lealdade da população no sentido de maior apoio aos insurgentes. Muitos questionam a eficácia de tal campanha uma vez que tais grupos não possuem objetivos políticos limitados, e como tal não são passíveis de ser dissuadidos ou compelidos8. Assim, até que se consiga enfrentar a ideologia da Al-Qaeda, assim como o apoio estatal que recebe e a sua capacidade de explorar espaços desgovernados, não será expectável a derrota desta ameaça.

A história dos combates irregulares pode questionar esta aproximação minimalista de uso da força com recurso a UAS, mísseis de cruzeiro, forças especiais e um reduzido quantitativo militar no terreno. Para além disso, a inexistência de uma face humana na GAR impede o contacto direto com as populações e mina os esforços de reconstrução. Independentemente de se conseguir estabelecer uma relação direta de causa-efeito, é possível antecipar uma erosão da credibilidade americana na região, que gradualmente se vai expandindo ao nível mundial.

No que concerne à utilidade estratégica da GAR em coagir estados a alterarem o seu comportamento, ainda estaremos longe de poder avaliar com precisão essa opção. Tal como o poder aéreo na sua aplicação mais alargada ainda não garante por si só o sucesso, dificilmente o recurso à GAR, nos moldes atuais, constituirá alternativa eficaz ao uso de outros instrumentos de poder. No entanto, pelos benefícios operacionais e políticos apontados, os UAS constituirão uma capacidade essencial para aumentar a consciência situacional do espaço de batalha, ao mesmo tempo que possibilitam a aplicação letal da força de forma discreta e precisa. Esta ubiquidade e persistência poderão, em si mesmas, constituir fatores de dissuasão a possíveis agressores.

Devido à relativa infância dos UAS, por ora, apenas os EUA dispõem de capacidade para sustentar tais campanhas com impacto global. Em breve, com a proliferação global das frotas de UAS, maior será a probabilidade destas ações militares se replicarem. Desde 2005, o número de países que adquiriu UAS praticamente duplicou, totalizando 76 em 2012, enquanto o número de produtores dos mais de 900 tipos de UAS existentes ultrapassa os 50 países9. O principal exportador da tecnologia de drones é Israel, tendo já disseminado sistemas avançados a mais de uma dúzia de países, ao mesmo tempo que deu assistência a outros no desenvolvimento de capacidade própria, satisfazendo também a tendência crescente de leasing de serviços nos teatros de operações. Por seu lado, os EUA exportaram UAS sofisticados para seis países, alguns dos quais na versão mais letal, encontrando neste nicho de mercado uma atrativa fonte de receitas para a sua indústria de defesa. O futuro parece efetivamente promissor para as nações que até aqui não dispunham de recursos suficientes para manter um portfolio de capacidades aéreas ofensivas. Isto implicará uma alteração das dinâmicas de poder regional, permitindo a expansão da capacidade de nações mais pequenas, mas ricas.

Ao tentarmos sintetizar de que forma é que a natureza do debate político se altera com o recurso crescente à GAR, constatamos que o advento dos UAS pode tornar o processo de decisão política mais facilitado no sentido de usar a força, uma vez que estes oferecem a possibilidade de empregar capacidades militares num conflito sem necessidade de construir um amplo consenso político e público. Neste sentido, os UAS fornecem aos políticos um aumento de controlo que se estende a três níveis10: o controlo da oportunidade e ritmo das operações na medida em que minimizam as interferências externas; o controlo sobre o debate político referente ao uso da força; e por fim, a perceção do controlo preciso desde o nível estratégico até ao emprego tático das forças, instigando uma maior interferência em todos os detalhes da condução da guerra.

Assim, a guerra torna-se uma solução política, ainda mais proeminente, porque menos exigente, facilmente justificável e aceitável. Isto é ainda mais verdade para a opção de uso exclusivo da GAR. Ao limitarem as baixas e eliminarem a possibilidade de prisioneiros de guerra, os UAS permitem que as missões possam ser planeadas e executadas de forma mais discreta e em áreas remotas, maximizando a surpresa operacional dos ataques, sem o ónus da exploração mediática prévia. Para além disso, a retirada progressiva dos teatros de operações atuais e a produção crescente de UAS, disponibilizarão novos recursos que podem ser afetados a outras contingências, refletindo uma preocupação associada à proliferação de sistemas de armas: quantos mais uas estiverem disponíveis, maior será a tendência para os usar.

 

Legalidade da modalidade de «Execuções Seletivas»11

O uso de drones funciona como um antídoto encontrado para um desequilíbrio legal existente na conflitualidade irregular. Enquanto uma das partes tenta seguir as obrigações impostas pelo direito da guerra, a outra parte, numa resposta assimétrica, aproveita as vantagens de operar em ambientes urbanos e o recurso a armas de efeitos massivos, em locais densamente povoados e altamente mediatizados. Isto representa uma longa tradição de usar o direito internacional como uma forma de combate, constrangendo as ações de quem o respeita12. Neste ambiente, os drones são vistos como a resposta disponível mais contida e discriminada. Contudo, a GAR, nos moldes em que está a ser empregue, enferma ainda de vários dilemas legais.

Ao longo dos anos, talvez por falta de esclarecimento público, foi crescendo o estereótipo de que os UAS são armas desumanas e que desrespeitam o direito internacional. No entanto, os debates legais sobre os UAS fazem esquecer o cerne da questão: não é a tecnologia que é controversa, mas sim o emprego que lhe é dado.

O direito da guerra não proíbe o emprego de sistemas de armas sofisticados num conflito armado, desde que estes sejam empregues em conformidade com as leis aplicáveis. Neste sentido, as melhorias introduzidas no processo de identificação dos alvos permitem uma aplicação de força letal cada vez mais cirúrgica. Por outro lado, os tratados internacionais estabelecem que o sofrimento imposto aos combatentes seja tão humano quanto possível e que o sofrimento infligido aos não combatentes seja minimizado. Quando um sistema de armas não cumpre estes requisitos, é normalmente banido pela comunidade internacional. Tal foi o caso de armas de efeitos indiscriminados, ou seja, que não conseguem ser controladas após o seu emprego, como as armas químicas, as munições cluster ou as minas antipessoal.

A argumentação acerca da violação do direito da guerra é aplicável da mesma forma a qualquer outro sistema de armas, tripulado ou não. Quando tentamos aplicar a mesma moldura aos drones armados, verificamos que estes são apenas a plataforma através da qual é efetuado o lançamento de uma munição. A única diferença reside no método de controlo: à distância. Assim, a argumentação terá de se desenvolver numa perspetiva de conceito de operação e de possíveis efeitos indesejados que resultem do emprego extensivo deste sistema de armas. Neste sentido, a controvérsia do debate incide particularmente no emprego de UAS de ataque fora das zonas oficiais de combate e, em particular, por entidades civis como a Central Intelligence Agency (CIA). Assim, o emprego de UAS no Iraque, Afeganistão ou Líbia, quando efetuado pelas forças armadas, não oferece grandes comentários.

A campanha de «execuções seletivas» com recurso a UAS teve início em novembro de 2002 com um ataque no Iémen. Foi também neste país que foi morto o primeiro cidadão americano em resultado de um ataque aéreo seletivo. O segredo operacional, proporcionado pela campanha aérea da CIA, a par com a desresponsabilização das ações, parecem seduzir politicamente a Administração Obama para fazer alastrar o emprego desta modalidade de GAR.

Um dos principais desafios na contabilização e categorização de baixas num conflito à distância, em zonas remotas, tribais e inacessíveis a órgãos independentes e imparciais, tem a ver com as diferentes perspetivas das partes em confronto. Enquanto para Washington a maioria das baixas são insurgentes, para a oposição a maioria são vítimas civis. Para além disso, a complexidade deste processo é aumentada devido à dificuldade em qualificar o estatuto dos alvos (como combatentes ou não), resultante, por exemplo, das táticas empregues pelos insurgentes de diluição entre a população. De acordo com o The Bureau of Investigative Journalism, entre 2004 e novembro de 2012 os reportes de fatalidades causadas por 350 ataques de drones da CIA, apenas no Paquistão, variavam de 2593 a 3378, das quais 475 a 885 civis. Já de acordo com a New American Foundation, no mesmo período, os 337 ataques contabilizados causaram entre 1908 e 3225 vítimas mortais, das quais 16 por cento civis.

O secretismo acerca do programa da CIA tem impedido a necessária discussão pública acerca das questões legais e éticas. Apenas em janeiro de 2012, após três anos de uso extensivo desta modalidade, o Presidente Obama confirmou a existência formal do programa de «execuções seletivas»13. A iniciativa presidencial deu início a uma maior necessidade de explicação pública acerca dos meandros do programa, fazendo multiplicar as declarações de responsáveis governamentais14.

Contudo, a posição oficial americana enferma de alguns paradoxos. Em primeiro lugar, transmite uma interpretação expansiva do enquadramento legal enquanto simultaneamente sustenta critérios limitados. Em segundo lugar, procura justificar legalmente uma modalidade de ação que se desenrola de forma secreta. Finalmente, tenta advogar uma imagem de transparência, ao mesmo tempo que se escusa a fornecer detalhes factuais acerca do processo de decisão e de conduta dos serviços de informações.

A racional defendida por vários representantes governamentais americanos para o emprego de força letal em operações contraterroristas, assenta na autorização do Congresso de 2001, em que era atribuído ao Presidente o poder para usar toda a força necessária e apropriada contra grupos terroristas, para proteger os Estados Unidos de qualquer ameaça iminente. Para além disso, esta moldura legal apenas se refere àqueles que planearam, autorizaram, cometeram ou ajudaram nos ataques terroristas do 11 de setembro. Todavia, passados mais de dez anos, existe alguma dificuldade em comprovar o relacionamento dos grupos atuais associados à Al-Qaeda com os eventos ocorridos àquela data. Assim, uma década após a aprovação da Lei do Congresso, ainda se mantém a mesma sustentação legal para uma conduta que permite atacar qualquer alvo, em qualquer parte do mundo, a qualquer momento. Neste âmbito, a perspetiva de que um mero envolvimento no planeamento de ataques passados seja suficiente para constituir um indivíduo como alvo a abater, apesar de não existirem provas concretas de ataques imediatos, distorce os requisitos estabelecidos no direito internacional15.A conduta seletiva da Guerra Aérea Remota faz sobressair questões legais complexas. O espetro de opiniões estende-se desde aqueles que defendem a legalidade das «execuções seletivas» como uma resposta adequada à ameaça do terrorismo, passando por aqueles que qualificam este programa como uma forma de execução extrajudicial sem o processo legal adequado. Parece-nos que grande parte dos dilemas, nomeadamente a retórica antiamericana, poderá ser minimizada com uma postura de maior transparência relativamente aos critérios de condução desta modalidade. Neste domínio, afigura-se adequada a recomendação do relator especial da ONU, Christof Heyns, para que os Estados Unidos continuem a explicar de forma mais detalhada as regras do direito internacional que cobrem a modalidade de «execuções seletivas», explicitando as bases para a decisão de matar em vez de capturar determinados indivíduos, ao mesmo tempo que esclarecem se o ataque foi perpetrado com autorização do Estado onde ocorre16. Para além disso, os EUA deverão tornar público o número de civis mortos em resultado dos ataques, assim como os procedimentos estabelecidos para minimizar a sua ocorrência.

O perigo de os Estados Unidos tratarem o globo como um campo de batalha encoraja outros países a seguir o seu exemplo. Independentemente dos juízos legais que possam ser feitos acerca da operação de drones pela CIA, de uma perspetiva moral e política, os Estados Unidos ficam fragilizados a partir do momento em que procuram julgar outros estados por condutas similares. Tal como hoje se assiste ao sobrevoo impune de drones americanos sobre o Paquistão, Iémen e Somália, não será descabido, no plano teó rico, pensar que no futuro outros países ou organizações o possam fazer sobre Nova York ou Washington. Assim, a even tualidade de outros estados e atores não, estatais enveredarem por conduta similar, contra interesses americanos obriga os Estados Unidos a considerar possíveis alternativas para minimizar os efeitos adversos da proliferação de UAS. Entre elas sobressaem o estabelecimento de normas de uso, à semelhança das armas nucleares; uma política de contraproliferação, como efetuado no advento dos mísseis de cruzeiro; ou resignar-se à adoção de contramedidas táticas a sistemas adversários.

Como destaca Little, a perda de legitimidade dos Estados Unidos implica o sacrifício do apoio de outros estados e galvaniza a causa terrorista, aumentando o seu universo de recrutamento17. O respeito pelo direito internacional é por isso um dos instrumentos-chave não só para prevenir o terrorismo, mas também para reduzir a conflitualidade hostil. O uso crescente de UAS em ações letais de «execuções seletivas» poderá eliminar alguns dos constrangimentos atuais acerca do uso de força militar. Contudo, caso se verifique o alastramento do desrespeito pelo direito internacional, a inevitável proliferação destas tecnologias conduzirá a um ambiente futuro ainda mais caótico. É nosso entendimento que, apesar dos esclarecimentos fornecidos pela Administração Obama nos últimos meses acerca do processo de decisão e dos protocolos de ataque, a verdade é que a informação disseminada acerca dessas metodologias, ou seja, as evidências factuais, são manifestamente insuficientes, nem tão-pouco são passíveis de ser comprovadas por fontes independentes. Assim, esta perspetiva americana de soberania global ameaça, por isso, sobrepor-se ao direito tradicional de soberania individual.

 

Relacionamento do Indivíduo e da Sociedade com a Guerra

Estamos perante uma nova era de «telecombate». A desconexão física e emocional desta modalidade de operação remota, semelhante a um jogo de vídeo, altera a dinâmica da tomada de decisão, aumentando as preocupações sobre os princípios básicos de moralidade e humanidade que antecedem a decisão de matar um adversário.

Uma das implicações resultantes do aumento da distância entre combatentes é que possa provocar uma dessensibilização à morte similar à experiência vivida nos jogos de vídeo. Esta «mentalidade de combate Playstation», por parte de indivíduos que nunca foram expostos aos riscos e rigores da guerra, pode originar excessos e desrespeitos das convenções internacionais18. O receio de que a guerra se possa transformar num jogo de vídeo é demasiadamente simplista. Contudo, este argumento assenta no pressuposto que quando não temos de enfrentar fisicamente o adversário, se torna mais fácil matar.

Existe efetivamente uma tendência histórica de diminuição da resistência a matar em combate, à medida que a distância entre combatentes aumenta19. Ou seja, quanto mais longe estiver o adversário, mais fácil se torna matá-lo. Por exemplo, a resistência a impor a morte através do bombardeamento aéreo a 20 000 ft ou através do uso de artilharia situada a dois quilómetros de distância do alvo, é mínima20. A estas distâncias, a despersonalização do alvo facilita o emprego de armamento, tornando a guerra altamente impessoal. Todavia, com o aumento da distância, o efeito psicológico sobre o inimigo é mais reduzido, na medida em que o combate a curta distância, e em particular o medo sentido por poder ser morto em combate próximo, é que modifica o comportamento do adversário21. Neste sentido, a visão pessoal da morte e destruição torna-se extremamente eficaz na modificação do comportamento humano. Por outro lado, as armas que constituem uma ameaça direta são psicologicamente mais eficazes do que as armas de área. Ou seja, o atirador furtivo é psicologicamente mais eficaz do que uma salva de metralhadora, ou uma bomba de precisão tem maior impacto psicológico do que uma barragem de fogo de artilharia22. De igual forma, a constante antecipação de ser atacado pode ter um efeito nefasto, em particular quando esta incerteza se prolonga no tempo23.

Podemos assim concluir que, apesar do aumento da distância, quanto mais precisa é a arma maior é o medo que inspira ao adversário. Se a isto adicionarmos um caráter de furtividade, surpresa e incerteza acerca da chegada da morte, conseguiremos levar a extremos o efeito psicológico sobre o inimigo. É nesta perspetiva que a quase omnipresença do bombardeamento de precisão revela o efeito psicológico devastador da GAR. Embora o maior afastamento entre combatentes possa induzir uma despersonalização do combate, Gregory advoga um fenómeno contrastante de personalização do combate resultante da proximidade emocional com as forças amigas no terreno24. Apesar deste paradoxo, ambos os fenómenos contribuem para aumentar a predisposição para o uso da força letal e, com ela, o aumento de risco para os não combatentes.

Em primeiro lugar, apesar de estarem a milhares de milhas de distância física do alvo, os operadores dispõem de uma visão do espaço de batalha em alta definição que lhes fornece uma sensação de proximidade com a ação. Este efeito de proximidade resultante de estímulos multissensoriais (imagem e áudio) aumenta, por um lado, a consciência situacional dos operadores, mas, por outro, personaliza o combate tornando-o mais íntimo, em particular quando forças amigas estão sob ataque. A visão quase microscópica dos alvos e da destruição em alta resolução parece contribuir para agravar este sintoma, uma vez que a consola de vídeo mostra não só a destruição imposta mas também a sequência dos eventos, ao contrário da presença efémera do piloto na área do alvo. Assim, a dicotomia conceptual da distância, que simultaneamente separa fisicamente os operadores de UAS, mas imerge-os psicologicamente em combate, poderá contribuir para precipitar o uso de força letal contra elementos na proximidade das forças amigas, aumentando o risco de danos colaterais e fratricídio.

Outro dos fatores que importa realçar é o processo de desumanização do inimigo que, como uma das constantes da guerra, faz diminuir as barreiras ao combate, quer da parte da sociedade, quer do próprio militar que impõe a morte ao adversário. Ao remover as qualidades humanas do adversário, como, por exemplo, a demonização do oponente25, desinibe-se a atuação do ofensor, favorecendo a execução de atos violentos que de outra forma não seriam considerados nem aceitáveis26.

É seguindo este raciocínio que autores como Wilson advogam que o afastamento psicológico resultante da condução da GAR implica uma nova forma de desumanização do adversário27. Para ele, ao manterem a distância da agonia humana, transformam a guerra real numa simulação brutal. Por exemplo, a referência aos insurgentes mortos no Paquistão por mísseis disparados de drones, como bugsplat28, acentua a técnica psicológica de desumanização dos alvos, diminuindo a inibição para matar e tornando a morte mais aceitável.

Este ambiente de combate sintético propicia a desumanização dos inimigos e, como tal, a desconexão moral dos operadores, que se reflete na dessensibilização à morte e com ela uma maior probabilidade de ocorrência de comportamentos antiéticos. Numa perspetiva tecnológica, a imersão neste ambiente de realidade virtual faz esbater as diferenças entre um jogo de vídeo e a realidade, confundindo um alvo virtual e um alvo real, ao mesmo tempo que no plano ético provoca um distanciamento físico e emocional das ações produzidas. Neste cenário extremo, também o operador será desumanizado, privado de sentimento moral de responsabilidade, ou de culpa pelos seus atos29. Com o aumento da autonomia dos UAS e com a perspetiva da transição humana de executante para supervisor poderemos antecipar um agravamento desta condição30.

As implicações do relacionamento do indivíduo com a guerra fazem-se notar na própria experiência da guerra. «Ir para a guerra» tornou-se um processo devidamente ritualizado em que se pressupunha a assunção do risco da própria vida. Implicava a separação dos entes queridos e a exposição aos horrores do combate. Isto mudou irremediavelmente com a operação remota de UAS, tornando cada vez mais difícil distinguir o evento «ir para a guerra» de «ir para o trabalho»31.

A habilidade da geração Playstation torna-a indicada para gerir as múltiplas tarefas com a rapidez exigida pelos conflitos atuais, porém, esta habituação à realidade virtual faz distorcer a realidade da Guerra. No ambiente assético da consola do operador do Reaper, as explosões parecem autênticos jogos de computador, onde a diferença de um jogador para o operador reside nas consequências reais dos clicks no rato. Comparativamente com a vivência operacional do combatente terrestre, o horror da guerra não é tão nítido quando visto de um monitor. Contudo, apesar do afastamento entre combatentes poder facilitar a imposição da morte, não os isenta de sentir remorsos.

Apesar da agilidade natural da geração Playstation em alternar entre os dois mundos, esta nova geração não compreende o horror da guerra, nem os laços de camaradagem e de espírito de corpo que se fortalecem em combate e que não são reproduzíveis em ambientes sintéticos. O património imaterial dos militares, os seus valores e virtudes, consubstanciadas sob a forma do ethos militar, encontram as suas origens em conceitos de honra, bravura e cavalheirismo derivados da realidade física do combate direto. Ao pouparem os combatentes ao perigo e ao sacrifício, os UAS transformam a conflitualidade hostil numa modalidade de «guerra sem virtudes» isenta de coragem e de heroísmo. O «guerreiro virtual», poupado às condições austeras do ambiente de combate, é privado da identidade e do sentimento de pertença característico do corpo de militares que tradicionalmente se submete ao risco de combate.

Neste âmbito, o uso de UAS armados desafia as noções tradicionais do ethos militar e o estatuto moral da guerra enquanto forma de violência. É esta possibilidade de competição letal, em que um combatente usa a força contra outro arriscando a própria sobrevivência, que distingue a essência da guerra. Por isso, não será de esperar que esta nova geração de militares, apelidada por Dunlap como «guerreiros de consola», e que faz a guerra sem nunca ter sido exposta às suas consequências mortais, partilhe dos valores militares tradicionais que restringem a conduta ilegal e imoral na guerra32.

A dependência ocidental do uso de UAS pode influenciar a própria perceção e ligação da sociedade à guerra. Numa sociedade em que o recrutamento militar obrigatório foi eliminado, onde as declarações de guerra deixaram de existir, em que os orçamentos de defesa deixaram de ser prioritários, a remoção dos combatentes humanos do espaço de batalha afigura-se como a eliminação do derradeiro custo político e social de fazer a guerra.

Aquilo que Luttwak designou de guerra pós-heroica assume atualmente novas proporções33. O mesmo autor relembra que apesar das forças armadas modernas estarem estruturadas para a guerra de larga escala, a base demográfica das sociedades avançadas pós-industriais, com famílias pequenas, demonstra uma tolerância reduzida para baixas em combate34. Contudo, estas condicionantes podem tornar-se demasiado constrangedoras para uma grande potência, uma vez que a sua condição a obriga a arriscar combater para além dos seus interesses vitais, defendendo aliados, clientes ou outros fins periféricos35. É segundo este paradigma que a GAR revela a sua utilidade.

Contudo, Dudziak alerta para a possibilidade de os drones contribuírem para isolar cada vez mais a sociedade americana das ações militares, reduzindo o controlo da conduta política e ajudando a prolongar perpetuamente a guerra36. A indiferença da opinião pública ocidental à expansão global dos bombardeamentos aéreos por UAS é um dos indicadores de que os custos políticos de uma guerra em sociedades democráticas são cada vez mais reduzidos, minimizando os constrangimentos políticos ao seu emprego. Por outro lado, a indiferença que os UAS provocam na sociedade, transformando o cidadão-soldado em espectador, e a guerra em mais um espetáculo televisivo que concorre por share com outras atividades lúdicas, levam também a pensar que o escrutínio público desta atividade vital possa ter diminuído, e com ele fazer aumentar a frequência da guerra. O vídeo em tempo real da zona de operações e a sua disseminação pública ocorre de forma mais rápida e global do que em conflitos anteriores. Algo que deveria causar medo e angústia, é visto agora como uma forma de entretenimento que recebemos no email diário, fomentando a vulgarização da experiência da guerra, dos seus custos e das suas consequências, podendo em última análise levar a um completo desinteresse da sociedade.

As Forças Armadas existem porque pessoas estão dispostas a morrer pela sua pátria. Mas a GAR permite que os conflitos sejam travados sem dispêndio da própria vida, colocando-nos perante o risco de transformação do conceito histórico de Forças Armadas. Em última análise, Engelhardt alerta sobre o perigo da robotização militar como estágio final do outsourcing da guerra para «coisas» que não protestam, não votam e para as quais não existe significado de mobilização nacional para combate37. Todavia, podemos encarar o uso da tecnologia como uma forma de reduzir os custos e as paixões na guerra, e como tal os seus crimes38. A esperança de que novas invenções possam limitar a crueldade e os crimes da guerra, evitando o derramamento de sangue, é uma constante histórica da conflitualidade hostil. Neste domínio, a omnipresença das câmaras no espaço de batalha modifica o contexto em que as decisões e também os abusos na guerra são feitos. Em última análise, mesmo que não seja mais difícil cometer um crime, torna-se, pelo menos em teoria, mais fácil descobrir os criminosos e responsabilizá-los.

Caminhamos a passos largos para uma completa omnisciência do espaço de batalha, que permitirá, segundo os seus defensores, monitorizar o quotidiano de um indivíduo numa sociedade, distinguindo onde vive, com quem se relaciona e o que faz, oferecendo opções mais variadas, letais ou não, de influenciar o seu comportamento. À medida que estes sistemas atingem níveis mais elevados de maturação, é possível antecipar a sua miniaturização e migração para outros domínios da interação humana, sob o auspício da segurança interna dos estados. De uma perspetiva mais crítica e catastrofista, podemos encarar esta ambição, de vigilância persistente e ubíqua, como uma possível semente que faça germinar uma verdadeira sociedade orwelliana.

 

Conclusão

Ao efetuarmos uma análise ao cálculo político, estamos inclinados a responder que os benefícios da GAR contribuem para aumentar o desejo político de recorrer ao uso da força, não em último recurso, mas como primeira escolha. Neste sentido, a preeminência da GAR poderá contribuir para alterar a cultura estratégica dos estados em recorrer à força coerciva para alcançar objetivos políticos, fazendo aumentar o desejo de empregar o poder aéreo como instrumento preferencial e quase exclusivo de guerras futuras.

A opinião pública é, nos estados democráticos, uma força condicionante, e reguladora, das ambições políticas do regime. Contudo, a tolerância às baixas em combate torna-se um indicador do risco que a sociedade está disposta a correr. Esta aversão ao risco é afetada pela emergência da GAR, uma vez que esta modalidade contribui para baixar cada vez mais a tolerância a baixas, porventura, até um ponto em que o combate direto entre homens esteja banido. No entanto, e numa visão mais realista, antevê-se também como consequência uma maior propensão política para recorrer ao instrumento militar, como a primeira solução para uma crise, contribuindo dessa forma para a proliferação de conflitos, criando maior hostilidade e perigosidade num ambiente futuro complexo e adverso para as relações internacionais.

Os incentivos estratégicos e morais para tornar esta modalidade cada vez mais precisa e exercida de forma remota, vão aumentando à medida que a opção por guerras de larga escala decresce em número e intensidade. As perspetivas de confrontos convencionais entre grandes exércitos parecem ser cada vez mais remotas, o mesmo se aplicando à probabilidade de se registarem intervenções militares americanas de larga escala, com o intuito de invadir, pacificar e administrar um país do terceiro mundo. Esta antevisão realista incentiva uma postura americana que favorece o recurso à GAR, em áreas como a Ásia, o Pacífico ou o golfo Pérsico.

O uso desta modalidade tem sido justificado como resposta legítima às ameaças terroristas e aos desafios da guerra assimétrica, mas com o risco de esbatimento das fronteiras do enquadramento legal. Com a expansão das operações secretas da CIA do Paquistão para o Iémen e a Somália, alastra também a modalidade de «execuções seletivas» a outros países com quem os Estados Unidos não estão oficialmente em guerra. Esta erosão do conceito de campo de batalha faz elevar a preocupação de que programas semelhantes se expandam, de forma preventiva, a períodos de crise entre estados. Assim, julgamos que as objeções apresentadas qualificam a existência de um desafio mais profundo e com efeitos futuros mais preocupantes: será absolutamente necessário e ético deixar os civis combaterem em nome do Estado?

A proliferação de UAS de combate traz consigo preocupações de que ao nos distanciarmos dos horrores da guerra possamos abdicar de algumas barreiras cruciais que impedem o alastramento da conflitualidade hostil. Ou seja, numa perspetiva política, tornando o emprego do instrumento militar ainda mais apetecível, e fazendo aumentar as possibilidades de maiores danos civis no adversário. Neste caso, os efeitos adversos da vigilância persistente e da precisão criam uma presunção de infalibilidade que motiva decisões políticas mais arriscadas, como os ataques em zonas urbanas. Apesar disto, o emprego de UAS pode contribuir para a adoção de uma postura de dissuasão que evite a guerra. Nesta perspetiva, a criação de uma força militar ultrassofisticada poderá impedir qualquer adversário de arriscar combater. No entanto, esta expectativa contribuirá, em nossa opinião, para mais uma mutação nos meios e nas modalidades de combate, repetindo momentos históricos em que, por exemplo, as armas nucleares dissuadiram a guerra para níveis convencionais, tendo posteriormente a supremacia aérea ocidental contribuído para uma nova transformação para dimensões híbridas.

A alternância entre proximidade (intimidade com os acontecimentos) e afastamento (distância física do espaço de batalha), a que se junta uma permanência temporal aumentada, torna mais complexa a análise dos efeitos da GAR no próprio indivíduo. Isto é, as melhorias verificadas na capacidade de transmissão de vídeo em tempo real distorcem os efeitos da distância entre o operador e o alvo, afetando qualitativamente o risco para os inocentes. Para além disso, estes fatores (proximidade, afastamento, permanência), nunca presentes de forma simultânea na história da guerra aérea, afetam de forma paradoxal o paradigma da GAR. Apesar da sua ambivalência, contribuem para reduzir as barreiras ao uso da força letal, facilitando a decisão de matar e como consequência, aumentando o risco para os não combatentes, danos colaterais e fratricídio. A ultrapassagem da derradeira fasquia da autonomia parece indicar um ponto de inflexão no futuro da GAR, ameaçando alterar o envolvimento humano na guerra, de executante, a supervisor, a observador. Por enquanto, ainda se torna necessário que o homem opere os veículos, interprete os dados e coordene as tarefas entre diversos sistemas. Lentamente, o homem vai abandonando a função de executante para supervisionar o comportamento da máquina e autorizar o uso de força letal. Neste sentido, o homem converte-se no mínimo denominador comum de um sistema autónomo, que atrasa o processo de decisão, expondo por isso vulnerabilidades operacionais. Ao procurarmos um sistema que tome decisões e reaja a velocidades sobre-humanas, arriscamos a que o homem não consiga acompanhar a função de supervisor. Quando isso acontecer, a interferência humana na conduta da guerra será de mera observação.

Ao longo deste ensaio foi possível verificar que com o inevitável alastramento da GAR poderemos assistir a uma transformação fundamental da guerra. Para além de mudar a forma de combater, expressa na capacidade, letalidade e eficácia operacional, altera também o protótipo de combatente, transformando qualitativamente a interferência humana na guerra e a experiência em si, tanto ao nível individual, como enquanto instrumento político e derradeira expressão da interação entre as sociedades.

Ao removermos parte do horror, ou, pelo menos, o mantivermosà distância, estamos a arriscar perder o controlo sobre a frequência da guerra. Em vez de se procurarem formas de erradicar os problemas que conduzem à guerra, assistimos a uma tendência de afastar o homem para cada vez mais longe do local de combate e, em última análise, das consequências das suas ações.

Um futuro repleto de UAS autónomos constitui uma mudança de paradigma em termos de uso da força. O seu emprego pode alterar de forma fundamental a natureza da dinâmica da guerra, transformando irremediavelmente as culturas estratégicas dos estados. Quando isso acontecer, estaremos perante uma revolução nos assuntos militares de proporções épicas.

 

Data de receção: 19 de fevereiro de 2013 |Data de aprovação: 26 de agosto de 2013

 

Notas

1As temáticas abordadas neste ensaio foram desenvolvidas, pelo autor, em maior detalhe nas obras Guerra Aérea Remota: A Revolução do Poder Aéreo e as Oportunidades para Portugal e A Essência da Guerra Aérea Remota.

2ZENKO, Micah – Addicted to Drones. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.foreignpolicy.com/articles/2010/10/01/addicted_to_drones

3OLSTHOORNl, Peter, e ROYAKKERS, Lambèr – «Risks and robots – some ethical issues». Seminário «The Ethics of Emerging Military Technologies». International Society for Military Ethics. Universidade de San Diego, 2011.

4Líbia, Iraque, Afeganistão, Paquistão, Iémen e Somália.

5NOLIN, Pierre – Unmanned Aerial Vehicles: Opportunities and Challenges for the Alliance. NATO Parliamentary Assembly Committee Report. Bruxelas: NATO, 2012, p. 13.         [ Links ]

6NEW AMERICAN FOUNDATION– The Year of the Drone. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://counterterrorism.newamerica.net/drones

7BRENNAN, John – Brennan’s Speech on Counterterrorism. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.cfr.org/counterterrorism/brennans-speech-counterterrorism--april2012/p28100

8NOLIN, Pierre – Unmanned Aerial Vehicles: Opportunities and Challenges for the Alliance, p. 13.

9US GAO– Nonproliferation: Agencies Could Improve Information Sharing and End--Use Monitoring on Unmanned Aerial Vehicle E x p or t s . W a s hin g to n D C: U S Government Accountability Office, 2012, pp. 9-14.         [ Links ]

10DAWKINS, James – Unmanned Combat Aerial Vehicles: Examining the Political, Moral, and Social Implications. Maxwell AFB: School for Advanced Air and Space Studies, 2005, pp. 21-24.

11Relativamente à temática de targeted killings ver Alston, Philip – Study on Targeted Killings. Nova York: Nações Unidas, 2010;         [ Links ] ANDERSON, Kenneth – Targeted Killing in U.S. Counterterrorism Strategy and Law. Washington DC: Brookings Institution, the Georgetown University Law Center, and the Hoover Institution, 2009;         [ Links ] FISHER, Jason – «Targeted killing, norms, and international law». In Columbia Journal of Transnational Law, Columbia. Vol. 45, N.º 3, 2007, pp. 711-758;         [ Links ] MELZER, Nils – Interpretive Guidance on the Notion of Direct Participation in Hostilities under International Humanitarian Law. Genebra: International Committee of the Red Cross, 2009;         [ Links ] RAEMDONCK, Nathalie – «Vested inter e s t or mo r a l in d e cisiv en e s s? Explaining the EU’s silence on the ustargeted killing policy in Pakistan». In IAI Working Papers 12. Roma: Istituto Affari Internazionali, 2012; SOLIS, Gary – «Targeted killing and the law of armed conflict». In Naval War College Review. Newport. Vol. 60, N.º 2, primavera de 2007, pp. 127-146.         [ Links ]

12 DUNLAP, Charles – Lawfare amid Warfare. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2 013]. Disponível em: http://www.washingtontimes.com/news/2007/aug/03/lawfare-amid-warfare/.

13OBAMA, Barack – President Obama Hangs Out With America. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.whitehouse.gov/blog/2012/01/30/president-obama-hangs-out-america.

14Cf. BRENNAN, John – Brennan’s Speech on Counterterrorism. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.cfr.org/counterterrorism/brennans-speech-counterterrorism-april2012/p28100; Holder, Eric – Attorney General Eric Holder Speaks at Northwestern University School of Law. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.justice.gov/iso/opa/ag/speeches/2012/ag-speech1203051.html; Johnson, Jeh – National Security Law, Lawyers and Lawyering in the Obama Administration, 2012. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.lawfareblog.com/2012/02/jeh-johnson-speech-at-yale--law-school/.

15HEYNNS, Christof – Report of the Special Rapporteur on Extrajudicial, Summary or Arbitrary Executions. Nova York: Nações Unidas, 2013, p. 8.         [ Links ]

16Ibidem, pp. 20-21.

17LITTLE, Laura – «Transnational guidance in terrorism cases». In George Washington University International Law Review. Washington DC. Vol. 38, N.º 1, 2006, pp. 1-31.         [ Links ]

18ALSTON, Philip – Study on Targeted Killings, p. 25.

19GROSSMAN, Dave – On Killing: The Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society. Nova York: Little Brown, 1996.         [ Links ]

20GROSSMAN, Dave, CHRISTENSEN, Loren – On Combat: The Psychology and Physiology of Deadly Conflict in War and in Peace. Milstadt: Warrior Science Publications, 2008, p. 203.         [ Links ]

21Ibidem, p. 204.

22Ibidem.

23Ibidem, p. 273.

24GREGORY, Derek – Lines of Descent. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.opendemocracy.net/derek-gregory/lines-of-descent.

25Relembre-se a expressão contemporânea «Axis of Evil» introduzida pelo Presidente George Bush num discurso do Estado da União em 2002.

26BANDURA, Albert – «The role of selective moral disengagement in terrorism and counterterrorism». In Understanding Terrorism: Psychosocial Roots, Consequences and Interventions. Washington DC: American Psychological Association, 2004, pp. 135-137.         [ Links ]

27WILSON, Gary – The Psychology of Killer Drones – Action Against Our Foes; Reaction Affecting Us. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://fabiusma-ximus.wordpress.com/2011/09/28/29263/.

28Em referência a jogos de computador em que o objetivo é esmagar baratas. Este termo atribui uma conotação depreciativa, sub-humana, ao caracterizar os alvos como vermes, fazendo reavivar a terminologia introduzida por Hitler ao referenciar os judeus como parasitas e vermes. Robinson, Jennifer – «Bugsplat»: The Ugly US Drone War in Pakistan. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2011/11/201111278839153400.html.

29ROYAKKERS, Lambèr, e Est, Rinie van – «The cubicle warrior: the marionette of digitalized warfare». In Ethics and Information Technology. Vol. 12, N.º 3, 2010, p. 293.         [ Links ]

30Ibidem, p. 292.

31SINGER, Peter – Wired for War. Nova York: Penguin Press, 2009, p. 327.

32DUNLAP, Charles – Technology and the 21st Century Battlefield. Carlisle: Strategic Studies Institute, 1999, p. 30.         [ Links ]

33LUTTWAK, Edward – «Towards post-heroic warfare». In Foreign Affairs. New York. Vol. 74, N.º 3, maio-junho de 1995, pp. 109-122.         [ Links ]

34LUTTWAK, Edward – Dead End: Counterinsurgency Warfare as Military Malpractice. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://harpers.org/archive/2007/02/0081384.

35LUTTWAK, Edward – «“Post-heroic warfare” and its implications». Proceedings of NIDS International Symposium on Security Affairs – War and Peace in the 21st Century: Reflections upon the Century of War. Tóquio: National Institute for Defense Studies, 2000, p. 136.         [ Links ]

36DUDZIAK, Mary – On Drones and the War Power. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://legalhistory-blog.blogspot.com/2009/09/on-drones-and--war-power.html.

37ENGELHARDT, Tom – How Drone War Became the American Way of Life. [Consultado em: 18 de fevereiro de 2013]. Disponível em: http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/02/201222791327288883.html.

38SINGER, Peter – Wired for War, p. 393.