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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.40 Lisboa dez. 2013

 

AS DIMENSÕES EXTERNAS DA SEGURANÇA INTERNA

Nota introdutória

 

Ana Paula Brandão*, Helena Carrapiço**

*Professora de Relações Internacionais da Universidade do Minho.

** É desde 2013, Newton International Fellow na Universidade de Dundee na Escócia. É igualmente investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Foi professora convidada na Universidade de James Madison. Doutorada em Ciências Políticas e Sociais pelo Instituto Universitário Europeu, de Florença.

 

O presente número temático visa analisar as narrativas e as práticas da segurança interna nas suas conexões interno/externo. A complexificação de riscos e ameaças tem questionado as conceptualizações, políticas e orgânicas, assentes numa separação rígida entre segurança interna e segurança externa. Em resposta aos desafios transnacionais, o ator estadual tem diversificado a paleta de mecanismos cooperativos: cooperação interestadual institucionalizada; regimes de segurança; cooperação entre atores estaduais e atores privados; redes de relações transgovernamentais. Em síntese, podemos identificar três vertentes do nexo in/out: «internalização de fenómenos de incidência externa; externalização de fenómenos de incidência inicialmente interna; fenómenos de natureza transfronteiriça»1. No que respeita à externalização da segurança interna, esta surge associada à natureza transnacional de atividades criminosas, à explicitação de objetivos de segurança interna nas políticas externas, aos mecanismos cooperativos interestaduais e transgovernamentais no domínio da segurança interna e às missões internacionais de polícia em situações de pós-conflito.

As três vertentes têm sido aprofundadas em debates académicos que apontam de forma clara para o crescimento exponencial desta área de investigação nos últimos anos2. O crescimento tem-se baseado essencialmente na dimensão externa da área da justiça e assuntos internos da União Europeia (UE), sendo possível identificar dois debates centrais no desenvolvimento da literatura. O primeiro corresponde a um debate ontológico sobre a natureza deste campo de políticas de segurança interna e sobre a forma mais adequada de o conceptualizar, e o segundo debate diz respeito à conceptualização das práticas que ocorrem no seio do mesmo.

A discussão ontológica tem-se focado na questão de se a dimensão externa de justiça e assuntos internos da UE deve ser entendida como uma política separada de outras áreas, com uma lógica própria, instrumentos e instituições, ou como um conceito mais abrangente, capaz de incluir várias políticas3. Entre os vários fatores que têm contribuído para a complexidade do debate sobre a natureza deste campo, é de apontar a crescente sobreposição entre políticas próximas, nomeadamente entre a Política Externa e de Segurança Comum e a Política Europeia de Vizinhança. A confusão entre as duas políticas, no contexto da dimensão externa da justiça e assuntos internos, tem a sua origem essencialmente na utilização de instrumentos de segurança interna no desenvolvimento de políticas do antigo segundo pilar da UE4. Esta falta de clareza tem despertado igualmente um intenso debate quanto à possibilidade da dimensão externa ter uma agenda de segurança própria (não se limitando a refletir a agenda de outras áreas)5.

No que concerne ao segundo debate, a conceptualização das práticas que ocorrem neste campo tem sido levada a cabo por diversas disciplinas. A grande maioria das abordagens teóricas que surgiu no contexto da dimensão externa tem a sua origem nas áreas de política externa e de estudos de integração europeia. À medida que este campo tem vindo a crescer, tem-se verificado um efeito multiplicador com a emergência de novas abordagens caraterizadas por perspetivas disciplinares diversas. É o caso, nomeadamente, das abordagens de governação, europeização, novo institucionalismo, estudos de segurança, estudos críticos de segurança e estudos jurídicos. Cada disciplina tem proposto uma visão autónoma das práticas que ocorrem na dimensão externa, com a literatura de política externa, por exemplo, a descrever tais atividades como «externalização» da segurança interna6, e a literatura jurídica a fazer referência a «extraterritorialização»7. Embora seja previsível que a longo prazo estas abordagens venham a constituir um debate mais estruturado e sistemático, de momento encontramo-nos perante uma proliferação de abordagens teóricas e de designações, sendo o diálogo entre elas extremamente limitado.

Apesar de este ser um campo académico em franca expansão, que já produziu um número considerável de publicações e de projetos de investigação, a dimensão externa da segurança interna continua a ser essencialmente percecionada como uma área de investigação diretamente ligada à UE. A contribuição deste número especial, pioneiro em Portugal, é o alargamento da literatura a novos espaços geográficos. Os artigos espelham a heterogeneidade desta nova agenda de investigação (ainda em construção). A diversidade é patente em termos de temáticas (crime económico, narcotráfico, terrorismo, pirataria, missões de polícia, Estado de direito), de frameworks teórico-conceptuais (securitização, complexos regionais de segurança, europeização, governação externa), de atores (estados, organizações internacionais e atores não estaduais) e de estudos de área (África, Europa, América do Sul). Se a heterogeneidade demonstra o potencial da agenda de investigação, a verdade é que também indicia a indefinição da mesma. A este propósito, Eriksson e Rhinard constatavam «a ambiguidade empírica, a fragmentação teórica e a ausência de diálogo académico sobre o assunto»8.

Luís André Elias analisa a participação das forças e serviços de segurança portuguesas em missões internacionais nas suas três vertentes: global (operações de apoio à paz da ONU), europeia (missões de gestão civil de crises da UE) e lusófona (cooperação técnico-policial da CPLP). Face à natureza fragmentada, normativa e deficitária em termos de coordenação interministerial e interinstitucional das políticas de segurança (externa e interna) de Portugal, defende a definição de uma estratégia nacional, da qual decorrerá uma estratégia setorial no domínio da segurança interna, condição necessária para uma maior e mais eficaz externalização da segurança interna.

A partir dos casos da pirataria somali e do roubo armado contra navios no Sudeste Asiático, Gilberto Carvalho de Oliveira demonstra como estes fenómenos recentes põem em causa o discurso geoestratégico do oceano como um «vazio fora da territorialidade», livre de fricções, reservado ao uso militar, à livre circulação comercial e à exploração de riquezas naturais pelos estados. Segundo o autor, a (designada) «nova ameaça global» não resulta de uma mudança substancial na natureza da criminalidade marítima, mas sim de discursos e práticas institucionais securitizadoras que constroem a criminalidade marítima como um problema de segurança internacional, a fim de justificar novas formas de governação do espaço oceânico.

Emilse Calderón aborda as implicações do conflito armado e das atividades das redes de narcotráfico na Colômbia para os países vizinhos. No subcomplexo regional de segurança andino, a externalização de ameaças internas nas zonas de fronteira concorre para a natureza cooperativa ou conflituosa das relações entre estados vizinhos, bem como para a formulação e execução das políticas externas e de defesa condicionadas por políticas de segurança interna. Neste contexto, a autora afirma a necessidade de coordenação das políticas de segurança dos estados para fazer face a ameaças não tradicionais partilhadas.

O artigo dedicado às relações entre a França e a Tunísia nas áreas das migrações e da luta antiterrorista evidencia a prevalência da dimensão bilateral das mesmas, pese embora a europeização por «projeção» e por «receção» da política externa francesa, no âmbito da Parceria Euro-Mediterrânica e à Política Europeia de Vizinhança. Conforme demonstrado por Verónica Martins, a França afirma-se, relativamente à política mediterrânica da UE, como policy shaper e policy supporter do controlo dos fluxos migratórios e como policy supporter da cooperação antiterrorista, utilizando este nível europeu como um reforço da política nacional.

Os níveis europeu e nacional também estão presentes no estudo sobre a contrafação, sendo esta perspetivada como uma ameaça não só económica, mas também política e societal. Segundo Micaela Costa Ferreira a prevenção e o combate a esta modalidade de crime devem contemplar os diferentes níveis de atuação (cidadãos, agentes económicos, Estado e UE). Dada a natureza transnacional do crime, a cooperação a nível europeu deve promover a harmonização legislativa em matéria de propriedade intelectual, a partilha de informações e a colaboração entre as forças de segurança.

Liliana Miranda sublinha a crescente relevância da dimensão externa do espaço de liberdade, segurança e justiça europeu quer para a consolidação da cooperação interna, quer para a projeção externa da UE. Além dos benefícios decorrentes da expansão desta área política, a autora identifica também os desafios da mesma, entre os quais a necessidade de reforçar a coerência (entre os instrumentos das políticas internas e externa) e a consistência (entre estados-membros e entre estes e a UE) política, de melhorar a cooperação entre as agências europeias e a coordenação entre os diversos stakeholders, de atribuir competências específicas neste domínio às delegações da União em países terceiros.

Teresa Cierco e Liliana Reis analisam o nexo entre as dimensões externa e interna da segurança com base numa missão civil da Política Comum de Segurança e Defesa. Da avaliação da operação EULEX concluem que, apesar do apoio da UE à construção das instituições kosovares nas áreas das fronteiras, polícia e justiça, prevalece a proliferação do crime organizado e da corrupção. A eficácia deste instrumento europeu de governação externa tem sido condicionada por fatores quer endógenos (interferência política, ambiguidade da personalidade jurídica do ator), quer exógenos (limitada contribuição dos estados-membros, défice de coordenação entre as instituições da UE).

Face a uma realidade complexa, constroem-se nexos securitários que contrariam a tradicional separação entre as dimensões interna e externa da segurança consagrada pelo legado realista. A resposta aos múltiplos desafios (clarificação conceptual, frameworks teóricas, definição de linhas de investigação) que se colocam à academia, passa por superar as «mesas separadas»9 e promover o diálogo interdisciplinar.

 

Notas

1Brandão, Ana Paula – «O nexo entre segurança externa e segurança interna na construção da Actorness europeia». In Nasser, Reinaldo, e Pureza, José Manuel (eds.) – A Paz Violenta e a Insegurança Internacional: Desafios e Resposta. São Paulo [2014, no prelo].

2Eriksson, Johan, e Rhinard, Mark – «The internal-external security nexus: notes on an emerging research agenda». In Cooperation and Conflict. Vol. 44, N.º 3, 2009, p. 244;         [ Links ] Balzacq, T. – «The frontiers of governance: understanding the external dimension of eu justice and home affairs». In Balzacq, Thierry (ed.) – The External Dimension of EU Justice and Home Affairs. Governance, Neigbhours, Security. Basing-stoke: Palgrave, 2009, pp. 1-32;         [ Links ] Trauner, F., e Carrapiço, H. – «The external dimension of eu justice and home affairs after the Lisbon Treaty: analysing the dynamics of expansion and diversification». In European Foreign Affairs Review. Vol. 17, N.º 5, pp. 1-18.         [ Links ]

3Balzacq, Thierry (ed.) – The External Dimension of EU Justice and Home Affairs. Governance, Neigbhours, Security.

4Kurowska, Xymena, e Pawlak, Patryk – «The politics of European security policies: actors, dynamics and contentious outcomes». In Perspetives on European Politics and Society. Vol. 10, N.º 4, 2009.         [ Links ]

5Wolff, Sarah, Wichmann, Nicole, e Mounier, Gregory – «The external dimension of justice and home affairs? A different security agenda for the eu». In Journal of European Integration. Vol. 31, N.º 1, 2009.         [ Links ]

6Smith, Karen E. – «The justice and home affairs policy universe: some directions for further research». In Journal of European Integration. Vol. 31, N.º 1, 2009, pp. 1-7.         [ Links ]

7Rijpma, Jorrit, e Cremona, Marise – «The extra-territorialisation of eumigration policies and the rule of law». In EUI Working Paper Law 1. Florença: European University Institute, 2007, p. 10.         [ Links ]

8Eriksson, Johan, e Rhinard, Mark – «The internal-external security nexus: notes on an emerging research agenda», p. 244.

9Almond, Gabriel – «Separate tables: schools and Sects in political science». In Political Science and Politics. Vol. 21, N.º 4, 1988, pp. 828-842.         [ Links ]