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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Um encontro entre a história da cultura e a história política1

 

António da Silva Rêgo

Licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, UNL. Está a fazer um Research Masters em História: identidades nacionais e cultura política na Universidade de Leiden, Holanda. É também investigador integrado não doutorado no grupo Poder, Ideias e Cultura do Instituto de História Contemporânea.

 

Martin Pugh

Speak for Britain! A New History of the Labour Party

Londres, Vintage, 2010, 464 páginas

 

No seu livro Speak for Britain! A New History of the Labour Party, Martin Pugh procura fazer isso mesmo: uma história do partido (e não simplesmente de governos), tomando particular atenção à dialéctica entre a direcção nacional do blp (British Labour Party) e os clp (Constituency Labour Parties) – os ramos locais. Este livro aparece em resposta a uma falta na historiografia sobre esta relação, muito por causa da recente disponibilidade de fontes regionais, especialmente no que toca a estudos que se foquem em explicá-la com base no contexto social, económico e cultural em adição ao contexto político da história centenária do Partido Trabalhista.

A partir de quarenta anos de pesquisa indirecta, tocando em assuntos como o sufrágio feminino na Grã-Bretanha ou o fenómeno do fascismo britânico, Pugh não se limita a consultar fontes do partido, mas pega também em ensaios de políticos fora do movimento, de forma a podê-lo comparar com – e muitas vezes aproximar de – grupos como os conservadores ou os liberais. Nas suas palavras, tentou «deliberadamente evitar escrever uma história do Partido Trabalhista num vácuo» (p. xi).

O livro encontra-se organizado por ciclos políticos, com especial atenção às origens do partido. A elas são dedicados os primeiros três capítulos, sendo que depois Martin Pugh analisa a era eduardina e a Grande Guerra, a progressiva formação do partido enquanto fenómeno verdadeiramente nacional, destacando o distanciamento do socialismo e a «aderência à aristocracia» (p. 164), a II Guerra Mundial e a emergência do blp enquanto partido do poder, e finalmente a era Wilson, o declínio na era Thatcher e o fenómeno do New Labour, de Tony Blair.

O livro posiciona-se manifestamente em desacordo com a historiografia tradicional na interpretação que faz da história do partido. Ao abordar ciclos políticos em vez de governos, alargando assim o escopo temporal, o autor tira o foco da tradicional explicação centrada na política per se para abordar questões culturais, isto é, de weltanschauung. É principalmente nestas que assenta o ónus da explicação, fazendo depender resultados políticos e eleitorais de múltiplos factores. Por exemplo, indo contra o mito de que o blp é o partido da classe trabalhadora, Pugh apresenta dados que obrigam o leitor a considerar a relevância do voto da classe média e da classe baixa conservadora, observando várias vezes a eficácia causal de valores como o patriotismo face a conflitos armados ou o afastamento de valores puritanos originais. Também o voto das mulheres face ao dos homens e a forma de organização dos clp são factores tidos como importantes, acabando por matizar o peso de qualquer causa por si só.

 

O CONCEITO-CHAVE: CULTURA POLÍTICA

O autor mune-se, então, do conceito de cultura política para responder à seguinte pergunta: como surgiu o Partido Trabalhista, como se transformou numa organização política a nível nacional, e como se pode compreender que um partido que se espera de esquerda tenha conservado o poder durante os últimos treze anos com um primeiro-ministro que manifestamente não o era? A resposta a esta pergunta encontra-se, segundo Pugh, nos valores demonstrados pelos indivíduos que participaram no blp, não apenas os tradicionais valores ascetas e de respeitabilidade, mas também em valores como patriotismo e jingoísmo (pp. 57-59), por exemplo, muito mais associados ao Partido Conservador, de onde, de resto, vieram indivíduos que marcaram o partido – por exemplo, Oswald Mosley.

No entanto, o uso deste conceito não está isento de problemas, principalmente neste livro. Para começar, Pugh nunca define o conceito de forma explícita. Apesar de reconhecer o seu uso e de lhe atribuir bastante presença na narrativa, por exemplo ancorando sindicatos na cultura política local (p. 42), não explica como nem porquê, deixando o leitor simplesmente assumir que os mesmos valores de ascetismo contra o consumo de álcool e contra o jogo eram partilhados pela população local. Isto não seria um problema grave se o conceito não tivesse adquirido, nas últimas décadas, uma polissemia particularmente aguda, sendo um campo de contestação entre historiadores e politólogos2. O problema agrava-se quando se percebe que o próprio autor usa o conceito de forma abrangente e polissémica: se antes o conceito era definido em termos de valores, algumas páginas à frente passa a ser definido por percepções da realidade (pp. 98, 280), ou então por categorias que se aproximam bastante da psicologia de massas e da sociologia (p. 160), ou mesmo por questões de ideologia (pp. 161-162).

De facto, Pugh prima por escrever uma história eminentemente política mas que se foca bastante em questões culturais, matizando substancialmente o peso da ideologia stricto sensu para valorizar critérios socioeconómicos como por exemplo as contribuições dos sindicatos associados a clp ou a quantidade e qualidade dos agentes ao serviço dos mesmos ao longo do tempo. No entanto, acaba por não abordar questões definidoras das mundivisões que usa como principal forma de explicação histórica. Dois exemplos saltam à vista. Primeiro, temos o Beveridge Report (pp. 262, 267-268), referido múltiplas vezes ao longo do livro, como não poderia deixar de ser, tendo em conta que foi um dos documentos mais marcantes na história em questão. Este documento nunca é devidamente apresentado. Assume-se tacitamente que o leitor o conhece. Por outro lado, se este é tido como representativo dos valores que permitiram aos trabalhistas ganhar uma vitória retumbante em 1945, então a sua não apresentação é equivalente a uma não explicação. O segundo exemplo é a falta de ilustração das várias correntes dentro do partido. Mais uma vez, estas são apresentadas como definidoras ou, pelo menos, como elementos de análise importantes – veja-se, por exemplo, o conflito entre Bevanites e Gaitskellites. Ainda assim, estes grupos não são definidos para além de nomes de «membros» ou de orientação na dicotomia esquerda-direita. Se um dos propósitos manifestos do conceito de cultura política ao longo da sua utilização na segunda metade do século xx é precisamente ultrapassar esta dicotomia, assentar nela como um dos principais métodos de explicação acaba por ser contraditório face ao uso do conceito de cultura política. O caso mais flagrante deste problema é o mencionar de seis «elementos diversos» dentro do partido aquando da eleição para a liderança do mesmo, após Wilson se ter reformado. Em vez de caracterizar esses elementos diversos, Pugh limita-se a separá-los em esquerda e direita, ficando o leitor menos informado condenado a transformar seis elementos em dois, já que nem sequer se apresentam diferenças entre candidatos da esquerda radical e da ala conservadora da Fabian Society (pp. 353-354). Talvez o maior problema com o uso deste conceito tenha sido a ausência de um vocabulário desenvolvido para o efeito.

Esta recusa quase sistemática de apresentar tipos ideais relativamente ilustrativos torna o trabalho demasiado pesado em listas de personagens relevantes (por exemplo, p. 249), ou de locais relevantes, mas não providencia a tão necessária síntese que permite ao leitor compreender o significado do que está a ler. Ou já conhece, ou fica sem perceber essa dimensão cultural.

 

PROEMINÊNCIA DO MÉTODO COMPARATIVO

Martin Pugh procura explicar a história do Partido Trabalhista com grande recurso à comparação. A dialéctica entre os órgãos centrais do partido e os clp é apresentada muitas vezes por contraste, recorrendo à procura da variação para encontrar um terreno comum. A unidade da comparação neste livro é, então, a constituency, o county, o borough (por exemplo, pp. 151-152) ou, de forma menos sistemática, o indivíduo. Por um lado, o resultado é bastante explicativo e competente, apresentando óptimas comparações simétricas entre as regiões que elegem deputados e aquelas onde eles perdem as eleições, culminando na dialéctica rank-and-file/partido (pp. 341-342), ou apresentando o sucesso ou o fracasso eleitoral como resultado, em parte, das diferenças entre os sucessivos líderes do partido e a sua adequação a cada momento particular da sua história.

No entanto, falta claramente uma perspectiva que ultrapasse a nação. A cultura política, muitas vezes comparada, é vista como um fenómeno estritamente nacional e regional, tratando-se as unidades comparativas de forma demasiado hermética, sem a influência de fenómenos internacionais que certamente tiveram alguma eficácia causal na matéria. O uso de conceitos como transferência política3 ou metodologias da histoire croisée teriam sido uma óptima forma de apresentar um contraponto a uma análise que privilegia manifestamente o teatro político nacional. As poucas comparações com o resto do mundo são altamente assimétricas e muito pouco frequentes (por exemplo, entre o ascetismo trabalhista e a lei seca nos eua).

Este foco regional e eleitoral também tem outra lacuna. O resto do império é largamente esquecido. As questões da descolonização e da imigração não figuram na lista de ideias marcantes da ideologia ou da cultura política do partido. Esta é uma falha clara que exacerba a ideia de que este livro é centrado no Estado-nação, esquecendo-se de lidar com este conceito de forma crítica e cuidada face aos seus limites. Também ideias políticas face ao racismo e emancipação das minorias são pouco valorizadas, assumindo tacitamente que não eram uma parte definidora da cultura política. Pode-se dizer que o foco nas constituencies é levado longe demais, esquecendo questões mais transversais ou menos relacionadas com o acto de votar. Temos por exemplo a viragem de Tony Benn à esquerda, na década de 1970, que, embora seja referida, não é minimamente explicada ou explorada (p. 346).

Infelizmente, o uso da comparação restringe-se à análise de factos da história do partido, não sendo também um método usado para tratar as diferenças entre a narrativa de Pugh e as narrativas da historiografia restante. Pugh prefacia o livro dizendo que deve muito a autores como Duncan Tanner ou Andrew Thorpe (p. xi). Diz também que este livro, não sendo uma história interior ao partido, apresenta uma interpretação diferente da história deste, que suscitou críticas muito positivas, por um lado, mas uma recepção algo problemática por parte de membros do blp, por exemplo, Lord Hattersley. Afinal, esta não é apenas uma história, mas Uma Nova História do Partido Trabalhista. Falta, no entanto, uma apresentação explícita da historiografia que se pretende contestar.

Se o enorme peso das fontes primárias é certamente uma mais-valia, a falta de debate historiográfico reflecte-se no pequeno uso de notas de rodapé que remetam para fontes secundárias, sejam de carácter monográfico, sejam de carácter biográfico. Por vezes, alude-se a uma diferença de interpretação entre a interpretação de Pugh e a de outros historiadores, mas sem apresentar qualquer referência específica a monografias onde essas teses aqui contestadas sejam avançadas. A historiografia é, então, transformada num straw-man em que Pugh possa bater, sem que o leitor possa verificar a qualidade da discordância do autor (pp. 217, 275). Apenas na página 388 temos um único momento breve (menos de uma página) onde se discute historiografia explicitamente, por ocasião da análise ideológica de Tony Blair. Acaba-se por se passar ao lado da historiografia que terá sido alegadamente fundamental na elaboração deste livro, sendo isso pouco conducente a um debate entre historiadores e cientistas políticos que seria certamente frutífero.

 

UMA HISTÓRIA PLENA DE IRONIA

Num livro onde o objectivo é, clara e manifestamente, apresentar uma interpretação alternativa da história do Partido Trabalhista, não é de admirar que Martin Pugh nos apresente uma visão onde a ideia de nuance é fundamental. Grande parte do livro é passada a qualificar actos, especialmente speech-acts de personagens relevantes, matizando o seu peso através da introdução de dados contextuais, ou apresentando um significado mais alargado relacionando-os com uma história de mais longa duração além do imediato momento político. O peso atribuído às raízes do partido, o entrosar do blp com conservadores e liberais, a resistência à apresentação de explicações monocausais, tudo isto resulta numa história plena de ironia, em que nenhum ponto é apresentado sem que seja referido o seu contrário. Isto resulta numa narrativa de mudança relativamente lenta e algo caótica, com os seus avanços e recuos. Temos, portanto, uma visão liberal da história do movimento trabalhista, em que os agentes dessa história são, maioritariamente, indivíduos, em que nos é apresentada uma imagem de continuidade não apenas na evolução do movimento mas também entre o partido e o sistema político inglês em geral, mas em que essa continuidade é pautada e matizada por toda uma intriga pessoal entre os intervenientes, por vezes mais valorizada que as suas posições ideológicas.

Afinal, o blp nunca foi verdadeiramente um partido socialista, tornando Tony Blair e o New Labour fenómenos mais próximos das linhas liberais do partido, apresentadas como dominantes na direcção nacional por oposição à corrente da esquerda mais radical, de Bevan, Foot ou Benn. Este livro apresenta-nos uma história política com o seu característico regresso aos agentes individuais, por um lado, mas não esquecendo conceitos mais típicos da história económica e social, prestando atenção aos meios materiais em adição aos valores que motivaram estas pessoas.

 

NOTAS

1 A pedido do autor o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2 Cf.Formisano, Ronald – «The concept of political culture». In The Journal of Interdisciplinary History. Vol. 31, N.º 3. Cambridge MA: The MIT Press, 2001, pp. 393-426.         [ Links ]

3 Cf. Velde, Henk te – «Political transfer, an introduction». In European Review of History. Vol. 12, N.º 2, 2005, pp. 205-221.         [ Links ]