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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Uma nova biografia política de Marcello Caetano?

 

Paula Borges Santos

Investigadora de pós-doutoramento no Instituto de História Contemporânea da FCSH–UNL.

 

José Manuel Tavares Castilho

Marcello Caetano. Uma Biografia Política

Coimbra,Edições Almedina, 2012, 991 páginas

 

No final de 2012, publicou José Manuel Tavares Castilho (jmtc) uma volumosa biografia política de Marcello Caetano (mc) que produziu na sequência dos seus mais recentes envolvimentos científicos.

Nesta obra, jmtc esforça-se por explorar um eixo de problematização que, em seu entender, estava pouco tratado nas análises académicas produzidas em torno daquela personalidade histórica e do seu período de governação: o pensamento político de Caetano. Propõe -se o autor discutir as posições políticas de Caetano, não apenas para o período em que foi chefe do Governo (1968-1974), mas estudá-las para a totalidade do seu ciclo de vida, começando, desde logo, pelos anos da sua juventude, na década de 1920, quando mc começou a ganhar algum protagonismo público como articulista e polemista em jornais e revistas, ligados a círculos monárquicos e integralistas (p. 23). Com o estabelecimento de um quadro interpretativo do ideário político de Caetano, nos seus fundamentos ideológicos, ao longo de toda a sua trajetória, pretende jmtc avaliar a «coerência entre os princípios e a prática» governativa do biografado, nos anos em que assumiu a chefia do Executivo (p. 24). Considerando que «a produção historiográfica sobre Marcello Caetano e o seu consulado – incluindo a literatura memorialista e de divulgação – insiste na responsabilização praticamente exclusiva do último Presidente do Conselho na queda do regime», estabelecido em 1933, o autor procura descortinar se tal «responsabilidade» lhe pode ser assacada ou se pode, antes, ser atribuída a «grande parte dos atores do processo político», mais particularmente à «ala mais conservadora do regime que se agrupava em torno de Américo Tomás» (pp. 20 -24).

O estudo de jmtc é prefaciado por Marcello Rebelo de Sousa e encontra -se dividido em duas partes: a primeira evoca o percurso de vida de mc, desde a infância até ao momento em que é escolhido para suceder a Salazar; a segunda debruça -se sobre os cinco anos e meio em que assumiu a condução do Governo. Um breve epílogo, foca os anos finais de Caetano passados no Brasil, onde se exilou na sequência do golpe militar de 25 de abril de 1974. O volume contém também uma antologia de excertos de seis discursos proferidos por mc entre 1946 e 1974, uma cronologia biobibliográfica detalhada e dois encartes com fotografias do biografado.

Os elementos biográficos e os acontecimentos que jmtc destaca nesta biografia de Caetano são já conhecidos dentro e fora da academia. Tal é explicável, quer pelo facto de mc ter publicado obras de caráter memorialístico1, onde descreve pormenorizadamente as diferentes fases da sua vida, quer pela existência de um número já considerável de títulos de literatura científica, jornalística, de divulgação ou memorialista que têm sido dados à estampa sobre o último chefe do Governo do regime autoritário ou mesmo sobre o período do seu governo2. Quadro que o autor poderia ter superado, como adiante se verá, se tivesse seguido outras opções no tocante às fontes a que recorreu, o potencial de novidade da obra fica particularmente dependente da problemática interpretativa que jmtc escolhe para compreender Caetano, no seu pensamento e ação política.

 

PERFIS DE MARCELLO CAETANO ANTES DE 1968

Nos anos de juventude de mc, o autor enfatiza a identidade de crente (católico) do biografado, destacando a influência que sobre ele exerceu monsenhor Pereira dos Reis (pp. 41 -43) e o seu envolvimento em estruturas eclesiais. O enfoque principal é dado, no entanto, à atividade jornalística de Caetano e, sobretudo, à influência que nele teve o integralismo lusitano. Depois de explorar amplamente os escritos de Caetano em publicações integralistas, registando as polémicas que alguns desses trabalhos provocaram, o autor narra a rutura de mc com a Junta Central do Integralismo Lusitano (1929) e a «sedução pelo nacional-sindicalismo» manifestada pelo biografado, alguns mais tarde, apesar de se ter «mantido à margem do movimento» (p. 106).

O fim da licenciatura de Caetano e o começo da sua vida profissional, aceitando exercer funções como auditor jurídico do Ministério das Finanças, servem ao autor para estabelecer a transição para a descrição de uma nova fase de vida de mc. Nesse novo período, que compreende o começo do seu envolvimento na União Nacional (un), a sua participação na elaboração do Código Administrativo (1937), e o seu desempenho como comissário nacional da Mocidade Portuguesa (mp), Caetano é apresentado como «educador e apóstolo» (p. 85). As razões dessa caracterização fá-las depender jmtc, no essencial, do facto de considerar que Caetano foi o «grande teórico do corporativismo português», quer pelo seu «pioneirismo» na abordagem da temática em 1933, quer pelo propósito que atribui ao biografado de buscar uma «corporativização tendencialmente integral do regime» (pp. 130 -131). Note-se que essa singularidade que jmtc aponta a Caetano surge deformada se se pensar que o corporativismo era há muito conhecido e teorizado entre as elites intelectuais e políticas portuguesas e que outros autores contemporâneos de mc escreveram e refletiram sobre a doutrina corporativa. O autor faz ainda coincidir o papel de «educador» de Caetano com o seu exercício de funções na presidência do Comissariado Nacional da mp, época em que se teria começado a definir a «teorização ideológica no [seu] pensamento político», no que concerne a um conjunto de tópicos essenciais ao ideário nacionalista e antiliberal assumido pelo biografado (p. 154). Seria nessa altura que Caetano adquiria «peso político e projeção nacional», ultrapassando os «círculos universitários e políticos» onde habitualmente se movia e manifestando capacidade para «modernizar» a mp (pp. 159-160).

Na carreira de «homem público» de Caetano, jmtc valoriza a sua passagem pelo Ministério das Colónias como um dos «momentos mais relevantes», fornecendo exemplos de algumas medidas tomadas pelo governante na gestão daquela pasta (pp. 205 -206). No entanto, preocupa -se em sublinhar que, em mc, a conquista de uma posição pública relevante era indissociável da projeção da sua voz crítica, junto de Salazar, no tocante a vários aspetos da realidade do País, da un, mas também da própria coordenação política que realizava o então chefe do Governo (pp. 186-187). Essa postura intrinca-se, na narrativa deste estudo, com a frustração que mc sentiria na experiência de trabalho com Salazar (pp. 95, 284, 339, 389 -390, 40-407), mas também com ambições de poder que alimentava (pp. 165, 402). Segundo jmtc, o problema da continuidade do regime cedo fez «parte da agenda política de mc» (p. 275), sendo no sentido de assegurar a sua conservação, mediante a renovação da sua base de apoio, que o autor interpreta a ação de Caetano como presidente da un, onde terá passado uma «experiência de dificuldades» (pp. 251- -256, 262 -264). Igualmente pouco feliz terá sido a passagem de mc pela pasta da Presidência, onde a sua «ação coordenadora – se a houve – [passou] praticamente despercebida» (p. 345), desenvolvendo antes uma «ação doutrinadora», devedora do seu espírito de iniciativa individual (p. 365).

Seguindo uma proposta interpretativa de Jorge Borges de Macedo, jmtc considera que é no período de 1948 a 1952 que mc, exercendo o cargo de presidente da Câmara Corporativa, sendo nomeado vogal da Comissão Central da un e membro vitalício do Conselho de Estado, «definiu o essencial do seu pensamento político», cuja matriz se mantinha sendo o corporativismo (p. 286), e se consolidou como «alternativa» de poder dentro do sistema (p. 321). Essa reputação, contudo, não impediria que mc fizesse, após cessar de exercer funções ministeriais em 1958, uma «travessia no deserto» (p. 395), a qual só terminaria em 1968.

 

CAETANO, PRESIDENTE DO CONSELHO DE MINISTROS

Na leitura que fornece de mc na época em que exerceu a chefia do Governo, jmtc assume a grelha de análise com que habitualmente diversos investigadores têm abordado o marcelismo: houve um propósito reformista inicial na governação de Caetano e esse intuito constituiu um processo que, ameaçado na sua viabilidade, sobretudo pela questão colonial, fracassou.

Sobre os primeiros meses de mc na presidência do Executivo, o autor destaca que aquele procedeu «como se se tratasse quase de um governo provisório» (p. 441); sendo que, no primeiro ano de governação, procurou «criar o seu próprio espaço», esforçando-se por se demarcar e libertar o País «da tutela» de Salazar (p. 478). Cedo ocorreria, porém, um ponto de viragem no dinamismo reformador de Caetano, provocado pela sua viagem às capitais da Guiné, Angola e Moçambique em abril de 1969, que o teria feito recuar na política que pensava assumir (que o autor não esclarece qual era) perante o conflito militar que envolvia Portugal e aqueles territórios (pp. 478 -483). Outro momento representativo das «contradições e equivocos em que o marcelismo se multiplicou», foram as eleições de 1969, dado que mc, «no contexto eleitoral», optou por desvalorizar o papel da instituição parlamentar e «falhou» na «questão do recenseamento» para aquele ato eleitoral. Para jmtc, esse «foi mesmo o principal falhanço de mc, […] já que não só corroeu indelevelmente o caráter plebiscitário – à sua pessoa, ao seu mandato e à sua política – que se impusera conferir a estas eleições, mas também lhe retirou a legitimidade política para continuar a dizer que governava segundo a vontade, livremente expressa, da Nação» (pp. 509 e 515).

Na caracterização que faz da governação de mc, jmtc aponta o meio do ano de 1970 como a época em que Caetano «começa a ficar cercado», sobretudo, pela sua opção por reformas que não ultrapassaram uma «operação de cosmética»: «a transformação da pide em Direção-Geral de Segurança, da un em Ação Nacional Popular, da Censura em Exame Prévio, do corporativismo em Estado Social» (p. 581). Os conflitos do Governo com a Santa Sé e com setores católicos oposicionistas ao regime, os desentendimentos com os elementos da chamada «ala liberal», e ainda o crescente isolamento internacional de Portugal, fruto da manutenção do esforço da guerra colonial, adensaram também a «solidão política» de Caetano, «provocando nele um desgaste, não só político como psicológico, que começou a emergir já em 1971 e se acentuaria nos anos seguintes» (p. 675).

Segundo jmtc as três principais apostas políticas de mc passaram pela revisão constitucional de 1971, pela lei da liberdade religiosa e pela lei de imprensa. Se todas haviam de desiludir os que «porfiavam na liberalização», a primeira concorreu de modo especial para deixar mc «politicamente mais isolado e só» (p. 641). Caetano, para «deixar arrefecer as controvérsias políticas internas», preferiu então «falar de assuntos de administração e gestão» (p. 678). A reforma da educação, levada a cabo pelo ministro Veiga Simão, um dos «maiores êxitos do Governo de Caetano» (p. 715), não chegaria para inverter o ciclo de esgotamento da política marcelista, agravado pela postura de um Presidente da República que discordava da condução política que mc imprimia ao Governo. Sobre a divergência entre os dois homens, interroga-se jmtc porque «não utilizou os seus poderes constitucionais para demitir mc» (p. 766)? Concluindo que Américo Tomás terá preferido refugiar -se «numa espécie de limbo que, segundo a sua estratégia, o libertava da obrigação de assumir perante o País as responsabilidades do cargo a que, voluntariamente, se candidatara e que aceitara com manifesto interesse» (p. 810).

Acerca de Caetano, para os últimos meses da sua governação, insiste jmtc na importância da doença que o afetava, facto que terá diminuído a sua capacidade de ação num contexto, por si só, de grandes dificuldades políticas (p. 809). Para encerrar a biografia política de mc, o autor escolhe tecer uma comparação entre o biografado e o rei D. Carlos, dois homens vencidos, «não tanto pelos seus atos», mas pela «queda de um regime que, apesar dos seus esforços, revelava toda a decrepitude» (p. 826). Sobre Caetano, destaca ainda que, no fim da vida, o homem que fora crente perdera a fé (p. 833).

 

COMENTÁRIOS FINAIS

A ambição de que se reveste esta obra de jmtc, patente na dimensão do estudo, sai fragilizada de algumas opções tomadas pelo autor. Desde logo, o recurso às fontes primárias, tendo jmtc escolhido dar no corpo do texto uma voz excessiva ao biografado, transcrevendo abundantemente passagens das suas obras memorialistas, sem lhe contrapor, na maioria das vezes, a crítica que se exigia, fosse pela confrontação com outra documentação, fosse pela própria análise interpretativa que poderia ter ido mais longe. Alguma contradição resulta ainda dessa opção, quando, no epílogo, jmtc reconhece que as memórias escritas por Caetano são uma «autojustificação do seu consulado, assumindo o papel de vítima em todo o processo» (p. 830). Com efeito, lamenta -se que o autor não tenha utilizado este trabalho para investir na recolha de novas fontes, explorando não só documentação de arquivo inédita (poucos são os casos em que assim procede), como também socorrendo -se de testemunhos orais de diversas figuras que estão ainda vivas e que foram protagonistas históricos relevantes de alguns períodos aqui tratados e do marcelismo em particular. Como uma publicação recente dedicada também a mc demonstrou3, a recolha de depoimentos desses atores traz novidades à investigação sobre Caetano e à sua governação. A captação dessa informação fê -la o autor através do trabalho sobre alguns títulos memorialísticos editados de algumas figuras históricas, mas perdeu aí em originalidade.

Importante teria sido também que o autor tivesse escolhido aclarar mecanismos de decisão política tomados por mc, mediante, por exemplo, o tratamento de algumas políticas que o biografado desenvolveu, como ministro das Colónias ou como chefe do Governo, onde há ainda muito por estudar, mas onde há já também estudos setoriais que esclarecem bastante sobre o que aqui escreve o autor (por exemplo, sobre a situação e a política económica, social, colonial ou sobre as relações entre o Estado e a Igreja Católica entre 1968 -1974). Em nenhum lugar da obra se encontra uma síntese sobre qual foi, afinal, o pensamento político de mc. Tanto para quem poderia querer aceder a uma sistematização do que se diz no volume, como para quem lê integralmente esta biografia política, esse exercício fica a faltar. Ainda que, nesse segundo caso, o leitor possa inferir que jmtc, por um lado, valoriza a experiência integralista de mc, como um referencial que o biografado não deixaria de reativar em decénios muito mais tardios da sua vida (pp. 264 e 562), e, por outro lado, não denota alterações substanciais no pensamento de Caetano ao longo do tempo, prevalecendo nele as matrizes corporativista e antiliberal. Finalmente, teria sido fecundo se jmtc não se tivesse inibido de dialogar, no curso da escrita, com os ensaios históricos interpretativos existentes sobre a personalidade de Caetano e do seu governo4.

 

NOTAS

1 Sobre este aspeto, os dois títulos mais importantes são: Caetano, Marcelo – Depoimento. Rio de Janeiro: Distribuidora Record, 1974;         [ Links ] Caetano, Marcelo – Minhas Memórias de Salazar. Lisboa: Verbo, 1977.         [ Links ]

2 Várias dessas publicações são enumeradas pelo autor na bibliografia que apresenta no final da obra (pp. 967-984). Para uma resenha crítica de algumas obras académicas sobre mc, consulte-se: Torgal, Luís Reis – Estados Novos, Estado Novo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, vol. 2, pp. 616-617.         [ Links ]

3 Cf. Cruz, Manuel Braga da, e Ramos, Rui (org.) – Marcelo Caetano – Tempos de Transição. Lisboa: Porto Editora, 2012.         [ Links ]

4 Nomeadamente: Valente, Vasco Pulido – Marcelo Caetano, As Desventuras da Razão. Lisboa: Gótica, 2002.         [ Links ]