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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Dívida saldada?

 

Adolfo Cueto Rodríguez

Mestre em História das Relações Internacionais pela Universidad Complutense de Madride investigador associado do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. É bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e foi-o do Ministerio de Educación y Cultura de Espanha. Atualmente está a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre a política colonial de Marcello Caetano, na Universidad Nacional de Educación a Distancia (Espanha).

 

Maria José Tíscar Santiago

Diplomacia Peninsular e Operações Secretas Na Guerra Colonial

Lisboa, Edições Colibri, 2013, 449 páginas

 

A dado ponto do livro, María José Tíscar usa a expressão «dívida saldada» em tom afirmativo como síntese conclusiva da ajuda espanhola ao Governo português na «questão colonial», e em alusão ao justo pagamento pelo apoio precioso que Salazar tinha dado à Espanha franquista e, em última instância, a Franco, durante a Guerra Civil e nos anos do isolamento internacional. E depois de se ler todo o trabalho restam poucas dúvidas de que, pelo menos o chefe de Estado espanhol se sentiu de alguma forma comprometido para com Portugal. Mas, até que ponto essa conivência foi importante?

Esta publicação soma -se à efervescente produção historiográfica portuguesa no âmbito das relações internacionais dos últimos anos1. E fá -lo no marco cronológico do Estado Novo pós -II Guerra Mundial, com a descolonização e as guerras coloniais como condicionantes fulcrais da ação exterior lusa, e sob a ótica das relações bilaterais com Espanha. No entanto, sintetizar nestes parâmetros o conteúdo do trabalho, e especialmente o que traz de novo, é excessivamente redutor. E explicamos porquê.

Este é o segundo livro que a professora Tíscar publica em Portugal, depois de O 25 de abril e o Conselho de Estado: A Questão das Atas, editado em 2012, estando -se à espera do lançamento de um terceiro intitulado Pacto Ibérico, NATO e Guerra Colonial, que será editado pelo Instituto da Defesa Nacional (idn). Interessa frisar isto porque a obra à qual dedicamos esta recensão é, juntamente com a que está no prelo, o resultado do desdobramento da tese de doutoramento La ayuda española a Portugal durante la guerra en las colónias de África (1961--1974), que a autora apresentou na Universidad Nacional de Educación a Distancia (uned) em 2011. Esta circunstância deve ser tida em consideração para colocar no lugar devido o alcance do título, o conteúdo do livro e o epílogo que apresenta a modo de conclusões.

O eixo central do trabalho é o apoio diplomático dado por Espanha nas votações da onu, noutros organismos internacionais e nos países onde as embaixadas espanholas funcionaram como protetoras dos interesses portugueses depois da onda de cortes de relações na década de 1960. No entanto, o contributo para o conhecimento da ação exterior de Portugal não fica por aqui, sobretudo pelo que inclui sob a fórmula de «operações secretas», que é bastante elucidativo. Curiosamente, a ajuda espanhola como tal fica algo diminuída precisamente pela espessura dessa parte do trabalho, e por mais outras razões: a primeira já a insinuámos, e tem a ver com a separação do tratamento da ajuda em duas publicações distintas, sendo que é através da colaboração militar ou material que a historiografia costuma determinar o «grau» de apoio de países terceiros à resistência lusa; em segundo lugar, porque o apoio logístico e diplomático dado no continente através das embaixadas foi sobretudo de permissão – como nos diz a autora –, e não proativo, o que apesar de tudo não deveria penalizar a sua importância pela natureza das operações que encobriu e pela utilidade que teve para o andamento da guerra; e, para terminar, pela perspetiva com que o leitor poderá encarar o texto.

 

FIDELIDADE À EXCEÇÃO PORTUGUESA E DESCOLONIZAÇÃO ESPANHOLA

Mas comecemos por descrever a organização do livro. A obra divide -se em duas partes com extensões quase iguais, mas temáticas muito diferentes. Na primeira, a autora apresenta -nos os «tempos» da relação ibérica no que diz respeito ao(s) problema(s) colonia(l/is). Para esse efeito recorre à análise comparativa dos «casos» de cada país e complementa -a com o estudo do comportamento das autoridades de Madrid perante o «problema ultramarino» português. Trata -se, desde logo, de uma abordagem que dá o relevo preciso à constatação central que norteia o «discurso»: a divergência progressiva das políticas coloniais de Lisboa e Madrid desde 1960 em contraposição com o apoio que o Governo espanhol continuou a prestar, mesmo assim, à causa colonial lusa. E é justamente nesse comportamento duplo e aparentemente contraditório que reside a complexidade da ajuda diplomática espanhola e também a sua importância.

Nesse sentido, se o valor de qualquer «apoio» depende da sua utilidade para quem o recebe, esse também envolve, a priori, custos para quem o fornece e, portanto, uma outra avaliação. É isto que María José Tíscar tenta destacar no trabalho por não ter uma importância menor nem as tensões que esta atitude dupla criou no seio do Governo espanhol, nem a origem da última palavra que a manteve: a do general Franco. A autora faz constantes referências aos riscos desse equilibrismo para alguns dos objetivos basilares da política externa espanhola daquele tempo: a acomodação plena da Espanha franquista na comunidade internacional, a recuperação de Gibraltar, a garantia da soberania sobre Ceuta, Melilla e Canárias e a abertura comercial da economia espanhola a novos espaços. E foi por isso que aludimos à «perspetiva», pois, neste caso, olhar para o fundo da questão privilegiando um lado ou outro da relação bilateral não é indiferente, como bem demonstraram os azedumes testemunhados pelos corpos diplomáticos dos dois países em relação aos «limites» dessa cooperação – excessivos para uns, escassos para outros. Receamos, por isso, que a falta de bibliografia com a qual acompanhar a problemática da descolonização espanhola – carência, aliás, derivada não só do volume da produção científica, mas também porque a que existe nem sempre explora as razões/vínculos menos óbvios das elites decisórias com os processos – impeça que se dimensionem as complicações que esse apoio veio a somar à falta permanente de consenso no seio do regime franquista em relação à descolonização e à forma como executá -la – uma controvérsia que, aliás, não se resolveu até ao final da ditadura.

 

«DEIXAR FAZER, ATÉ ONDE AS AUTORIDADES LOCAIS PERMITIREM»

A segunda parte do livro concentra -se na análise do jogo diplomático e da intromissão portuguesa – unilateral ou em convivência com outros atores – na vida de alguns países africanos vizinhos, concretamente naqueles onde essas ações se fizeram ao abrigo das embaixadas espanholas: o Egito, a Tunísia e o Zaire. Nos primeiros, diz-nos María José Tíscar, a tónica dessas atividades esteve na procura da normalização das relações e do abrandamento do apoio aos movimentos de libertação, enquanto que no ex -Congo belga e no Congo -Brazzaville – que também analisa pelas intromissões levadas a cabo desde a Embaixada espanhola de Kinshasa – as manobras de desestabilização ensombraram a vontade de reatamento de relações diretas. A autora dá conta, em definitivo, de atividades de informação, contrainformação e apoio a fações golpistas numa espécie de alargamento da «guerra» das colónias a alguns estados fronteiriços, que de qualquer forma já estavam envolvidos indiretamente nelas. Em tudo isso, os «serviços» prestados por Espanha foram o suporte logístico sob a ordem de «deixar fazer», e também a concessão de asilo político a alguns dos «opositores» africanos que Portugal utilizou para tentar quebrar a hostilidade dos vizinhos perante a sua política colonial.

Há que dizer que o trabalho da professora Tíscar, além do alargamento do conhecimento dessas operações associadas à luta nos teatros de operações, tem a virtude de colocar no centro do foco o continente negro, algo incomum, pois a historiografia costuma atender menos às lógicas internas africanas e ao valor intrínseco de África, e mais a dinâmicas exógenas que também ali têm reflexos2. A consideração dessa parte da história revela -se igualmente importante para compreender, na sua plenitude, essa guerra de guerras que foram os conflitos coloniais de Portugal, e o que foi a descolonização em África.

Em conclusão, os riscos corridos para os interesses de Madrid, o valor do alinhamento regular do voto com Portugal e outras manobras nos foros internacionais, assim como a natureza das atividades desenvolvidas pelos agentes portugueses à sombra da cobertura diplomática espanhola, demonstram a importância do apoio. Só resta, pois, esperar a publicação do estudo na vertente «militar» para termos a panorâmica completa da ajuda e poder compará-la com a de outros estados, atribuindo-lhe montantes e identificando as «divisas» com as quais foi saldada a «dívida».

 

NOTAS

1 Desde a ótica das relações bilaterais portuguesas, e com a Guerra Colonial de fundo, foram publicados diversos trabalhos na última década, relativos a países como o Reino Unido, a França, a República Federal da Alemanha, a Itália, os eua, e a Rodésia.

2 Têm sido publicados recentemente alguns trabalhos que vão preenchendo esse vazio, como os de Aniceto Afonso e Carlos de Matos e o de Luís Machado Barroso, todos relativos ao envolvimento dos poderes brancos da África Austral no problema colonial português. Merece ser referida também a análise que Pedro Aires Oliveira faz do problema rodesiano nas relações anglo-portuguesas no seu trabalho Os Despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa 1945-1975. Lisboa: Tinta-da-China, 2007.