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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Portugal e o Holocausto: drama em três actos paralelos

 

Avraham Milgram

Historiador do Memorial Yad Vashem – Museu do Holocausto, em Jerusalém. Autor de Os Judeus do Vaticano (Imago, 1994) e Portugal, Salazar e os Judeus (Gradiva, 2011).

 

Irene Fkunser Pimentel e Cláudia Ninhos

Salazar, Portugal e o Holocausto, Lisboa

Temas&Debates, 2012, 908 páginas

 

A partir dos anos 1980 países da Europa Central e Ocidental se confrontaram com o antissemitismo europeu entre guerras e com a «Solução Final da Questão Judaica na Europa» – eufemismo que os nazis usaram para denominar o assassinato sistemático e total dos judeus nos anos 1941 -1945. Este confronto continua a produzir vasta literatura em teses, artigos acadêmicos, memórias, ficção bem como produção de filmes, museus e obras de arte – um conjunto de memórias que se integrou ao nosso ser coletivo. Contudo, devo assinalar que este fenómeno não ocorreu paralelamente em todos os países europeus. Na Europa Central e Ocidental, por exemplo, isto é mais evidente do que nos países do Leste europeu onde as narrativas sobre o destino dos judeus na era nazi continuam nebulosas e distantes da verdade histórica. Basta ler o epílogo da obra seminal do historiador Tony Judt, Pós-Guerra, para dar se conta da centralidade, diversidade e complexidade da memória do Holocausto nos diversos marcos nacionais europeus.

 

PRETENSÕES HISTORIOGRÁFICAS

Salazar, Portugal e o Holocausto de Irene Flunser Pimentel e Cláudia Ninhos, obra volumosa com quase mil páginas, se deve entre outras à intenção e pretensão das autoras em fazer integrar num só volume três grandes temas: a história do nazismo com a história de Portugal salazarista, antes e durante a II Guerra Mundial, e o Holocausto. Basta dizer que cada um destes temas faz parte de disciplinas acadêmicas por si e produziram grandes quantidades de livros. Raro é encontrá -los integrados e entrelaçados permitindo a compreensão de cada tema, por um lado, e os três ao mesmo tempo, por outro. Esta é uma tarefa árdua, complexa e ousada. De facto, os três temas figuram no livro de modo independente e seria mais razoável do ponto de vista historiográfico caso fossem integrados para formar um todo.

Grosso modo, o livro se divide em duas partes seguindo uma lógica cronológica que cobre o período do Holocausto de 1933 à 1945. A primeira metade do livro coincide com os anos da ascensão dos nazis ao poder na Alemanha até estourar a II Guerra Mundial intercalada com capítulos que narram sobre a natureza do Estado Novo com suas instituições políticas sociais e culturais, as relações de Portugal com a Alemanha de Hitler e a atitude do regime português face aos seus inimigos políticos. O terceiro e último capítulo da primeira parte é particularmente significativo na equação Portugal -judeus visto tratar -se de um tema instigante e polêmico na historiografia portuguesa: o papel do antissemitismo em Portugal em geral e no marco do Estado Novo em particular. A segunda parte, que na opinião das autoras é a principal do livro, se refere ao período da II Guerra Mundial, da neutralidade de Portugal e da questão dos refugiados. Estes temas não apenas foram objecto de estudos e artigos publicados nos media como se constituíram no paradigma da memória coletiva portuguesa sobre o Holocausto. Ou seja, a imagem de Portugal é a de um porto seguro em meio da tempestade que permitiu o trânsito de refugiados perseguidos pelo nazi -fascismo.

 

NOVA E VELHA HISTORIOGRAFIA

Logo no início do terceiro capítulo, que trata do antissemitismo em Portugal (pp. 149 em diante), Irene Pimentel estabelece o que foi o ponto cardinal da «divisão das águas» entre ambos regimes: a centralidade do antissemitismo no regime nazi e com certeza sua razão de ser considerando o modus operandi do regime nos assuntos de política interna (conforme Richard Evans, no 2.º volume de sua trilogia sobre o III Reich1), e na política externa para assegurar o «espaço vital» para a raça ariana que incidiu na política de aniquilação do bolchevismo, diga -se, judaísmo. Em contraposição a esta obsessão ideológica racial e antissemita nazi encontramos o modelo oposto em Portugal que logrou desativar grande parte dos preconceitos e ódio aos judeus que estiveram impregnados no período inquisitorial de 1536 a 1821. Neste capítulo, Irene Pimentel aproveitou duas «aberturas de parênteses» (pp. 200 -209) para refutar objecções e reflexões de outros investigadores sobre o papel histórico do antissemitismo em Portugal, principalmente durante o salazarismo2. Questão cujas proporções, funcionalidade e importância, seria mais evidente se comparada com a Espanha e não apenas nas notas finais. Através de um quadro comparativo se percebe o papel dos mitos antissemitas na política e cultura espanholas e não apenas nos meios falangistas3. Neste sentido são oportunas as passagens de Pimentel ao tratar do Movimento Nacional-Sindicalista (mns) de Rolão Preto em relação ao III Reich, ao racismo e ao antissemitismo (pp. 163 -165). Items inovadores, importantes e interessantes para a historiografia são aqueles que tratam da exportação e institucionalização das medidas totalitárias nazis no milieu alemão de Lisboa (pp. 183 -198). Pelos exemplos apropriados que aparecem no livro sobre o quotidiano dos alemães em Portugal se percebe a maneira pela qual instituições partidárias e estatais nazis interferiram em suas vidas privadas a fim de criar laços de dependência, identificação e subjugação ao nazismo e ao III Reich. No sistema totalitário alemão não havia limites de fronteiras. Inovadores também são os capítulos que tratam da opinião pública portuguesa e a imprensa face ao Holocausto (p. 739 em diante). E há vários itens desta obra como, por exemplo, «Em Portugal, era melhor ser judeu do que comunista» (pp. 457 -464 e 862), que apareceram originalmente no livro anterior de Irene Pimentel, Os Judeus em Portugal (pp. 224-233).

As autoras mencionam uma grande quantidade de dados estatísticos que encontraram nos informes, documentos e imprensa da época, produzidos na altura dos acontecimentos, em muitos casos tendenciosos, que leitores leigos eventualmente os considerarão verdadeiros mas que raramente fazem jus à realidade histórica. Pelo contrário, dados numéricos e estatísticas citados na íntegra em base aos documentos, deveriam ser comentados, corrigidos e contextualizados face as investigações4.

Considerando o Holocausto como fenómeno que incide primeiramente nos protagonistas principais, diga -se os alemães e a Alemanha nazi e logo aos países, regimes, instituições e populações europeias que direta ou indiretamente estiveram envolvidos na perseguição, extorsão, expulsão, deportação e assassinato dos judeus, é mister perguntar em que consiste a relação e atitude de Portugal com o Holocausto? Isto, principalmente em vista de as autoras indagarem «porque motivo não foi, até o momento, mais estudado o relacionamento de Portugal com o Holocausto?» (p. 21), afirmando porém mais adiante que o tema central do livro é «tratar de percecionar a atitude de Portugal na II Guerra Mundial e face ao Holocausto» (p. 24) para, conforme afirmamos, interligar Portugal com a II Guerra Mundial e com Portugal ao Holocausto. Apesar do enfoque principal se destinar aos anos da Guerra, o Holocausto não se restringe aos anos dramáticos da perseguição e assassinato dos judeus, porém ao período da era nazi em sua totalidade, de 1933 à 19455. Portanto, do ponto de vista da história do Holocausto, a primeira metade do livro não é menos importante do que a segunda parte. No entanto, é preciso considerar que na perspectiva da II Guerra e do Holocausto a Península Ibérica entrou em cena apenas a partir da conquista alemã dos países da Europa Ocidental e terminou seu papel histórico nesta questão com a libertação da França, antes mesmo da rendição da Alemanha aos aliados. Sob este ponto de vista, surpreende a pergunta das autoras «porque motivo não foi, até o momento, mais estudado o relacionamento de Portugal com o Holocausto?» Não encontramos resposta a esta pergunta mas deve -se observar que a historiografia, com a colaboração de investigadores portugueses e do estrangeiro, tem feito grandes progressos. Basta mencionar os trabalhos da própria Irene Pimentel, de Ansgar Schäffer, António Louçã, António Melo, Christa Heinrich, Avraham Milgram, Esther Mucznik, João Medina, Manuela Franco, Manuel Loff, Patrick von zur Mühlen, Rui Afonso e não só. E no entanto, sendo a historiografia uma sinfonia inacabada, há temas que todavia não receberam a devida atenção. Por exemplo, pouco sabemos, e a bem da verdade quase nada, a respeito de Salazar em relação aos judeus principalmente no período que trata a obra de Irene Pimentel e Cláudia Ninhos. Este lapso é uma regra na literatura que versa sobre o ditador português. Talvez uma das razões se deva a que Salazar nunca se pronunciou a respeito, conforme afirma Filipe Ribeiro de Meneses na sua extensa biografia sobre Salazar6. Seria portanto esta razão para o historiador dedicar duas páginas apenas do seu livro que cobre 800 páginas para a questão judaica7? Não menos importante é saber como atuaram os líderes da Igreja Católica portuguesa durante o Holocausto, assunto relativamente ao qual a historiografia permanece omissa.

Tendo em vista a literatura publicada sobre Portugal, os judeus e o Holocausto, o livro da Irene Pimentel e Cláudia Ninhos é o que apresenta a maior dimensão de temas, informação e amplitude horizontal. Uma contribuição que transcende o âmbito acadêmico e um bom prato para leitores com fôlego e ávidos por conhecer um capítulo sui generis da Humanidade.

 

NOTAS

1 Evans,Richard – O Terceiro Reich no Poder. São Paulo: Planeta, 2012, pp. 61-620.         [ Links ]

2 Milgram, Avraham – Portugal, Salazar e os Judeus. Lisboa: Gradiva, 2010, pp. 67 -70;         [ Links ] loff, Manuel – As Duas Ditaduras Ibéricas na Nova Ordem Eurofascista (1936 -1945): Autodefinicão, Mundivisão e Holocausto no Salazarismo e no Franquismo. Florença: Instituto Universitário Europeu, 2004.         [ Links ]

3 Vejam a interessante investigação de Rohr,Isabelle – The Spanish Right and the Jews, 1898 -1945. Londres: Sussex Academic Press, 2007;         [ Links ] ou Chillida, Gonzalo Alvarez – El antisemitismo en España. Madrid: Marcial Pons, 2002.         [ Links ]

4 Apenas a título de exemplo, cf. os dados das pp. 648 e 819.

5 A título de exemplo cf. as obras de Longerich, Peter – Holocaust – the Nazi Persecution and Murder of the Jews. Oxford: Oxford University Press, 2010,         [ Links ] e de Friedlander, Saul – A Alemanha Nazista e os Judeus: Os Anos da Perseguição, 1933 -1939, vol. I, e Os Anos de Extermínio, vol. II. São Paulo: Perspectiva, 2012.         [ Links ]

6 Meneses, Filipe Ribeiro de – Salazar. São Paulo: Texto Editores, 2011, p. 264.         [ Links ]

7 Ibidem, pp. 276 -278.