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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

ENSAIO BIBLIOGRÁFICO

Novos construtores e velhos forjadores

 

René Pélissier

Historiador. Autor de Les campagnes coloniales du Portugal, 1844-1941 (2004) e, com Douglas L. Wheeler, História de Angola (Tinta-da-China, 2009).

 

Como sempre, esta crónica tem o objetivo principal de chamar a atenção de alguns leitores para livros recentes sobre um campo preciso da história de Portugal: os cerca de dois séculos de colonização (xix e xx), completados pelas tribulações da descolonização e dos palop, com algumas espreitadelas à África hispânica e a Timor. Portanto, nada de original. Todavia, e em jeito de preâmbulo, cremos por bem prestar homenagem a uma geração de pioneiros pós-salazaristas que revolucionaram os estudos coloniais (e pós-coloniais) a partir dos anos 1990. Não que antes deles existisse apenas um campo de ruínas de antigas cidades. Havia simplesmente um terreno inculto, uma terra de ninguém perigosa e abandonada aos militares e aos missionários, com uns cinco ou seis amadores aqui e acolá, na sua maioria colonos aduladores e autocomplacentes. Os que não estavam de acordo com o evangelho luso-tropicalista calavam-se, exilavam-se e – pior ainda – adotavam um credo maniqueísta em que se ensinava que tudo era negativo, indigno e horrível nas aventuras ultramarinas de Portugal: o argueiro no olho do vizinho e a tranca no olho do praguejador. De que queremos então falar? Da situação da historiografia contemporânea consagrada às dependências de Lisboa, antes do estabelecimento do Estado Novo, durante o seu esplendor e nos primeiros anos da II República. Os historiadores portugueses que trabalharam sobre estes assuntos e estas épocas não muito longínquas jamais se poderão desculpar completamente de ter elaborado uma vulgata ultranacionalista que irritava os raros autores estrangeiros que os instavam a abrir finalmente os olhos para as realidades do Império. «Ratazanas viscosas» ou «víboras lúbricas», para adotar o vocabulário de um outro império exposto às críticas externas, estes especialistas exteriores não eram, de resto, sempre isentos de parcialidade e de segundas intenções políticas. E, livres das perseguições da pide, nada arriscavam. A favor dos historiadores ou arquivistas dos anos 1930-1975 (e mesmo para além dessa data), lembramos entretanto o facto de terem reunido – por vezes «limpando» ou descartando as peças mais comprometedoras – massas documentais sobre os séculos xix e xx, que deram à estampa e que foram muito úteis aos seus sucessores. Cultivando a desmesura, ao sabor de decisões políticas ou de disponibilidades financeiras aleatórias, lançaram-se em compilações sem amanhã, condenadas a uma existência precocemente interrompida. Mas foram melhores que nada ou que a anarquia reinante em certos arquivos de Lisboa, Luanda e provavelmente Lourenço Marques.

E, no meio de tudo isto, onde estavam as sínteses? Já se tinham reunido alguns ossos, mas os cozinheiros continuavam a apimentar imperturbavelmente a glória do século xvi, inventando-a ou tornando-a mais magnífica, para lutar contra a ingratidão do presente. E foi aí, sobre esta base frágil que, após uma vintena de anos, apareceram os «novos construtores» da historiografia colonial portuguesa.

Na sua maioria são universitários ou investigadores que estudaram no estrangeiro ou frequentaram colegas que, em Lisboa ou noutros locais, trabalharam com métodos e exigências documentais aprendidos na Europa ou nos Estados Unidos, e que nada têm que ver com aquilo com que as gerações anteriores se contentavam. Lemos as bibliografias que utilizaram e perguntamo-nos em que bibliotecas portuguesas encontraríamos os livros que citam. Será um mistério, quando se conhece a pobreza lendária das bibliotecas ibéricas em livros acerca dos assuntos estudados redigidos em inglês, francês ou alemão...

Não contámos todos estes «novos construtores», mas não nos surpreenderia que passassem já da trintena, o que é notável. No entanto, o «grande público» que continua a ler não absorve prioritariamente o resultado dos seus trabalhos, mas as velhas lengalengas passadistas acerca da grandiosidade, da bondade, etc., da expansão portuguesa. Enquanto estes pioneiros não terão passado a fronteira do ensino primário e dos seus manuais, os seus esforços para esclarecer o que realmente se passou só interessam aos especialistas. A revolução ao nível da escola primária – sem cair no denegrimento sistemático, como se constata em certos países onde a história colonial é tema minado de excessos – continua por cumprir, para se alcançar uma visão equilibrada do que permanece, afinal, uma componente muito importante do destino de Portugal.

A tradução da tese de doutoramento defendida no King’s College de Londres por Miguel Bandeira Jerónimo1 é um texto que impressiona pelo objeto e pelo tratamento. Não dispomos do espaço nem da competência necessários para examinar com profundidade o tema tratado. Ficámo-nos por trabalhos como os de Latour da Veiga Pinto para o Congo, as sínteses de missionologia de Silva Rêgo e de António Brásio, e outros títulos menores acerca dos Missionários do Espírito Santo no Sul de Angola. Com Bandeira Jerónimo desfolham-se a fundo as relações entre Lisboa e o Vaticano durante uma época crucial para a sobrevivência do Império em África (1820-1890), mas vai-se ainda mais longe, até às fricções com os batistas britânicos no Congo português e os espiritanos no Norte e no Sul, e também com o ogre insaciável que foi Leopoldo II. O autor trabalhou em dois arquivos portugueses (Arquivo Histórico Ultramarino e o arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros), dois franceses, dois romanos e dois britânicos. Nos anos 1960-1975 foi-nos recusado o acesso a três destes oito arquivos e os outros nada tinham que ver com o que pretendíamos. O que significa que as condições de investigação para o conhecimento do século xix em Angola evoluíram num sentido favorável em apenas uma geração. Um trabalho exemplar, em definitivo, com dois grandes índices.

Do mesmo autor, agora como organizador de uma recolha de contributos temática e temporalmente alargados, convém citar, na mesma editora, O Império Colonial em Questão (sécs. XIX-XX). Poderes, Saberes e Instituições2. Encontramos aí dezanove especialistas, com vários a atacar de frente a propaganda do Estado Novo. O texto, muito recheado de notas de rodapé, por vezes com bibliografias exuberantes, confirma a nossa impressão inicial: assistimos a uma revolução científica, ou então a uma abertura que abala a velha rotina. Todas as parcelas imperiais são levadas em conta e a enumeração integral dos diferentes capítulos exigiria uma página inteira. O primeiro, por ordem de apresentação, constitui um avanço óbvio em relação ao que se escrevia há quarenta anos acerca da revolta de janeiro-fevereiro de 1961 na Baixa do Cassanje, graças à exploração de peças de arquivo, onde se vê que o que certos administradores e militares publicavam em livros de recordações posteriores contradiz totalmente o que deixavam passar nos relatórios oficiais. Os dois autores falam de terror, de repressão. Texto impressionante. Outros textos sobre a diplomacia imperial, as missões religiosas, o trabalho indígena, a economia, a agronomia, as ciências sociais ensinadas aos futuros administradores, a cultura imperial instilada na população metropolitana, o nacionalismo, as coleções etnológicas, as mulheres, a literatura, etc., dão um vasto panorama do que preocupa muitos especialistas, que exploraram aqui as suas teses, publicadas ou em preparação, para oferecer o que têm de melhor. É uma recolha que pode servir de montra de exposição internacional dos progressos conseguidos em algumas décadas em Portugal. Entretanto, uma questão lancinante continua a atormentar-nos: as vendas em livraria estarão à altura das nossas expectativas? Assim o desejamos para o futuro. Será que em 2050 se encontrará este livro importante nos alfarrabistas?

A última questão não se coloca para os dois títulos que abrem a secção angolana desta crónica. Quem possui, mesmo nas dezenas ou centenas (?) de associações portuguesas de retornados ou de antigos combatentes, os livros que se seguem? “We did not see it even in Afghanistan”. Memoirs of a Participant of the Angolan War (1986-1988)3, de Igor Zhdarkin, e The Oral History of Forgotten Wars. The Memoirs of Veterans of the War in Angola4, publicado sob a direção de Gennady Shubin, revelam, no mínimo, as proezas linguísticas dos russos em geral e a sua vontade de dar a conhecer ao estrangeiro, numa língua acessível ao maior número, o que foi a sua participação – mais ou menos minimizada ou ocultada, mesmo na Rússia, na época – na guerra contra a Unita e os sul-africanos. Ainda não vimos uma única tradução de um texto factual de veteranos portugueses. O que existe está em alguns romances, mais célebres pelos méritos literários do que pelos contributos históricos. O texto inglês de Zhdarkin parece ser a tradução parcial da versão russa (pp. 1-246), que ocupa a primeira parte do volume de 516 páginas. As 150 páginas em inglês relatam as experiências do intérprete Zhdarkin (russo-português e português-russo) na grande batalha decisiva de Cuíto Cuanavale (1987-1988). Este texto importante não é idêntico ao que foi publicado sob a sua assinatura e a de Andrei Tokarev em Bush War, The Road to Cuito Cuanavale…, (Auckland Park, África do Sul: Jacana Media, 2012, 216 páginas, fotografias a preto e branco). O livro em russo e em inglês de 2008 contém mais detalhes pessoais e Zhdarkin esteve igualmente ao longo do Cunene em 1986 e/ou 1987.

The Oral History of Forgotten Wars contém entrevistas a dois oficiais russos que combateram, o primeiro também no Cuíto Cuanavale (1986-1988) (pp. 25-46) e o segundo no Moxico. Texto muito técnico e franco acerca dos altos e baixos das ofensivas cubano-soviéticas, no primeiro caso. Em resumo, um bibliófilo português que quisesse completar a sua coleção angolanista deveria possuir os dois livros publicados em Moscovo e o que saiu na África do Sul em 2012. Coragem, camarada!

Estes testemunhos de soldados podem ser completados com a análise dos conflitos5 feita por uma politóloga, e provavelmente socióloga da Universidade Humboldt de Berlim. A partir de entrevistas em Luanda e no Huambo, e de uma bibliografia esmagadora, a investigadora demonstra que a paz regressou a Angola sem demasiados sobressaltos, graças à adaptabilidade da população, que teve muito tempo para se exercitar, entre as exigências do mpla e as da Unita, de 1975 a 2002. Com efeito, partilhamos a opinião da autora de que a arraia-miúda estava a mil léguas dos adeptos da Guerra Fria e dos gurus de Washington e de Moscovo, e que mobilizou todos os recursos das sociedades africanas para sobreviver sem se preocupar com slogans políticos. Não é um texto fácil para amadores preguiçosos, mas um produto puro da pesquisa universitária à alemã. Numerosas citações aligeiram a tensão exigida do leitor. Em suma, um balanço um pouco esotérico, mas tudo o que lá é afirmado é justificado. A obra permanecerá uma pedra angular para conhecer os dois monstros que disputaram o seu país com o ferro e o fogo, sem se preocuparem em terminar a luta de morte que pôs a sangrar quase metade, ou mesmo dois terços, do mato. Em comparação, no plano das perdas e dos traumatismos, a guerra – as guerras – colonial(ais) foram simples «arranhões». Não o esqueçamos, e digamo-lo aos que aqui chamamos de «velhos forjadores», que continuam a martelar o metal das recordações de guerra para esquecer os sofrimentos de juventude.

Dir-se-á o que se quiser da «paraliteratura» elaborada pelos antigos combatentes, mas a verdade é que exige do crítico e do leitor muito menos esforço que a absorção das teses dos politólogos e assimilados. O fator cansaço deve também entrar em linha de conta numa crónica bibliográfica. Portanto, voltemos geograficamente atrás com Olhares Sobre a Guiné e Cabo Verde6: não hesitamos em afirmar que os trinta autores deram o seu melhor para coligir esta espécie de compêndio da guerra colonial na Guiné – também anexaram alguns capítulos sobre Cabo Verde, que saiu grande vencedor da descolonização, sem conhecer grandes agitações nem vítimas –, e que é um dos mais ambiciosos e mais conseguidos. Porquê? Porque foi redigido sobretudo por antigos oficiais ou suboficiais que lutaram na Guiné, e que se coordenaram razoavelmente bem para constituir uma espécie de enciclopédia político-militar, desigual e incompleta, mas sólida e não lacrimejante, onde os desabafos pessoais e os ataques ad hominem são, felizmente, raros. Entre os capítulos mais úteis ou originais podem citar-se os relativos à ação psicológica, e os que relatam algumas operações terrestres e, sobretudo, as da Marinha, que desempenhou um papel primordial – de que o episódio mais célebre é o de Alpoim Calvão quando atacou, como um verdadeiro corsário, a Guiné Conakry (meio desastre ou semissucesso?). Há ainda páginas sobre a aviação e uma introdução à produção editorial abundante dos antigos combatentes que publicaram um ou mais livros sobre esta Guiné. O território, incontestavelmente, marcou com força o coração e o corpo destes soldados obrigados a baterem-se por uma tese assente num mito histórico. Sem colonos em número suficiente e com uma importância económica quase nula, este bocado indigesto do «bolo» africano, proporcionalmente à sua superfície e população foi o que custou mais mortes e despesa a Portugal. Neste momento mais não é que a «Costa da Cocaína».

Não insistamos mais sobre esta banalidade, e viajemos para margens mais «acolhedoras»: as de Moçambique. O livro de Louis-François Monnier7 é o relato dos doze anos passados em Moçambique (1963-1965 e 1965-1975) de um especialista agrícola suíço integrado em duas missões protestantes helvéticas entre o Limpopo e o Incomati. Sempre lamentámos que a Suíça não tenha alimentado ambições coloniais. Ter-se-ia assim visto como é que se teria preparado para a descolonização. O autor descreve sobretudo a vida quotidiana nesta região meridional ganha à Frelimo de Mondlane. Não insiste demasiado sobre a transição de 1974-1975, as promessas da Frelimo e a tomada de terras aos colonos. Em 1993 volta a deixar as suas vinhas europeias para preparar a ida de uma missão médica encarregue de acolher os desmobilizados da Renamo. Prudente nos comentários políticos, conta que no seu tempo existiam trinta missionários suíços, mais ou menos vigiados pela administração portuguesa. Criou para o seu rebanho uma cooperativa africana de 183 hectares de culturas. Isto bastava para o tornar suspeito.

E partamos com os «novos construtores» lusófonos, universitários e investigadores, e com Os Outros da Colonização8, em que uma das contribuições se debruça precisamente sobre a missão suíça no Sul de Moçambique (1930-1975). Ao multiplicar colóquios de que a proliferação, na nossa opinião, é uma doença chamada «coloquialite», as instituições constrangem os participantes a fragmentar os seus trabalhos a longo prazo, em detrimento do que poderiam realizar de fundamental. Impedem-nos, assim, de se renovar. Trata-se de uma epidemia anglo-americana que contaminou a maioria das universidades e é nefasto para o avanço dos conhecimentos, com uma mobilização de energias desproporcionadas em relação aos ganhos científicos. A autora não tem menos de quatro trabalhos, entre os quais uma tese, publicados sobre o mesmo assunto (a missão suíça) desde a década de 1990. Dir-se-á o mesmo de outros sete ou oito autores desta recolha, que se condenam à sorte de se repetir, com algumas variantes. Tornam-se, a pouco e pouco, velhos forjadores que batem sempre no mesmo metal, cada um obrigado a entrincheirar-se no seu feudo para ser o especialista, e pau para toda a obra, de um só assunto. Não se deveria, portanto, avaliar a produtividade dos investigadores em função de um carrossel de aparições incessantes, de uma tribuna a outra, de uma revista a um seminário; bem pelo contrário, dever-se-ia deixá-los retomar fôlego e explorar outros campos. São vítimas de uma moda que, a longo prazo, ameaça a sua criatividade.

Em resumo, este livro é consagrado a alguns grandes temas todos importantes, mas raramente originais, tais como a sociedade e a alteridade, as questões ligadas à assimilação, à religião e à guerra, passando pela fotografia, a imprensa, as mulheres portuguesas no conflito armado e as tropas coloniais africanas, e terminando com o fim lamentável das comunidades europeias e asiáticas.

Regressemos aos nossos «velhos forjadores» de farda. Já se viram russos e portugueses, e portanto nada nos impede de deitar uma vista de olhos aos rodesianos brancos que ainda não acabaram de recordar os seus feitos de armas. Estão nos antípodas dos antigos combatentes portugueses, de que um bom número quer continuar a lamentar-se até morrer. Também os rodesianos brancos perderam a guerra contra os nacionalistas negros mas os que a descrevem beneficiam de condições mais favoráveis. Em primeiro lugar, têm um público internacional infinitamente maior que o dos lusófonos, pois inclui todos os amadores de relatos de guerra dos países anglófonos – e Deus sabe como nos Estados Unidos gostam de relatos de guerra, da Guerra da Secessão até à do Afeganistão, passando pelos dois conflitos mundiais, a Coreia, o Vietname, o Iraque, etc. O mesmo se passa na Grã-Bretanha e na África do Sul, sem esquecer a diáspora branca pós-Mandela. Em segundo lugar, os relatos rodesianos são quase sempre redigidos por profissionais das armas: nas suas páginas raramente existe o veneno do derrotismo. Lutaram um contra vinte ou trinta, enquanto os portugueses se batiam dez ou vinte contra um, e têm a sensação de ter alcançado grandes feitos graças à engenhosidade e à combatividade: encostados à parede, a sua motivação era a luta pela vida. Para os portugueses, pobres metropolitanos desenraizados, enviados – e, na sua maioria, obrigados – para terrenos que não conheciam, a guerra não possuía esta parada determinante, que a propaganda oficial não conseguia substituir com o apelo ao patriotismo imperial. A cultura da guerra desertara há muito a mentalidade portuguesa e o exemplo dado pelos oficiais de Lisboa era em geral pouco propício para vertebrar estas tropas de voluntários à força. Em terceiro lugar, e contrariamente ao lento mordiscar da guerrilha em Angola, ao recuo inevitável na Guiné e aos erros do comando português em Moçambique, o Exército rodesiano acreditara que ao multiplicar os ataques – muitas vezes vitoriosos – contra as bases nacionalistas de Mugabe em Moçambique, poderia impor uma solução puramente militar, dispensando Salisbury de concessões políticas fundamentais.

Dingo Firestorm: The Greatest Battle of the Rhodesian Bush War9 é um excelente exemplo desta exaltação dos feitos militares, retemperador, otimista e convincente. Sim, os rodesianos, com relativamente poucos meios e homens, conseguiram derrotar os seus inimigos nos confrontos diretos com as tropas da zanu (Zimbabwe African National Union) e da Frelimo. O relato deste raide aéreo (novembro de 1977) sobre solo moçambicano é um texto ao mesmo tempo político, descritivo, jornalístico, anedótico e técnico, colocando em cena os protagonistas brancos (os aviadores, a guarda avançada das unidades paraquedistas e das forças especiais rodesianas). Aqui lemos dezenas de páginas acerca da «colaboração» difícil e mesmo desdenhosa com as tropas portuguesas no distrito de Tete e, depois da sua evacuação, as confrontações com os novos poderes saídos da independência de Moçambique. As citações copiosas e esclarecedoras retiradas de publicações e de entrevistas com os participantes aligeiram a tensão inevitável. O autor é um aviador sul-africano que combateu na Rodésia. Os seus antecedentes explicam o facto de não trazer Mugabe no coração, e é de se perguntar se não terá razão, devido aos resultados e às particularidades da gestão dos assuntos públicos, depois de décadas em Harare.

Shadows of a Forgotten Past10 tem a mesma origem e o mesmo objetivo, mas o seu autor é um «animal de guerra», uma «cabeça quente», da matéria de que são feitos os mercenários de exceção. Aquilo que gosta de fazer é de lutar de armas na mão, e pouco importa a causa defendida. É um londrino de origem, de origem popular (o pai era agente de apostas), voluntário das tropas especiais britânicas (sas), e depois das rodesianas em 1974. Relata as suas experiências e sabe interessar os leitores (pelo menos os que apreciam este género de literatura). Não o seguimos na nomenclatura das suas façanhas, de que uma grande parte se desenrola no mato moçambicano. O que é útil no seu livro é: primeiro – a descrição das suas operações nos Selous Scouts do outro lado da fronteira; segundo – as memórias alcoolizadas de um português fantasioso, aventureiro de alma, alistado nas sas rodesianas, que noutro século e na Ásia teria estado num bando de mercenários conduzidos por Fernão Mendes Pinto, mas que na vida real participou, desde 1977, na criação da Renamo na sua primeira versão, sob a tutela rodesiana; terceiro – o capítulo consagrado (pp. 156-176) precisamente à génese da Renamo. Se existe algum período obscuro, é este.

Há também coisas acerca das atividades do autor numa empresa de segurança em Luanda por conta da Air France em 1993 e de traficantes de diamantes e mesmo da onu! O quadro descreve uma capital em que tudo é possível, mas onde reinam a violência e uma corrupção inimaginável, institucional e privada.

Da guerra considerada como um rito de passagem pelos «heróis» que se saíram bem dela, saltemos para os politólogos que estudam os seus sobreviventes civis. O título que se segue é uma longa receita aplicável aos cambojanos, aos moçambicanos e aos bósnios. É explícito: Restaurer la confiance après un conflit civil11. Apresenta diferentes terapias pois a autora examina como se deve restabelecer a confiança no Estado, nas instituições públicas, na justiça, na sociedade civil, na vida política, na economia, no Outro, na família, na religião, na comunidade. Numa palavra, no futuro. É um vasto programa que Pascaline Gaborit elaborou a partir dos seus inquéritos em três países, um dos quais Moçambique. O que pertence apenas a este país não pode ser apreendido se não se ler toda a tese que, do ponto de vista conceptual, é muito rica. Resta saber se os pacientes a lerão. Quanto aos que despoletarão as próximas guerras civis, noutros locais do mundo, a leitura não se inscreve no seu programa e o único futuro que lhes interessa é o seu, quando tiverem esmagado as «baratas», ou seja, os Outros.

Regressemos aos nossos «velhos forjadores», de que o campeão olímpico do martelo é sem dúvida o suíço Max Liniger-Goumaz que, ao longo de toda a vida, publicou umas boas quatro dezenas de volumes apenas sobre a Guiné Espanhola, agora Equatorial. A última (?) em data da sua produção livresca ainda contém novidades e o subtítulo inscreve-se exatamente na trajetória da cruzada sem fim: Un demi-siècle de terreur et de pillage12. Recomendamos a leitura do capítulo xii, intitulado «Les aboyeurs du regime», a quem quiser sondar os poços da vaidade de certos ditadores não unicamente africanos, e a incomensurável imaginação dos escroques que os lisonjeiam, entre os quais numerosos mestres na reparação de reputações perdidas. Liniger-Goumaz é um polemista temível que tem todo o futuro à sua frente, pois à medida que os fundos consagrados à propaganda aumentam, o leque de amigos do regime abre-se. Encontram-se agora textos de castristas, supostos marxistas, que rivalizam com simples Volpones ávidos de dólares nos louvores ao regime de Malabo. Aos 83 anos o autor continua direito nas suas botas de cruzado da democracia, sem ter a certeza de alcançar a sua Jerusalém celeste. Desejamos-lhe uma longa vida de combates.

Em Timor também há forjadores, mas não da mesma espécie. Aí manipulam outros metais e, como bons herdeiros da colonização portuguesa, é o verbo que lhes sai mais barato. A recolha dos discursos do símbolo da luta pela independência, Xanana Gusmão, ocupa mais de 620 páginas de um volume sumptuoso13. Os discursos são precedidos de quatro pequenos prefácios de homens políticos portugueses (mais um de um ministro timorense) e seguidos de uma curta biografia e dezasseis páginas de fotografias a cores que mostram o autor em encontros com os grandes deste mundo. Diz muito da estatura do homem de Estado de uma metade de ilha sem recursos intrínsecos, o que deveria fazer muitos invejosos em muitas capitais. É mesmo excecional, e não vemos no Terceiro Mundo senão um outro poeta, Senghor, e uma outra autoridade moral, Mandela, na sua categoria.

Fica o conteúdo essencial deste livro promocional: os discursos enquanto Presidente da jovem república (2002-2007) e enquanto primeiro-ministro (2007-2012). Não sabemos se foram pronunciados em português num país onde muito menos de dez por cento da população domina a língua. É possível que não, pelo menos alguns deles. Mesmo à razão de 62 páginas por ano no poder, é muito para sacrificar apenas à palavra. O leitor verá se existe uma linha de rumo e quais são os temas desenvolvidos. Também Salazar e os governadores das suas colónias gostavam de deixar um rasto escrito das suas atividades. A tradição remonta ao século xix. Os historiadores julgam os homens políticos pelas realizações e pelas estatísticas (quando existem). Por enquanto, e apesar das inúmeras dificuldades, Timor pôde, graças a uma ajuda internacional maciça, sair fisicamente das catacumbas. Todos os palop e a maior parte dos outros estados independentes da África não podem dizer tanto. Resta saber se nas sociedades que povoam este crocodilo, difícil de domesticar, se encontrarão continuadores, os «novos construtores» que saberão tomar as rédeas e levarão a melhor sobre os «velhos forjadores» que levantam o nariz de tempos a tempos. Atenção aos golpes da cauda do animal totémico da ilha.

 

Data de receção: 24 de abril de 2013 | Data de aprovação: 1 de julho de 2013

 

Notas

1Jerónimo, Miguel Bandeira – A Diplomacia do Império. Política e Religião na Partilha de África (1820-1890). Lisboa: Edições 70, 2012, 364 páginas.         [ Links ]

2Jerónimo, Miguel Bandeira (org.) – O Império Colonial em Questão (sécs. XIX-XX). Poderes, Saberes e Instituições. Lisboa: Edições 70, 2012, 581 páginas, fotografias a preto e branco.         [ Links ]

3Zhdarkin, Igor – “We did not see it even in Afghanistan”. Memoirs of a Participant of the Angolan War (1986-1988). Moscovo: Memories, 2008, 516 páginas.         [ Links ] As pp. 247-399 da segunda parte do livro são em inglês + fotografias a preto e branco (pp. 403-516), com legendas em russo e em inglês.

4Shubin, Gennady (dir.) – The Oral History of Forgotten Wars. The Memoirs of Veterans of the War in Angola. Moscovo: Memories, 2007, 92 páginas.         [ Links ]

5Beck, Teresa Koloma – The Normality of Civil War. Armed Groups and Everyday Life in Angola. Frankfurt am Main/Nova York: Campus Verlag, 2012, 162 páginas.         [ Links ]

6Cunha, Manuel Barão da, e Paes, José Castanho (org.) – Olhares Sobre a Guiné e Cabo Verde. Linda-a-Velha e Porto: DG Edições & Caminhos Romanos, 2012, 389 páginas, fotografias a preto e branco.         [ Links ]

7Monnier, Louis-François – Deux billets simple course. Des plaines mozambicaines aux Côtes de l’Orbe. Sainte-Croix (Suisse): Éditions Mon Village, 2011, 219 páginas, fotografias a preto e branco e a cores.         [ Links ]

8Castelo, Cláudia, Thomaz, Omar Ribeiro, Nascimento, Sebastião, e Silva, Teresa Cruz e (org.) – Os Outros da Colonização. Ensaio sobre o Colonialismo Tardio em Moçambique. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2012, 361 páginas,         [ Links ] fotografias a preto e branco.

9Pringle, Ian – Dingo Firest-orm. The Greatest Battle of the Rhodesian Bush War. Solihull (Inglaterra): Helion & Company, 2012, xix-266 páginas + 16 páginas de fotografias a preto e branco e a cores.         [ Links ]

10French, Paul – Shadows of a Forgotten Past: To the Edge with the Rhodesian SAS and Selous Scouts. Solihull (Inglaterra) e Rugby (Inglaterra): Helion & Company e GG Books UK, 2012, 203 páginas + 24 páginas de fotografias a cores,         [ Links ] fotografias a preto e branco no texto.

11Gaborit, Pascaline – Restaurer la confiance après un conflit civil. Cambodge, Mozambique et Bosnie-Herzégovine. Paris: L’Harmattan, 2011, 404 páginas.         [ Links ]

12Liniger-Goumaz, Max – Guinée équatoriale. Un demi-siècle de terreur et de pillage. Memorandum. Paris: L’Harmattan, 2013, 226 páginas, fotografias a preto e branco.         [ Links ]

13Gusmão, Kay Rala Xanana – Xanana Gusmão e os Primeiros 10 Anos da Construção do Estado Timorense. Porto: Porto Editora, 2012, 656 páginas + 16 páginas de fotografias a cores.         [ Links ]

 

Tradução de Margarida Lopes