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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

A transformação do conceito de soberania. A emergência política e legal das «autonomias-nação» no quadro da Constituição espanhola de 1978

The sovereignity concept transformation: the political and legal emergence of the “autonomies-nation” concerning the 1978 Spanish Constitution

 

Filipe Vasconcelos Romão

Professor auxiliar do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa e investigador integrado do OBSERVARE. Doutorado e licenciado em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra. Diploma de Estudos Avançados em Política Internacional e Resolução de Conflitos. Investigador na Universidade de Deusto (2008-2010).

 

RESUMO

Este artigo visa abordar a forma como duas identidades nacionais concretas, a basca e a catalã, potenciadas pelos respetivos nacionalismos e pelo processo de democratização espanhol, conseguiram materializar-se política e legalmente naquilo que quali- ficamos como «autonomias-nação». Para chegar à análise deste estudo de caso, começa por percorrer o papel do Estado-nação e a relação entre os conceitos de Estado e nação. Destaca de forma especial a emergência de novas unidades políticas, que o autor denomina «autonomias-nação», que constituem um autêntico desafio ao conceito tradicional de soberania.

Palavras-chave: Espanha, Estado, soberania, «autonomias-nação»

 

ABSTRACT

This article aims to address how two specific national identities, Basque and Catalan enhanced by their nationalisms and by the Spanish democratization process were able to materialize politically and legally in what is qualified as “autonomies-nation”. To get to the analysis of this case study we start to cover the role of the nation-State and the relationship between the concepts of State and nation. It specially highlights the emergence of new political units, which the author classifies as “autonomies-nation”, which constitute a real challenge to the traditional concept of sovereignty, focusing the Spanish case.

Keywords: Spain, State, sovereignty, “autonomies-nation”

 

O nacionalismo tem sido uma das forças dominantes nas políticas nacionais e na política internacional desde o século xix. As unificações de estados como a Alemanha e a Itália, as guerras mundiais ou um conjunto variado e geograficamente disperso de revoluções, que moldaram o sistema internacional tal como o conhecemos, são indelevelmente marcados por fenómenos relacionados com o nacionalismo. No início dos anos 90 do século xx, com a conflitualidade gerada pelo desmantelamento das federações soviética e jugoslava, o conceito recupera parte do protagonismo perdido no contexto do discurso ideológico da Guerra Fria.

Por outro lado, o Estado-nação, forma ambicionada pela generalidade dos nacionalistas para materializar as ambições políticas da sua identidade, nunca deixou de desempenhar o papel principal no sistema internacional. No entanto, este ator evoluiu e as suas transformações internas foram influindo no contexto internacional em que se insere. A nação continua a ser determinante na definição e constituição de um Estado? Os nacionalismos transformaram-se ou têm mantido alguma inflexibilidade face à evolução dos quadros políticos internacional e doméstico? Há novas possibilidades de materialização política das identidades nacionais ou estas continuam a não prescindir do Estado? A pertinência de tentar responder a todas estas questões, entre outras, demonstra a importância do contributo dos estudos em torno do nacionalismo.

O nacionalismo não pode ser observado como um fenómeno excêntrico ou atípico, que só marca presença em acontecimentos violentos ou em manifestações radicais. As identidades nacionais fazem parte dos estados democráticos que, na sua esmagadora maioria, continuam a contar com uma base identitária. Quando esta base é plural, ou seja, quando comporta mais do que uma identidade dentro das suas fronteiras, a democracia pode fornecer os instrumentos necessários para canalizar os conflitos que decorram da sobreposição de interesses dos vários nacionalismos presentes, como tem sido visível nos casos da Escócia no Reino Unido ou da Catalunha em Espanha.

Este artigo visa abordar a forma como duas identidades nacionais concretas, a basca e a catalã, potenciadas pelos respetivos nacionalismos e pelo processo de democratização espanhol, conseguiram materializar-se politicamente naquilo que qualificamos como autonomias-nação.

 

ESTADO-NAÇÃO TRADICIONAL E SOBERANIA

O Estado-nação foi a principal unidade política do sistema internacional nos últimos duzentos anos, funcionando o Estado como a estrutura do poder político e a nação como o seu conteúdo. Independentemente do julgamento que possamos fazer em relação ao facto de o Estado-nação ser uma causa ou uma consequência do nacionalismo, deve reconhecer-se que este está no centro da atividade dos sistemas políticos nacionais e internacional nos últimos dois séculos. Para este protagonismo terão contribuído dois momentos históricos que, embora diferenciados, se complementam como bases deste quadro: a denominada «Paz de Vestefália», em meados do século xvii, e o «despertar das nações europeias», a partir de finais do século xviii. John Breuilly, na obra Nationalism and the State, sublinha o processo que conduziu os reinos da Europa Ocidental, estabelecidos em torno da soberania de um monarca, a estados nacionais e a forma como estas unidades políticas abriram portas à ascensão do conceito político de nação1.

Na mesma linha, João Gomes Cravinho considera que os Tratados de Vestefália, assinados em 1648 com o objetivo de pôr fim à Guerra dos Trinta Anos, simbolizam a «inauguração da modernidade nas relações internacionais», que se materializa numa «nova ordem internacional baseada em entidades territoriais distintas e autónomas»2. Estas não são mais do que os estados modernos, que são dotados de uma dupla qualidade: «superioridade interna e insubmissão externa», o que consubstancia o princípio da soberania, ao qual está subordinada esta nova ordem3. Vestefália fornece-nos, assim, o Estado soberano como ator internacional por excelência. No entanto, os primeiros grandes impulsos a favor da coincidência entre a nação e o Estado só irão ocorrer no final do século seguinte, a partir de 1789, com a Revolução Francesa e com o posterior desenvolvimento do nacionalismo alemão4.

Este modelo de organização permanece, em linhas gerais, consideravelmente atual. Breuilly sublinha a importância do Estado e o caráter universal que acabou por assumir e que mantém hoje5. Porém, esta relativa estabilidade não é sinónimo de imobilismo. Apesar de o Estado manter o estatuto de principal ator político, registaram-se algumas mudanças que acabaram por ter consequências para a estrutura do sistema internacional. Julgamos importante assinalar três, profundamente relacionadas entre si: a emergência de atores não estatais, como as organizações internacionais, as organizações não governamentais ou os grupos empresariais multinacionais; o dinamismo e a flexibilidade demonstrados pelo conteúdo do princípio da soberania; e a redefinição interna dos próprios estados, que, nas últimas décadas, começaram a demonstrar um maior grau de heterogeneidade interna, abandonando a imagem monolítica de que pareciam gozar.

 

ALTERNATIVAS CONCEPTUAIS À TRADICIONAL EXIGÊNCIA DE SOBERANIA

Para efeitos do que pretendemos tratar neste texto, interessa-nos, sobretudo, a crescente heterogeneidade demonstrada por alguns estados. A este propósito, convirá sublinhar que grande parte da teorização e da ação política desenvolvidas em torno do nacionalismo e das aspirações políticas das identidades nacionais assume que o principal corolário das suas ambições é o Estado-nação6. Porém, o dinamismo interno revelado pelas realidades intraestatais acabou por pôr em causa a exigência inalienável da soberania plena. Scott L. Greer, no início da obra Nationalism and Self-Government, considera errado pensar nos estados-nação unificados como unidade política básica, apesar da adequação do seu papel como mito ou como meta a alcançar7. Este autor destaca também a importância do ressurgimento daquilo que qualifica como «nacionalismos sem Estado» (stateless nationalisms) e do desenvolvimento de governos regionais como veículo de representação de nações mais pequenas8. Na mesma linha, pode ser citado o «nacionalismo liberal» de Yael Tamir9 ou o «pequeno nacionalismo» de Mary Kaldor10.

O «nacionalismo liberal» sublinha o fator cultural como potencial agregador de realidades nacionais e não considera que o objetivo político, por excelência, de uma nação seja, necessariamente, o estabelecimento de um Estado independente e soberano. Diferentes nações podem acomodar-se num mesmo Estado sem que daí advenha, como consequência automática, um conflito violento. Não obstante, Tamir admite que a perspetiva dominante, desde o século xviii, assume a nação como única fonte de legitimidade do Estado. Como consequência, cada grupo que se autoidentifica como nação pretende instituir o seu próprio Estado, enquanto os membros de um Estado aspiram constituir-se como nação, não se limitando à neutra denominação de população11.

Yael Tamir propõe mesmo um modelo alternativo ao do direito à autodeterminação nacional democrático (político): o da «autodeterminação cultural»12. Este não conduzirá a uma independência política, mas permitirá a uma nação preservar os seus traços identitários, no âmbito de um sistema democrático. Torna-se evidente que esta perspetiva pretende acentuar o fator democracia em detrimento do fator soberania, o que constitui uma forma de preservar a estabilidade do sistema internacional, ao mesmo tempo que a potencial conflitualidade interna é canalizada para vias de descompressão democráticas.

David Miller também demonstra grande prudência quando equaciona potenciais independências nacionais, o que o leva a defender a necessidade de uma teoria da secessão13. É evidente o receio de Miller em relação às consequências subjacentes à assunção política do princípio de autodeterminação das nações, razão pela qual a sua teoria acaba por não ser muito mais do que a proposta de uma análise casuística de cada situação para, em função de cada realidade concreta, poder ser formulado um julgamento. Este julgamento poderá determinar a criação de um Estado independente, mas também poderá levar à instituição de uma autonomia local ou de um Estado federado14. O autor entra assim em rutura com o conceito de Estado nacionalmente homogéneo, tradicionalmente defendido pelos nacionalistas.

Will Kymlicka, na obra Multicultural Citizenship, aborda a questão dos direitos políticos das minorias étnicas e das nações minoritárias integradas em estados independentes15. Sendo claramente percetível a sua opinião contrária ao princípio da autodeterminação nacional, assume também uma posição crítica em relação ao individualismo, procurando apresentar uma opção compatível com o liberalismo, que tenha em conta determinados direitos coletivos. Kymlicka considera que a dimensão nacional (coletiva) é inegável na vida política de um Estado, pelo que a mera aplicação do individualismo, tradicionalmente defendido pelos liberais, pode ser geradora de injustiças.

A enorme vantagem de que gozam os membros da nação maioritária de um Estado reflete-se na possibilidade que têm de influenciar as opções políticas governativas (educação e burocracia, por exemplo). Ainda segundo o mesmo autor, a correção destas situações passa pelo reconhecimento de direitos às minorias, o que permitirá algum reequilíbrio no interior do sistema político em questão16. Este reconhecimento acaba por não se materializar em instituições políticas concretas, uma vez que Kymlicka considera o autogoverno (mesmo quando o Estado em que se encontre lhe atribua competências muito limitadas) uma porta aberta para exigências de soberania17.

 

ALTERNATIVAS INSTITUCIONAIS AO MODELO DE ESTADO-NAÇÃO TRADICIONAL

Entre as formas de Estado dotadas de uma organização territorial mais adequada à conjugação de diferentes identidades nacionais dentro de uma mesma unidade política soberana, encontramos o Estado federal e o que Jorge Miranda classifica como «Estado unitário regional»18. Este, também conhecido como Estado autonómico ou Estado das autonomias, teve um contributo importante para pôr fim à exclusividade da imagem da nação centralizadora como uma identidade que procura subjugar, através do Estado, as suas congéneres periféricas, sem lhes reconhecer quaisquer direitos específicos.

O Estado contemporâneo já não corresponde à imagem padronizada do modelo jacobino e centralizador que tem nos órgãos de soberania nacionais o único ponto a partir do qual é exercido o poder político e soberano. Há autores, como Alexander Cooley e Handrik Spruyt, que se debruçam sobre exercício partilhado de soberania, considerando que esta partilha não afeta o conceito em si mesmo19. Na obra Contracting States: Sovereign Transfers in International Relations, como o próprio título indica, esta partilha é abordada, sobretudo, a partir da perspetiva de transferências de funções soberanas para entidades supranacionais, sendo a questão da transformação do exercício interno da soberania tratada com alguma lateralidade20.

Não obstante, consideramos que, atualmente, coexistem diversos modelos estatais de organização territorial, podendo o Estado unitário regional ter como grande objetivo a acomodação de aspirações políticas periféricas, através do recurso à criação de novos polos de poder, geograficamente não coincidentes com a capital, para os quais são transferidas competências tradicionalmente exercidas pelo governo central. Através da aplicação destas formas jurídico-constitucionais, são criados mecanismos de descompressão que procuram aliviar, pelo menos parcialmente, tensões identitárias através de vias institucionais, o que vai em linha com os teóricos do nacionalismo liberal, quando relativizam o objetivo de independência nacional em favor de processos de autodeterminação cultural e de aprofundamento autonómico ou federal21.

O Estado federal que, pelas suas características, poderia ser encarado como a opção mais lógica para os países democráticos com tensões nacionais internas, acaba por não se revelar muito cativante, pelo que nos é dado a observar pela realidade dos diferentes estados dotados de pluralidade nacional interna. Não é de descartar que haja algum receio em ir muito longe na descentralização formal, o que não prejudica que um Estado unitário regional, na prática, seja tão ou mais descentralizador do que uma federação, em relação às competências que atribui aos níveis infraestatais. É importante assinalar que, nas questões relativas à soberania, o simbólico ainda tem muito peso. A título de exemplo, podemos observar que três dos sistemas federais mais relevantes, o norte-americano, o brasileiro e o alemão, não contam com nacionalismos centrífugos com relevância política no seu seio. O sistema federal canadiano, que abarca a província do Quebeque (que conta com um forte movimento nacionalista centrífugo), entre as democracias ocidentais, parece constituir uma rara exceção. Por outro lado, há vários estados com realidades deste género que optam por modelos formalmente unitários, embora descentralizados, como o Reino Unido, Espanha ou Itália.

Neste contexto, a famosa expressão disjuntiva «Independência ou morte», pronunciada pelo imperador Pedro I aquando da independência do Brasil, que parecia perfeitamente adaptável a décadas de conflitos secessionistas ou expansionistas, deixa de fazer sentido. O objetivo final de independência pode agora ser protelado, pelo nacionalismo centrífugo, para um momento mais oportuno, dando lugar a uma grelha muito mais indefinida e complexa de objetivos intermédios que, uma vez cumpridos, poderão, ou não, dar lugar à secessão. Isto leva a uma alteração de estratégia pelo nacionalismo centrípeto, que pode prescindir do discurso musculado e concentrar-se no menos visível conflito pelos objetivos intermédios. No fundo, este é o debate principal, uma vez que, consoante o que aqui se passe, haverá, ou não, margem para evoluir para o debate final: o da independência nacional.

 

OS CASOS BASCO E CATALÃO

A DEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA E TERRITORIAL DE ESPANHA

A liberalização política em Espanha, que se inicia com a morte do ditador Francisco Franco, em 1975, abriu portas à integração do país nas instituições europeias e à redefinição interna do Estado, que abandonou o centralismo rígido e assumiu parcialmente a diversidade interna. A Constituição de 1978, que fixou o sistema democrático sucessor da ditadura franquista, optou por um modelo de Estado que assenta a soberania unicamente na nação espanhola (artigo 2.º da Constituição). As outras identidades foram classificadas como «nacionalidades», procurando-se com esta terminologia passar a ideia de uma categoria diferenciada em relação à única nação, não lhes tendo sido atribuído qualquer poder soberano formal. De notar que o legislador constituinte, fruto dos alinhamentos políticos da época, nem equacionou seriamente a instituição de um Estado federal, sublinhando explicitamente, na nova lei fundamental, o caráter unitário de Espanha.

Os resultados do processo de democratização, ao nível da soberania, afiguram-se evidentes. O Estado espanhol cedeu competências em duas frentes: no âmbito da integração europeia e no âmbito do processo de descentralização territorial. Neste caso, as beneficiadas foram as novas comunidades autónomas, instituídas com base na Constituição de 1978, o que obrigou a novos equilíbrios políticos22. Surgiram, assim, espaços de compatibilização de identidades que procuraram maximizar o bem-estar dos cidadãos por via genérica e estatal e por via mais particular e autonómica. Convirá ter presente que duas identidades centrífugas integradas em Espanha, a catalã e a basca, contestam o predomínio da identidade espanhola no Estado desde finais do século xix.

Em termos gerais, poderíamos considerar que o processo de democratização territorial espanhol acabou por constituir um jogo de soma positiva para as várias partes envolvidas. Madrid, a capital do Estado, ganhou porque, nas últimas décadas, se transformou no grande centro económico e político do novo Estado democrático, concentrando sedes e representações de grandes empresas nacionais e multinacionais, ao mesmo tempo que manteve o papel de capital e de sede do poder político estatal. Ganharam as diversas comunidades autónomas que, em geral, beneficiaram com a descentralização, que permitiu aos novos órgãos de poder regionais que se estabeleceram constituir-se como polos de atração. Também saíram beneficiados os catalães e os bascos, que obtiveram formas políticas para suportar as respetivas identidades, o que acabou por se revelar muito importante para a sua consolidação e fortalecimento.

André Lecours assume, na obra Basque Nationalism and the Spanish State, a sua adesão ao institucionalismo e afirma que o papel das instituições políticas é fundamental para o desenvolvimento do que denomina «nacionalismo subestatal». Segundo este autor, a organização/divisão territorial do poder em estruturas federais ou descentralizadas acarreta um potencial de geração de identidade, ao criar grupos diferenciados através da agregação e divisão de pessoas23. Somos levados a concordar com Lecours, especialmente no que respeita à simbiose que se estabelece entre identidades e atores políticos.

 

UM SISTEMA ASSIMÉTRICO

A implantação do Estado autonómico espanhol, em geral, e das comunidades autónomas basca e catalã, em particular, foram processos muito rápidos e que permitiram uma observação, em tempo real, do desenvolvimento e da adaptação de identidades, em linha com as perspetivas modernistas de Gellner24 e de Anderson25. A grande diferença reside no facto de não estarmos a falar na atuação política de um Estado independente ou, sequer, de um Estado federado, mas sim dos órgãos políticos de comunidades autónomas que atuam no quadro de um Estado-nação autonómico, que não chega a assumir explicitamente a sua pluralidade interna.

Porém, a não assunção explícita não implica que tenhamos dúvidas em relação à pluralidade nacional espanhola. Esta realidade acarreta um elevado grau de complexidade que se materializa com especial incidência em dois aspetos específicos:

• existência de uma identidade centrípeta – espanhola – que, pela sua dimensão e por razões histórico-políticas de várias ordens, é dominante em termos políticos, culturais e económicos;

• existência de duas identidades centrífugas particularmente fortes – a basca e a catalã.

Uma das características que mais sobressai no sistema autonómico espanhol é a sua assimetria, que começou a ganhar forma mesmo antes da aprovação da Constituição de 1978 e que se foi aprofundando com o desenvolvimento legal e político do regime democrático. Durante o processo de transição democrática, o governo central, liderado por Adolfo Suárez, permitiu e, até certo ponto, incentivou a implantação de instituições «pré-autonómicas» na Catalunha e no País Basco. Estas acabaram por servir de ponte institucional entre os dois regimes. Não obstante, ao não terem sido generalizadas a todo o território espanhol, são uma primeira pedra na materialização assimétrica.

O texto constitucional reconhece as «pré-autonomias» e acolhe-as na primeira e na segunda disposições transitórias. Em concreto, a segunda disposição permite uma via rápida de acesso a competências transferidas pelo Estado central, por parte de territórios com órgãos pré-autonómicos que «no passado tivessem plebiscitado afirmativamente projetos de Estatuto de autonomia»26. Estamos, assim, perante um elemento de diferenciação (territórios que no passado tivessem contado com um estatuto), que, por sua vez, abre portas a um acentuar da diferença (comunidades com acesso a mais competências no momento da sua instituição): a assimetria formal conduz à assimetria material. Não obstante, nesta matéria, a Constituição de 1978 não fica por aqui e a primeira disposição adicional reconhece explicitamente o amparo e respeito pelos «direitos históricos dos territórios forais»27. Tendo em conta que estes direitos não abrangem todo o território do Estado, fica introduzido outro elemento de diferenciação, que potencia a assimetria do sistema.

 

A EMERGÊNCIA DO PAÍS BASCO E DA CATALUNHA COMO AUTONOMIAS-NAÇÃO

Como consequência natural da diferenciação entre comunidades históricas e comuns, o País Basco e a Catalunha são as primeiras regiões a ver os seus estatutos aprovados e a beneficiar de órgãos autonómicos28. Luis Cosculluela Montaner considera que bascos e catalães, pelo caráter pioneiro nesta matéria, acabam por constituir um ponto de referência para as restantes comunidades autónomas, mesmo no caso das instituídas através do artigo 14.º da Constituição, também classificadas como de «via lenta»29.

Às comunidades de «via rápida», por força do artigo 151.º e da segunda disposição transitória da Constituição, é permitido aceder, inclusivamente, às competências de matéria concorrencial com o Estado central, vedadas por um período de cinco anos às restantes comunidades. Em relação à organização institucional, a Constituição também define regras incontornáveis para as comunidades cujo estatuto seja elaborado e aprovado com base no artigo 151.º. É o caso do artigo 152.º que obriga ao estabelecimento de uma assembleia legislativa eleita proporcionalmente por sufrágio universal, a partir da qual deverá ser formado um governo, o que acaba por mimetizar a orgânica dos poderes legislativo e executivo dos sistemas parlamentares30. Os estatutos de autonomia basco e catalão acabam, assim, com as devidas adaptações, por exercer as funções de constituição das respetivas autonomias, definindo as competências que estão a cargo destas unidades territoriais e a forma como se organiza o poder político.

Ao observar o texto dos estatutos basco e catalão, torna-se óbvia a presença do elemento identitário, bem como da tentativa de estabelecer uma relação entre a identidade e a estrutura política que se institui, apesar da presença de representantes dos partidos ativamente adeptos do Estado-nação espanhol no processo de elaboração dos projetos estatutários. Não estamos, em definitivo, perante a instituição de uma região administrativa meramente burocrática, mas sim de algo com vínculos que vão além do elemento político ou jurídico. A porta que o artigo 2.º da Constituição de 1978 abriu, ao reconhecer o direito à autonomia das «nacionalidades», é aproveitada para a maior aproximação legalmente possível a um Estado-nação constitucionalmente impossível31.

O primeiro passo que os negociadores e legisladores responsáveis pela redação dos estatutos parecem ter querido dar foi o da delimitação do próprio espaço político em relação ao Estado. Esta tarefa não foi fácil, tendo em conta dois fatores: o caráter aberto da Constituição em relação à forma concreta e aos conteúdos da organização territorial e a escassez de modelos prévios. Os únicos referentes na história constitucional espanhola, até 1978, eram os estatutos autonómicos catalão, basco e galego, redigidos e sufragados durante a II República, e que, com exceção do catalão, não chegaram a vigorar num período de normalidade democrática (no caso da Galiza, nunca chega a entrar em vigor). Se a Constituição de 1978 não é fechada em relação ao modelo autonómico, o mesmo já não se pode dizer em matéria de identidade nacional, uma vez que o artigo 2.º, como já foi referido várias vezes, não permite contornar a exclusividade da nação espanhola, o que, por sua vez, limita as autonomias com base identitária em termos de autodefinição.

O preâmbulo do estatuto catalão de 1979 assume textualmente a «identidade coletiva da Catalunha» e faz um enaltecimento das suas instituições políticas (Generalitat) como expoente de uma defesa dos direitos fundamentais e liberdades públicas32. No último parágrafo, é feita referência à inalienabilidade do autogoverno da Catalunha. O artigo 1.º do estatuto vai no mesmo sentido, reafirmando a condição de nacionalidade, à luz do previsto na Constituição. O estatuto do País Basco, cujo texto nunca foi revisto, no artigo 1.º, também assume a condição de nacionalidade, mas pode constatar-se uma maior distância em relação a Espanha, identificada como o meio necessário para atingir um fim: «O Povo Basco ou Euskal Herria, como expressão da sua nacionalidade, e para aceder ao seu autogoverno, constitui-se em Comunidade Autónoma dentro do Estado espanhol.»33

A própria terminologia empregue ao longo dos dois textos legais para aludir a Espanha tem subjacente uma conotação política, com os bascos a recorrer exclusivamente à expressão formal «Estado espanhol». Esta parece ser uma forma encontrada para esvaziar o caráter identitário de Espanha, no mesmo estatuto que impulsiona a identidade basca, depois de anos de subjugação à ditadura franquista. Pelo contrário, os catalães não recorrem a nenhuma fórmula evasiva e, mesmo depois da reforma de 2006, empregam com normalidade o termo «Espanha». Em aplicação do ponto 2 do artigo 3.º e do artigo 4.º da Constituição, os estatutos de autonomia basco e catalão também assumem uma língua própria e uma bandeira.

A atribuição de competências às comunidades autónomas foi essencial para a sua consolidação, principalmente se for tida em conta a ausência de enraizamento histórico das novas estruturas territoriais. Desta forma, os cidadãos espanhóis conseguiram materializar algo que lhes era totalmente desconhecido, dado o elevado grau de centralização do regime precedente. No caso do País Basco e da Catalunha, enquanto autonomias da denominada «via rápida», a receção inicial de funções foi mais alargada, o que lhes permitiu atuar em áreas como a saúde e a educação desde o princípio da década de 80 do século xx. Já a maior parte das comunidades autónomas do regime comum só recebem estas competências nos anos 199034.

Uma das primeiras funções que o Estado moderno assumiu, mesmo antes do liberalismo, foi a segurança interna, razão pela qual Jorge Miranda denomina o modelo absolutista como «Estado de polícia»35. As forças policiais eram uma das formas que os governantes tinham para assegurar a manutenção do seu poder e a cobrança coerciva de impostos. Esta função permanece nos modelos liberal e social e a sua importância fica patente nas palavras de Max Weber, quando este se refere ao «monopólio da violência física legítima», como uma das características centrais do Estado36. Quando um Estado cede uma parte deste poder a uma unidade territorial descentralizada, está também a ceder um dos seus símbolos mais relevantes.

Em Espanha, esta cedência não foi levada a cabo de forma explícita. Regra geral, com a Constituição de 1978, o domínio da segurança pública permaneceu no Estado central. No entanto, à semelhança de outros aspetos previstos no artigo 149.º, no mesmo ponto em que é estabelecida a competência também é estabelecida a exceção, ficando aberta a possibilidade de criação de polícias pelas comunidades autónomas, em função do que ficar previsto nos respetivos estatutos. Em virtude da sua condição de autonomias de «via rápida», o País Basco e a Catalunha incluem nos seus estatutos autonómicos esta questão (artigo 13.º do estatuto da Catalunha de 1979 e artigo 17.º do estatuto do País Basco), tendo sido as duas primeiras comunidades a avançar para a criação de forças policiais próprias, integrais e totalmente independentes dos corpos do Estado espanhol.

A Ley 19/1983, do parlamento catalão, instituiu os Mozos de Esquadra37. A formação da polícia autonómica do País Basco não é tão liminar, em função da complexa organização precedente, com corpos de polícia diferenciados por província foral. A sua unificação formal, por via da Ley 4/199238, do parlamento basco, confirma a instituição da Ertzaintza, que, a partir de 1995, substituiu as forças policiais do Estado na esmagadora maioria das funções que desempenham no País Basco39. Mesmo em matérias de combate ao terrorismo da eta, colabora ativamente com o Cuerpo Nacional de Policía e com a Guardia Civil, cuja tutela cabe ao governo central.

Também neste caso, as instituições autonómicas do País Basco e da Catalunha demonstraram vontade de aprofundar as suas especificidades em relação ao resto de Espanha, criando estruturas e assumindo funções com uma celeridade considerável, o que acentuou o elemento diferencial. Especialmente relevante é o facto de estarmos perante competências que podem ser consideradas, numa aceção mais tradicional, do domínio da soberania do Estado. Em termos concretos, são criadas estruturas armadas, sob a dependência das administrações autonómicas e sem qualquer dever de obediência ao poder executivo do Estado central.

 

CONCLUSÃO

A instituição do Estado autonómico espanhol não passou pela mera regionalização administrativa ou por uma descentralização simétrica. Na Espanha política que sai da Constituição de 1978, reconhece-se a existência de realidades identitárias alternativas e estas, através dos seus nacionalismos centrífugos, respondem ao desafio colocado pelo novo poder e pelo nacionalismo centrípeto espanhol. Contendo aspirações maximalistas, através das comunidades autónomas que lhes são concedidas, lançam-se na própria materialização política, recuperando e desenvolvendo línguas e culturas próprias e almejando maiores níveis de autonomia.

A noção de identidade já existia previamente nos dois casos, como o confirma a incorporação do conceito de «nacionalidades» na Constituição de 1978, com o apoio de parte da própria direita espanhola pós-franquista. A mesma lei fundamental também abriu portas ao desenvolvimento do sistema autonómico e à instituição de atores que dão forma política a essas identidades coletivas e que fomentam o seu desenvolvimento e a sua evolução.

Constrói-se, assim, uma ligação entre a identidade nacional e uma entidade política, que é aceite e incorporada pelas suas cidadanias. A Catalunha e o País Basco distinguem-se, hoje, do Estado espanhol, apesar de o integrarem. Obviamente, a complexidade desta circunstância gerou a sobreposição de interesses, não tendo contribuído para eliminar relações conflituais que já existiam previamente. A sua função foi, sobretudo, institucionalizar esses conflitos, objetivo que terá sido, em boa parte, atingido.

 

Data de receção: 21 de março de 2013 | Data de aprovação: 27 de maio de 2013

 

NOTAS

1 Breuilly, John – Nationalism and the State. Manchester: Manchester University Press, 1993.         [ Links ]

2 Cravinho, João Gomes – Visões do Mundo: as Relações Internacionais e o Mundo Contemporâneo. Lisboa: Imprensa das Ciências Sociais, 2002.         [ Links ]

3 Ibidem.

4 Berstein, Serge, e Milza, Pierre – História do Século XIX. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997.         [ Links ]

5 Breuilly, John – Nationalism and the State. Manchester: Manchester University Press, 1993.         [ Links ]

6 Anderson, Benedict – Imagined Communities. Londres: Verso;         [ Links ] Gellner, Ernest – Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 2006;         [ Links ] Miscevic, Nenad – «Introduction: the (im-)morality of nationalism». In Miscevic, Nenad (ed.) – Nationalism and Ethnic Conflict. Chicago: Open Court, 2000, pp. 1-21.         [ Links ]

7 Greer, Scott L. – Nationalism and Self-Government. Albany: State University of New York Press, 2007.         [ Links ]

8 Ibidem.

9 Tamir, Yael – Liberal Nationalism. Princeton: Princeton University Press, 1993.         [ Links ]

10 Kaldor, Mary – «Nationalism and globalisation». In Nations and Nationalism. Vol. 10, N.º 1/2, 2004, pp. 161-177.         [ Links ]

11 Tamir, Yael – Liberal Nationalism.

12 Ibidem.

13 Miller, David – Citizenship and National Identity. Londres: Polity Press, 2000.         [ Links ]

14 Ibidem.

15 Kymlicka, Will – Multicultural Citizenship. Oxford: Oxford University Press, 1995.         [ Links ]

16 Ibidem.

17 Ibidem.

18 Miranda, Jorge – Manual de Direito Constitucional – Tomo III. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.         [ Links ]

19 Cooley, Alexander, e Spruyt, Handrik – Contracting States: Sovereign Transfers in International Relations. Princeton: Princeton University Press, 2009.         [ Links ]

20 Cooley e Spruyt, não identificando explicitamente diferenças entre os modelos autonómico e federal, destacam os casos do País Basco e da Catalunha, que propomos analisar abaixo. A propósito das reformas territoriais que José Luis Rodríguez Zapatero, presidente do Governo espanhol entre 2004 e 2011, tentou desenvolver, os dois autores alertam sobretudo para os perigos de uma não delimitação prévia das transferências para as regiões catalã e basca de competências soberanas. Cf. Cooley, Alexander, e Spruyt, Handrik – Contracting States: Sovereign Transfers in International Relations. Princeton: Princeton University Press, 2009, p. 191.

21 Tamir, Yael – Liberal Nationalism; Miller, David – Citizenship and National Identity.

22 Stephen D. Krasner, no ensaio Sovereignty: Organized Hypocrisy, considera que o termo soberania pode ser empregue com quatro sentidos diferentes: soberania legal internacional, em referência às práticas de reconhecimento mútuo entre estados; soberania «vestefaliana», para traduzir a norma de exclusão de atores externos das estruturas de autoridade dos territórios (estados); soberania doméstica, para se referir à autoridade formal e ao seu exercício efetivo no domínio interno do Estado; e soberania de interdependência, em referência à capacidade das autoridades internas para controlar/regular a passagem de informação, ideias, bens, pessoas, capitais pelas fronteiras do Estado. Cf. Krasner, Stephen D. – Sovereignty: Organized Hypocrisy. Princeton: Princeton University Press, 1999, pp. 3-4. À luz desta segmentação, Krasner considera que os estados-membros da União Europeia, através do exercício da sua soberania legal internacional, chegaram a acordos para reconhecer estruturas de autoridade externas e, desta forma, prescindir de parte da sua soberania «vestefaliana».

23 Lecours, André – Basque Nationalism and the Spanish State. Reno: University of Nevada Press, 2007.         [ Links ]

24 Gellner, Ernest – Nations and Nationalism.

25 Anderson, Benedict – Imagined Communities.

26 Constitución Española, Boletín Oficial del Estado, 1978. [Consultado em: 1 de julho de 2012]. Disponível em: http://www.boe.es/legislacion/enlaces/documentos/ConstitucionCASTELLANO.pdf

27 Ibidem.

28 Ley Orgánica 3/1979, de 18 de diciembre. Boletín Oficial del Estado, 306/1979. Cortes Generales. Madrid; Ley Orgánica 4/1979, de 18 de diciembre. Boletín Oficial del Estado, 306/1979. Cortes Generales. Madrid.

29 Cosculluela Montaner, Luis – «Los estatutos de autonomia y los pactos autonómicos». In Revista de Estudios Regionales, 44, 1996, pp. 47-68.         [ Links ]

30 Constitución Española – Boletín Oficial del Estado, 1978. [Consultado em: 1 de julho de 2012]. Disponível em: http://www.boe.es/legislacion/enlaces/documentos/ConstitucionCASTELLANO.pdf

31 Ibidem.

32 Ley Orgánica 3/1979, de 18 de diciembre. Boletín Oficial del Estado, 306/1979. Cortes Generales. Madrid.

33 Ley Orgánica 4/1979, de 18 de diciembre. Boletín Oficial del Estado, 306/1979. Cortes Generales. Madrid.

34 Gil-Ruiz, Carmen Luisa, e Iglesias Quintana, Jaime – «El gasto público en España en un contexto descentralizado». In Presupuesto y Gasto Público, 47, 185-206, 2007.         [ Links ]

35 Miranda, Jorge – Manual de Direito Constitucional – Tomo I.

36 Weber, Max – Três Tipos de Poder e Outros Escritos. Lisboa: Tribuna da História, 2005.         [ Links ]

37 Ley 19/1983, de 14 de julio. Diari Oficial de la Generalitat de Catalunya, 347. Parlament de Catalunya. Barcelona.

38 Ley 4/1992, de 17 de julio. Boletin Oficial del País Vasco, 155/1992. Parlamento Vasco. Victoria.

39 Ertzaintza, 2012 [Consultado em: 30 de março de 2012] Disponível em: http://www.ertzaintza.net/public/wps/portal/ertzaintza