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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Império: notas sobre o alcance de um conceito

Empire: notes about a concept scope

 

Pedro T. Magalhães

Licenciado em Línguas e Relações Internacionais pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, prepara atualmente uma dissertação de doutoramento sobre os problemas da representação, democracia e parlamentarismo na crise europeia de entre-guerras.

 

RESUMO

O presente ensaio pretende apresentar e discutir, remetendo para instâncias da expansão ultramarina europeia, diferentes perspetivas do conceito de império. Servindo-se das reflexões de Giovanni Sartori sobre os problemas da formação de conceitos nas ciências sociais, e tomando em consideração o seu uso tanto no campo estritamente político como em análises económicas e culturais, deseja-se que o texto possa servir de pequena ferramenta de orientação para o leitor que queira confrontar-se com a vasta bibliografia que trabalha o conceito de império.

Palavras-chave: Império, Europa, Giovanni Sartori, ciências sociais

 

ABSTRACT

This essay aims to present and discuss, based upon examples of the European overseas expansion, different perspetives of the concept of empire. Inspired by the reflections of Giovanni Sartori on the problems of concept formation in the social sciences, and taking into account its use both in the field of politics and in economic and cultural analyses, the text wishes to serve as a small guiding tool for the reader who plans to deal with the vast literature on the concept of empire.

Keywords: Empire, Europe, Giovanni Sartori, social sciences

 

O conceito de império tem as suas raízes no latim imperium. O termo designava, na Roma Antiga, o poder público do rei, numa primeira fase, e dos magistrados, durante a República, que lhes permitia exigir a obediência dos cidadãos. Na medida em que se identificava, sobretudo, com o poder de comandar exércitos, aplicava-se com maior relevância em tempos de guerra. Nas províncias, os procônsules romanos eram os legítimos detentores do poder civil e militar – detinham o chamado imperium proconsulare. Em 23 a. C., Augusto outorgou-se o imperium proconsulare sobre todos os domínios de Roma. Tornou-se imperador1.

A génese do conceito encontra-se, pois, na primeira entidade política, a Roma Antiga, que historicamente se representou como tal. Porém, o termo ganhou vida muito para além de Roma. Por um lado, foi retrospetivamente aplicado pelas fontes historiográficas ocidentais a formações políticas anteriores ao Império Romano, como a China da dinastia Qin e a Babilónia. Por outro lado, foi posteriormente utilizado para designar estruturas tão diversas como os domínios dos Habsburgos, a monarquia russa, as possessões mongóis ou as coroas europeias envolvidas na expansão ultramarina. Mais do que isso, extravasando o campo estritamente político, o conceito tem servido para cunhar relações económicas ou culturais supostamente marcadas por fortes disparidades de poder. Esta diversidade no emprego do conceito parece indiciar um de dois fenómenos: ou as referidas instâncias partilham, apesar de todas as diferenças, um núcleo restrito de características semelhantes; ou as definições de império são de tal forma variadas que permitem que se aplique o conceito a uma multiplicidade de experiências históricas que, entre si, pouco têm em comum.

A imprecisão conceptual e a ambiguidade que dela advém desesperam frequentemente o estudioso. Contudo, no caso do conceito de império, como no de tantos outros – pense-se em democracia, representação, soberania, etc. –, o problema é incontornável. De resto, é essa permanente indefinição que justifica este trabalho. Se todos concordássemos quanto ao significado preciso de império, dispensar-se-ia uma análise conceptual.

Ora, não é objetivo deste esforço analítico reduzir essa complexidade, apresentando como seu produto final uma qualquer definição unívoca do conceito. Bem pelo contrário, pretendemos apresentar e discutir diferentes perspetivas do conceito de império, que remetem para as três dimensões autónomas do social: política, economia e cultura. A análise terá como referência as experiências imperiais europeias resultantes da expansão e colonização ultramarinas da era moderna. Na conclusão, faremos notar que as diferentes perspetivas se situam em planos de abstração distintos, consistindo o trabalho de interpretação do leitor-investigador, antes do mais, em identificá-los. Só depois poderá posicionar-se – favorável ou negativamente, aceitando-o ou rejeitando-o – relativamente ao uso do conceito em questão.

 

NA «ESCADA DE ABSTRAÇÃO»: DAS DEFINIÇÕES PRELIMINARES ÀS DEFINIÇÕES FORMAIS

Num artigo sobre os problemas da formação conceptual em política comparada2 – que pode ser lido com proveito por todos os cientistas sociais, não apenas pelos politólogos comparativistas –, Giovanni Sartori faz notar que os conceitos empregues pela ciência social para fazer proposições sobre a realidade empírica podem remeter para diferentes níveis de abstração. Para os distinguir, Sartori serve-se da imagem de uma «escada de abstração»3, em cujos diversos patamares – alto, médio ou baixo – os conceitos se inserem. Nos degraus superiores, encontram-se conceitos altamente abstratos, definidos com base num seu atributo específico ou identificados ex adverso (ou seja: dizendo-se não aquilo que são, mas aquilo que não são). No nível intermédio, surgem generalizações analíticas de médio alcance, i. e., conceitos gerais, mas já com alguma diferenciação. Por fim, na base da escada, temos conceitos próximos das particularidades contextuais, de fraca (ou mesmo nenhuma) extensão explicativa, mas forte valor descritivo. Em suma: sobe-se a escada, rumo a um patamar superior de abstração e a um reforço da extensão explicativa dos conceitos, diminuindo os atributos específicos de um conceito; contrariamente, desce-se, de modo a obter maior precisão analítica e descritiva, adicionando-lhe atributos. Estas reflexões metaconceptuais de Sartori constituem um bom ponto de partida para abordar o conceito de império.

Recuperemos a definição enciclopédica de imperium com que abrimos este texto. De facto, dela ressalta o significado primário do conceito: império é poder. Esta subsunção da ideia de império à noção de grande poder é, como nota Philip Pomper4, a definição mais lata possível, situada no cume da «escada de abstração». A questão que importa colocar, para descer alguns lanços da escada de Sartori, é a seguinte: que poder é esse? Ou mais precisamente: o que distingue um poder imperial de outras expressões e estruturas de poder? Tenderíamos a responder: o domínio sobre o Outro. Ou seja, trata-se de um poder exercido por um grupo humano relativamente homogéneo sobre outro – ou outros. A formação de um império envolve um choque entre duas ou mais culturas e a consequente constituição de relações de troca desiguais entre elas, que exprimem a dominação de uma sobre a(s) outra(s)5. Por essa razão, os impérios sempre foram territorialmente mais extensos que as entidades políticas tribais ou as nações modernas6.

Chegamos, assim, a uma definição ainda assaz abrangente, mas já não isenta de especificação, porventura a meio caminho entre os patamares alto e médio de abstração. Eventualmente, situando-a desse modo no campo político stricto sensu, poder-se-á completá-la referindo a natureza não democrática dos impérios. Na verdade, não é que os impérios não possam possuir instituições democráticas, mas estas não são acessíveis ao Outro, apenas ao grupo dominante. A exclusão, total ou tendencial, da participação do Outro nas instituições políticas é atributo característico da dominação imperial. Na medida em que colige os aspetos até agora focados (embora obscureça nalguma medida a questão fulcral da alteridade), vale a pena transcrever a definição proposta por Dominick Lieven: «um muito grande poder que deixou a sua marca nas relações internacionais de uma era… um poder político que estende a sua soberania sobre vastos territórios e muitos povos… por definição não democrático… um poder que se exerce sem o consentimento explícito dos seus povos.»7

Tipicamente, as definições mais formais exigem que os impérios apresentem uma série de características específicas – e aqui caminhamos já para os patamares inferiores da escada sartoriana. Em primeiro lugar, encontra-se a conquista militar, como forma de apropriação de novos territórios. De seguida, afirma-se ter de ocorrer uma exploração sistemática dos conquistados. Esta pode assumir várias formas, desde a cobrança de tributos e impostos ao confisco arbitrário, pelas autoridades imperiais, de terras e recursos, posteriormente distribuídos por novos colonos. Esta dominação deverá, por seu turno, corresponder a projetos e estratégias imperiais conscientemente delineados e levados a cabo por regimes que se assumem a si próprios como impérios, que erigem instituições imperiais e que ostentam uma série de símbolos imperiais. Por vezes, julga-se também crucial a existência de uma elite imperial que se reproduz nas posições de comando sem, no entanto, deixar de inspirar imitadores nas classes mais baixas. Por outro lado, é igualmente característico o recrutamento de soldados e dos estratos mais baixos da classe administrativa entre os conquistados, de forma a garantir um exercício mais efetivo do poder. Entre os proponentes desta posição, que exigem o cumprimento de uma série de requisitos formais claramente explicitados, destaca-se David Abernethy, que distingue o poder tipicamente imperial de outras formas de poder, rejeitando assim a noção de «império informal» e a aplicabilidade do qualificativo «imperial» aos padrões de dominação que possam resultar do comércio mais ou menos livre8.

O essencial das definições formais de império é o papel fundamental que atribuem a um poder estatal forte e altamente centralizado, capaz de determinar quais os projetos imperiais a levar a cabo, em que área geográfica do globo, com que instrumentos e com que objetivos. Porventura, será possível reduzi-las, voltando agora novamente a subir na «escada de abstração», à sucinta definição proposta por Shmuel Eisenstadt:

O termo «império» tem sido normalmente usado para designar um sistema político contendo territórios extensos e altamente centralizados, nos quais o centro, personificado quer na pessoa do imperador quer nas instituições políticas centrais, constitui uma entidade autónoma9.

Finalmente, importa ainda referir, como cúmulo formalístico, a definição estritamente jurídica de império. Segundo esta, são impérios os estados que juridicamente se definam como tal. Adotando esta perspetiva, a listagem de impérios reduzir-se-ia ao Império Romano e seus herdeiros – Sacro Império Romano-Germânico, Império Bizantino e o efémero Império Latino de Constantinopla – e, eventualmente, à Grã-Bretanha vitoriana, após Disraeli ter adicionado «Imperatriz da Índia» ao rol de títulos da rainha10.

 

IMPÉRIO COMO CONQUISTA E SOBERANIA: A DIMENSÃO POLÍTICA

Como vimos, as noções de conquista e soberania são indissociáveis de qualquer definição formal de império. No entanto, para os europeus, elas sempre foram problemáticas, e aquando da expansão ultramarina das principais potências europeias nos séculos xv, xvi e xvii, constituíram sérios desafios para ideias e normas estabelecidas.

Todo o império, entendido como poder político sobre Outros, envolve o exercício de uma autoridade soberana adquirida, numa primeira instância, pela força11. Esta violação original cunhava essas novas entidades políticas emergentes – os impérios coloniais europeus – de terras de conquista. Ora, seria possível conciliar essa conquista com a doutrina vigente da guerra justa? Esta, com efeito, postulava que a violência sobre o Outro só era legítima se surgisse em defesa das fronteiras naturais do estado/tribo/povo. Uma guerra justa era, por definição, uma guerra defensiva.

Esta ideia de defesa das fronteiras naturais de um povo deriva, segundo Anthony Pagden12, da crença europeia na interdependência entre tribo e lugar. Para os europeus, existiria como que uma afinidade natural entre um grupo étnico e um dado território, daí decorrendo que cada povo possuiria um direito natural a ser governado, no seu território, por um dos seus. Neste sentido, a noção de império colocava óbvios embaraços teóricos.

O problema da violência sobre o Outro e da ocupação das suas terras já se havia manifestado, ainda que não em toda a sua amplitude, na relação dos europeus com os mouros. Só que, nesse caso, podia-se sempre argumentar que estes haviam ocupado território originalmente europeu, que tinha de ser recuperado. A conquista legitimava-se como reconquista13. A expansão marítima, para lá das fronteiras naturais da Europa, vem colocar o problema da relação com o Outro não europeu e não cristão num novo patamar de complexidade.

Nitidamente, os europeus não estavam agora a tentar reaver possessões outrora perdidas. Que direitos poderiam eles reclamar sobre os territórios ocupados além-mar? Com que direito se instalavam na América, em África e na Ásia? Será que o simples facto de os povos indígenas não serem cristãos justificava que se adotasse uma linha de ação que jamais seria admissível relativamente aos outros povos cristãos da Europa? Por outras palavras, será que o facto de não serem cristãos retirava aos indígenas o direito à liberdade, à propriedade e a terem um Estado próprio? À luz da doutrina da guerra justa e da crença na afinidade natural entre tribo e lugar, a resposta a todas estas questões era negativa. As guerras conduzidas no ultramar nada tinham de defensivo – eram guerras de conquista – e a soberania que os europeus aí exerciam não era, evidentemente, a expressão espontânea daquelas sociedades, uma vez que os europeus eram corpos estranhos entre aqueles povos.

Estas questões alimentaram longos debates teóricos na Europa. Na prática política, todavia, o paradoxo foi ora simplesmente ignorado, ora pragmaticamente ultrapassado através do recurso à figura jurídica da preascriptio longi temporis. Ou seja, acabou por reconhecer-se que a ocupação de facto por um longo período de tempo constituía condição suficiente para a concessão retrospetiva de direitos de propriedade e jurisdição. Conforme argumenta Anthony Pagden, chegava-se assim tão próximo quanto efetivamente possível da condição de autóctone, a qual, segundo a crença na interdependência entre tribo e lugar, legitima o exercício da soberania sobre um determinado território14. Por outro lado, no que toca especificamente aos problemas suscitados pela ideia de conquista, eles foram descartados de duas formas. Por um lado, a teologia escolástica alargou consideravelmente o leque de razões justificativas de uma guerra justa. Passou a ser legítimo guerrear pela defesa do direito de sociedade e de comunicação, para evangelizar, para defender os indígenas convertidos, para auxiliar aliados, por razões de humanidade (i.e., contra um tirano), entre outras15. Por outro lado, mais prosaicamente, as potências europeias simplesmente negavam, contra toda a evidência, a existência de qualquer tipo de conquista. Assim, por exemplo, nem franceses nem britânicos haviam conquistado o que quer que fosse na América do Norte. E até mesmo os espanhóis, cujas possessões na América do Sul eram indiscutivelmente produto da conquista militar, proibiram o uso oficial do termo em 1680.

«Conquista» adquire, pois, o estatuto de palavra maldita, e o mesmo sucede com «império». Estritamente falando, continuava a existir, a ocidente, apenas um império, o Sacro Império Romano-Germânico, herdeiro juridicamente reconhecido de Roma. Os espanhóis referiam-se aos seus domínios como «reino» ou «monarquia». Os ingleses mantinham a distinção entre «colónias» e os reinos que compunham a sua «monarquia compósita» (Escócia, Gales e Irlanda). Portugal e a Holanda, por seu turno, viam as suas possessões ultramarinas como entrepostos comerciais16. Esta recusa em assumir a designação de império deriva de toda a problemática discutida nas linhas anteriores. Não era possível dissociar o conceito de império das ideias de conquista militar e de soberania sobre o Outro. E o embaraço que estas causavam determinava a não aplicação daquele às novas realidades que emergiam da expansão marítima europeia.

Não poderia ser mais evidente a fratura entre o pensamento e a prática. Efetivamente, o momento em que a Europa se expande muito para lá das suas fronteiras geográficas naturais coincide com uma época em que o pensamento europeu se revela avesso à expressão propriamente política – como conquista e soberania – do poder sobre o Outro.

Só mais tarde o conceito de império será recuperado. Por um lado, em finais do século xviii, pensadores como Adam Smith e Edmund Burke avançam com uma definição liberal de império como comunidade única e soberana, onde todos usufruiriam de igual modo do estatuto de «cidadão». Porém, a igualdade no usufruto dos direitos de cidadania não implica um desaparecimento da dominação sobre o Outro. Como observa Pagden, para os não europeus se tornarem efetivamente cidadãos dos impérios que haviam ocupado as suas terras, teriam de aceitar a autoridade legislativa dos seus distantes soberanos e renegar os códigos da sua pertença étnico-religiosa, no limite irreconciliáveis com aquela. Por outro lado, os nacionalismos que emergem na Europa do século xix vão servir-se do termo império para considerar a aquisição/conquista de possessões ultramarinas como fonte de orgulho e instrumento para a manutenção da coesão nacional em tempos de crise17.

 

ECONOMIA: IMPÉRIO E CAPITALISMO

Mesmo as definições formais de império, que enfatizam a componente estritamente política, não podem ignorar a dimensão económica. Aliás, a apropriação dos recursos dos conquistados terá sempre de ser vista como uma das práticas caracterizadoras de um império.

Porém, a questão que nos propomos explorar aqui é a de saber se é possível conceber império como uma estrutura de dominação sobre o Outro assente sobretudo em relações económicas. Para tal, mantemos o foco na expansão marítima europeia, mas agora através da lente de Immanuel Wallerstein18.

Segundo Wallerstein, entre finais do século xv e inícios do século xvi dá-se a emergência, como consequência da expansão marítima, daquilo que o autor designa por «economia-mundo europeia»19. Na Europa Ocidental, a dissolução do Império Romano deu lugar a uma forma de organização social – o feudalismo – assente na propriedade da terra por uma minoria de estatuto nobre e marcada por um poder central fraco. O feudalismo, ao contrário do que frequentemente se pensa, não era uma economia de autossubsistência. Por muito limitado que fosse, o comércio desempenhava o seu papel, especialmente no estabelecimento dos fluxos entre o campo e a cidade. Assim, embora muito lentamente, a população e a produtividade foram crescendo durante todo o período medieval. Até que, no século xiv, uma crise profunda atinge o sistema feudal, causando a retração da produção agrícola e da população. O feudalismo havia atingido os seus limites, e a solução que restava à Europa Ocidental era a «expansão do bolo económico a repartir»20. A resposta para a crise europeia encontrava-se, pois, no ultramar. O comércio longínquo, até então uma atividade limitada, começa a tornar-se estruturante.

Por que razão apelida Wallerstein o novo sistema social emergente de economia-mundo? Não é por abranger todo o globo – algo que não sucedia –, mas sim pela sua extensão superior à de qualquer entidade política existente. Por outro lado, tratava-se de uma economia, na medida em que as relações entre as diversas frações do sistema eram, acima de tudo, económicas, antes de serem políticas ou culturais.

Ora, podemos ver nessa economia-mundo uma forma de império? Wallerstein, adotando a definição de Eisenstadt atrás transcrita, rejeita a hipótese. Sem se assumir como unidade política, uma economia-mundo não se transforma em império. Em todo o caso, historicamente, esse foi um processo que, segundo Wallerstein, ocorreu por mais de uma vez. China, Pérsia e Roma foram economias-mundo que se transmutaram em impérios. A Europa Ocidental poderia ter seguido o mesmo caminho, mas, conforme sustenta Wallerstein num longo capítulo intitulado «De Sevilha a Amesterdão: o fracasso do império»21, isso não aconteceu. E não aconteceu, porque as técnicas do capitalismo moderno, apoiadas no desenvolvimento tecnológico da ciência moderna, «permitiram que esta economia-mundo prosperasse, produzisse e se expandisse sem a emergência de uma estrutura política unificada»22.

Apesar de tudo, Wallerstein não deixa de considerar que esta economia-mundo capitalista possui características imperiais. Afinal, o que nela está em jogo, em última análise, são relações de dominação entre povos. Se a definição de império adotada não implicar, necessariamente, uma centralidade do poder político, então o conceito pode de facto ser aplicado para descrever a geometria de poder do capitalismo moderno. Na verdade, trata-se de uma forma de império mais sofisticada do que a propriamente política. Esta última garantia a dominação económica da periferia – ou do Outro – pelo centro através da força (coleção de tributos e taxas). No entanto, isso requeria o estabelecimento e manutenção de uma pesada estrutura administrativa e militar que acabava por consumir uma parte importante dos benefícios gerados pela própria dominação. A economia-mundo capitalista, por seu turno, vem estabelecer uma forma de poder sobre o Outro onde o peso da estrutura político-administrativa – indispensável, em todo o caso, para garantir termos de troca vantajosos – se reduz substancialmente. Não surpreende, pois, que as teses dos teóricos clássicos do imperialismo económico (Lenine, Rosa Luxemburgo, J. A. Hobson) continuem sendo discutidas, trabalhadas e reformuladas por uma parte da teoria contemporânea23.

 

IMPÉRIO E CULTURA: A ESFERA DOS SIGNIFICADOS

Importa, por fim, falar de uma terceira forma de dominação sobre o Outro – a cultural –, que diz respeito à esfera na qual os sujeitos, individual e coletivamente, constroem significados para as suas vidas, através de práticas de representação simbólica24. Detetar os traços de uma dominação cultural é, evidentemente, muito mais complexo do que fazê-lo em relação ao aspeto político ou mesmo ao económico. Eles não radicam na presença de uma estrutura política, administrativa e militar no território do Outro, nem nos fluxos materiais entre esse território e o centro imperial. Resultam, isso sim, da alteração da perceção do Outro relativamente ao significado da sua própria vida, por via da influência da cultura dominante. Nesta secção, procuraremos apresentar uma reflexão sucinta sobre as repercussões daquele que, na época da expansão marítima, era o esteio cultural da Europa – a religião cristã – na esfera de significados do Outro.

O cristianismo sempre viu na empresa marítima europeia uma forma de garantir a sua própria difusão. Expansão marítima e missionação são, de facto, movimentos indissociáveis. O grau de sucesso da missionação cristã, é certo, variou consoante a área geográfica. Na América Central e do Sul, atingiu-se um nível de conversão quase total; na África Subsariana, ela foi também muito significativa; na Ásia, claramente menos forte. Em todo o caso, no geral, a influência das duas grandes correntes do cristianismo europeu (catolicismo e protestantismo) sobre o Outro é inegável.

A conversão a uma nova religião constitui uma poderosa alteração da perceção do mundo e da vida, na medida em que implica a aceitação de novas narrativas míticas sobre a origem e o sentido da existência. Porém, as consequências profundas da missionação cristã encontram-se para além da própria conversão de fé. Segundo Jean e John Comaroff, os missionários cristãos no ultramar procederam a uma autêntica «colonização das consciências»25. Isto é, mais do que uma mudança de fé, o que a missionação cristã exigia do Outro era uma reconstrução da consciência individual, que impunha às populações nativas a recriação de ideias sobre o género e o casamento, o vestuário, a higiene e mesmo a própria noção de «eu». O plano propriamente religioso não era, pois, o mais relevante. Verdadeiramente decisiva era a transformação, por vezes radical, das rotinas e dos hábitos da vida quotidiana. Através da religião, colocou-se em marcha um processo de europeização das populações nativas, marcante até aos dias de hoje.

Contudo, esta forma de dominação imaterial, que opera ao nível das consciências, nunca é totalmente controlada pelas entidades que procuram impô-la. A forma como as populações nativas assimilam localmente o discurso, os códigos e as práticas cristãs é assaz variável. E a partir do momento em que a autoridade para evangelizar acaba por escapar ao controlo dos missionários brancos, surge uma série de movimentos cristãos indígenas, muitos dos quais fortemente hostis à presença e dominação europeias26. No campo cultural, por vezes, são os dominadores que fornecem aos dominados as armas para a resistência à dominação.

Em sentido inverso, a própria cultura dominante sofre transformações através do contacto com o Outro. Urge aqui recuperar, sob outra perspetiva, o debate em torno dos direitos que os europeus poderiam reclamar sobre os indígenas e as suas terras. O que subjaz a esse debate é a perceção que os europeus têm do Outro. E, com efeito, o confronto com uma alteridade radical no Novo Mundo tem consequências profundas para as perceções e para o pensamento europeus27. Esse confronto permitiu-lhes (re)descobrir, através das teorizações do teólogo Francisco de Vitória, a noção de natureza humana. Vitória, para defender a interdição da escravização e do desapossamento dos indígenas, não podendo remeter para a sua qualidade de cristãos – esse seria o argumento utilizado para justificar tal interdição relativamente a outros europeus –, descobre a sua humanidade. É o facto de serem homens, ainda que infiéis ou pagãos, que assegura aos indígenas o direito à liberdade e à propriedade. Existe, portanto, uma natureza humana que é universal e independente da religião. Vitória ultrapassa assim o quadro medieval vigente, no qual se considerava que se era primeiro cristão e só depois português ou espanhol, ao propor um pensamento em que se é homem antes de se ser cristão ou pagão. E esse pensamento, no qual se reconhecem já as bases da filosofia iluminista, resulta do confronto com a alteridade radical do além-mar, uma vez que o Outro que habitava a Europa (o judeu), estigmatizado que estava por um conjunto milenar de preconceitos, jamais conseguira forçar uma tal viragem intelectual.

Como vemos, os fluxos culturais não se reduzem jamais a uma lógica unívoca, e o leque das suas consequências não pode ser inteiramente previsto e controlado por um projeto de poder. Em todo o caso, parece-nos inegável que a cultura dominante – no caso vertente, a cultura cristã ocidental – deixa marcas muito mais profundas e duradoiras na cultura dos dominados do que o inverso. E isso constitui uma relação de poder que se presta ao uso dos conceitos de império e imperialismo28.

 

CONCLUSÃO

A ambição deste texto não vai além da apresentação e discussão, com base na dissecação das experiências da expansão ultramarina europeia da era moderna, de diferentes perspetivas do conceito de império. Conforme julgamos ter ficado claro, não se pretendeu em nenhum momento defender uma perspetiva contra as restantes. Pelo contrário, esforçámo-nos por esboçar um pequeno mapa que sirva para orientação do leitor-intérprete da vasta literatura que trabalha com o conceito de império.

É evidente que, nos tempos atuais, onde os projetos imperiais no sentido estritamente político parecem realidades distantes, as noções de imperialismo económico e cultural encontram-se no centro da controvérsia. Recuperando a «escada de abstração» de Sartori, diríamos que a confluência do conceito de império com os qualificativos económico ou cultural servem, por um lado, propósitos de especificação, na medida em que cinge o conceito a um determinado campo da atividade social. Contudo, por outro lado e sobretudo, trata-se de uma operação de analogia. Ou seja, através da transladação do conceito para fora do seu campo original (o estritamente político), procura-se postular uma afinidade entre os projetos imperiais levados a cabo por autoridades políticas soberanas e certas relações de poder nas esferas económica e cultural. Rejeitar a analogia invocando uma rígida definição formal de império (vide David Abernethy) parece-nos francamente infrutífero. Podemos, isso sim, invocar razões substantivas que conduzam à sua rejeição ou propor analogias, imagens ou conceitos alternativos, que julguemos mais capazes de iluminar a realidade.

Império, na verdade, é uma palavra, mas não é uma mera palavra – o leitor ou o autor têm de saber situar-se, se com ela pretendem pensar o mundo. Esperamos que este pequeno texto possa ser útil nesse propósito.

 

Data de receção: 31 de agosto de 2012 | Data de aprovação: 26 de novembro de 2012

 

NOTAS

1 Vide entrada «Imperium». InAaVv – Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Vol. IV. Lisboa: Página Editora, 2002, p. 133.

2 Sartori, Giovanni – «Concept misformation in comparative politics». In Collier, David, e Gerring, John (eds.) – Concepts and Method in Social Science. The Tradition of Giovanni Sartori. Nova York e Londres: Routledge, 2009, pp. 13-44.         [ Links ]

3 Sartori, Giovanni – «Concept misformation in comparative politics», pp. 21 e ss.

4 Pomper, Philip – «The history and theory of empires». In History and Theory. Vol. 44, N.º 4, 2005, p. 1.         [ Links ]

5 Cf. Nadel, George H., e Curtis, Perry (eds.) – Imperialism and Colonialism. Nova York: Macmillan, 1964, p. 1.         [ Links ]

6 Cf. Pagden, Anthony – «Fellow citizens and imperial subjects: conquest and sovereignty in Europe’s overseas empires». In History and Theory. Vol. 44, N.º 4, 2005, p. 29.         [ Links ]

7 Lieven, Dominick – Empire: The Russian Empire and its Rivals, New Haven: Yale University Press, 2000.         [ Links ] Citado por Pomper, Philip – «The history and theory of empires», p. 2: «a very great power that has left its mark on the international relations of an era… a polity that rules over wide territories and many peoples… by definition not a democracy… not a polity ruled with the explicit consent of its peoples.»

8 Abernethy, David B. – The Dynamics of Global Dominance: European Overseas Empires, 1415-1980. New Haven: Yale University Press, 2000, pp. 18-42.         [ Links ]

9 Eisenstadt, S. N. – «Empires». In International Encyclopedia of the Social Sciences (1968). Citado por Wallerstein, Immanuel – O Sistema Mundial Moderno – I. A Agricultura Capitalista e as Origens da Economia-Mundo Europeia no Século XVI. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 25.         [ Links ]

10 Nadel, George H., e Curtis, Perry (eds.) – Imperialism and Colonialism, p. 2.

11 Pagden, Anthony – «Fellow citizens and imperial subjects: conquest and sovereignty in Europe’s overseas empires», p. 30.

12 Ibidem, p. 29. Pagden sustenta que a crença na interdependência entre tribo e lugar é de origem exclusivamente europeia, daí que só os europeus, e não outros povos de vocação imperial, tenham tido de enfrentar estas dificuldades de legitimação do seu poder sobre o Outro. Essa suposta singularidade europeia é, no entanto, discutível. Se no que toca às tribos indígenas da América pré-colombiana, a afirmação tem cabimento, só muito dificilmente poder-se-á sustentá-la em relação ao espaço africano e, sobretudo, ao Oriente. Aí regista-se, de facto, uma longa fixação de alguns povos num dado território e a formação, como na Europa, de estruturas de organização política assaz complexas, o que indicia uma forte afinidade entre tribo e lugar.

13 Moreau, Pierre-François – «Nature, culture, histoire». In Châtelet, François, e Mairet, Gérard – Les Idéologies. Tome 3. De Rousseau à Mao. Verviers: Nouvelles Éditions Marabout, 1981, p. 27.         [ Links ]

14 Pagden, Anthony – «Fellow citizens and imperial subjects: conquest and sovereignty in Europe’s overseas empires», p. 31.

15 Moreau, Pierre-François – «Nature, culture, histoire», p. 29.

16 Pagden, Anthony – «Fellow citizens and imperial subjects: conquest and sovereignty in Europe’s overseas empires», pp. 31-32.

17 Ibidem, pp. 32-38.

18 Wallerstein, Immanuel – O Sistema Mundial Moderno – I. A Agricultura Capitalista e as Origens da Economia-Mundo Europeia no Século XVI.

19 Ibidem, p. 25.

20 Ibidem, p. 33.

21 Ibidem, pp. 167-220.

22 Ibidem, p. 29.

23 Arrighi, Giovanni – The Geometry of Imperialism. 2.ª edição revista. Londres e Nova York: Verso, 1983;         [ Links ] Hardt, Michael, e Negri, Antonio – Empire. Cambridge MA e Londres: Harvard University Press, 2000;         [ Links ] Harvey, David – The New Imperialism. Oxford e Nova York: Oxford University Press, 2003;         [ Links ] Wood, Ellen Meiksins – Empire of Capital. Londres e Nova York: Verso, 2003;         [ Links ] Callinicos, Alex – Imperialism and Global Political Economy. Cambridge e Malden MA: Polity Press, 2009.         [ Links ]

24 Tomlinson, John – Globalization and Culture. Chicago: University of Chicago Press, 1999, p. 18.         [ Links ]

25 Comaroff, Jean e Comaroff, John L. – Of Revelation and Revolution. Vol. 1: Christianity, Colonialism, and Consciousness in South Africa. Chicago: University of Chicago Press, 1991, p. 313.         [ Links ]

26 Dubois, Thomas David – «Hegemony, imperialism, and the construction of religion in East and Southeast Asia». In History and Theory. Vol. 44, N.º 4, 2005, pp. 129-130.         [ Links ]

27 Apoiamo-nos, nas linhas que se seguem, em Moreau, Pierre-François – «Nature, culture, histoire», pp. 26-35.

28 Cf. Said, Edward W. – Culture and Imperialism. Londres: Chatto and Windus, 1993;         [ Links ] Hamm, Bernd, e Smandych, Russell (eds.) – Cultural Imperialism. Peterborough: Broadview Press, 2005.         [ Links ]