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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Waltz, a ideia de anarquia e o estudo das relações internacionais1

Waltz, the idea of anarchy and the study of international relations

 

Érico Esteves Duarte* e Tiago Cerqueira Campos**

*Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutorado e mestrado em Ciências em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, Londres). Foi professor da cátedra Rui Barbosa de Estudos Brasileiros da Universidade de Leiden (2013).

**Mestre em Ciências em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

RESUMO

O presente artigo argumenta que a ideia da anarquia é a grande contribuição de Kenneth Waltz para o campo das relações internacionais. O artigo apresenta a originalidade dessa ideia, seus termos básicos e seu impacto ao propor uma centralização construtiva e necessária a produções acadêmicas mais consistentes acerca da realidade das relações internacionais.

Palavras-chave: Kenneth N. Waltz, anarquia, sistema internacional, teoria das relações internacionais

 

ABSTRACT

The present paper states the idea of anarchy as Kenneth Waltz’s greatest contribution to the field of international relations. First, it presents the originality of that idea. Second, it outlines its basic terms. Finally, it points out its impact by advancing a constructive and necessary convergence to foster more consistent scholar endeavors about the reality of International Relations.

Keywords: Kenneth N. Waltz, anarchy, international system, theory of international relations

 

Numa perspectiva singular e pioneira de educação liberal, Mortimer Adler sustenta que a leitura e discussão de grandes livros deva ser o centro de uma educação humanista geral. O objetivo dessas atividades é desenvolver as habilidades intelectuais de leitura e pensamento críticos que conduzam os estudantes à compreensão das ideias, questões e controvérsias básicas de nossa tradição intelectual. Os grandes livros são aqueles que deram vida e contorno ao pensamento ocidental. Sua harmonia reside não apenas no fato de que cada um deles merece ser lido, mas sim que as ideias contidas neles formam uma unidade mais profunda: a discussão contínua de temas, problemas, tópicos e termos comuns. Mais do que uma coleção de livros, trata-se de um todo, que deve ser tomado, tratado e lido com tal.

A meta educacional preponderante na leitura dos grandes livros é a compreensão das grandes ideias que resultam do diálogo entre seus autores. Cada ideia é um objeto de discussão, na qual estes se encontram para concordar, discordar e comunicar uns com os outros sobre uma preocupação em comum. Em sua formulação original, Adler elencou cento e duas grandes ideias. Ainda que sua construção seja abrangente, ela não é taxativa ou fechada, e uma das ideias não incluídas no rol original é a de anarquia, com o sentido particular desenvolvido no âmbito das relações internacionais. Compreendê-la é de tal importância que uma justificativa parece ser desnecessária: ao seu redor foram e continuam sendo construídas as principais questões e problemas da interação entre estados e povos desde a aurora da modernidade.

Traços de um estudo da anarquia estão presentes no pensamento de Tucídides, Thomas Hobbes, David Hume e Carl von Clausewitz (autores que compõem a lista de grandes livros de Adler). Mais recentemente, uma proposta de estudo da anarquia foi feita por Richard Rosecrance, Stanley Hoffmann, Morton Kaplan e Raymond Aron. No entanto, nenhum desses pensadores propôs a anarquia como elemento fulcral, como uma ideia fundamental e centralizadora para a compreensão das grandes questões internacionais como fez Kenneth Waltz. Sem negar a influência daqueles e de outros pensadores, Waltz formula um entendimento de anarquia original e necessário para a educação a respeito dos fenômenos correntes no mundo.

 

O CAMPO DE ESTUDO DA ANARQUIA INTERNACIONAL

O problema que se tem que lidar de antemão é que, como qualquer autor clássico, Waltz é geralmente mais citado do que lido e, quando lido, suas ideias são geralmente mal-interpretadas, ao ponto de facilmente se inverter a formulação e a intenção originais. Como se sabe, devido à inércia natural na divulgação de ideias, um pequeno desvio inicial de interpretação acaba por levar a uma grande modificação do pensamento de um autor, tendo como resultado um sem-número de propostas equivocadas atribuídas a ele. Temas e entendimentos comumente imputados a Waltz e a seus seguidores – como a soberania significar a ausência de um ente superior aos estados, os estados como únicos atores do sistema internacional, a racionalidade intrínseca em suas ações etc. – atrapalham a compreensão e julgamento de seus argumentos. Nesse cenário, a conclusão de que as abstrações de Waltz não serviriam de base para se compreender nenhum fenômeno recente das relações internacionais é bastante equivocada. Ao contrário, os presentes autores consideram que a obra de Waltz não só apresenta uma solidez sem paralelo no corpo teórico das relações internacionais, como também suas propostas impulsionam a ideia de anarquia como sendo o elemento fundamental da educação em relações internacionais.

O livro primordial de Waltz é Teoria da Política Internacional (1979, publicado em Portugal em 2005). Nele, advoga insistentemente a necessidade de construção de um pensamento abstrato rigoroso. Waltz propõe a abordagem sistêmica da sociedade internacional estruturada por um princípio de ordenamento anárquico como sendo o principal definidor das regularidades no comportamento dos atores internacionais. Em consequência, a análise da anarquia é requisito necessário para o estudo de qualquer evento internacional e provavelmente uma das últimas grandes ideias criadas na história do conhecimento – marca da distinção das relações internacionais como um domínio específico de estudo.

Para estudar a anarquia, Waltz, em primeiro lugar, traz à cena uma base filosófica sem precedentes no campo das relações internacionais. Por um lado, adere à construção de sua teoria por abstração, «o que requer deixar algumas coisas de lado para nos concentrarmos noutras». Por outro, em relação às demais formas de construção teórica – isolamento, agregação e idealização – Waltz argumenta que a natureza do problema da anarquia internacional impede a escolha das duas primeiras. Isso porque esse objeto não permite o uso do método analítico da física clássica – «examinando os atributos e interações de duas variáveis enquanto outras são mantidas constantes» – e também não permite aplicação do método estatístico – «quando o número de variáveis se torna muito grande». A anarquia internacional é um tipo de complexidade organizada, de maneira que se tem um número médio de variáveis que não permitem serem «congeladas» e analisadas em pares, nem elas são lineares o suficiente para serem sistematizadas estatisticamente. Como resultado, a única abordagem permitida para seu estudo é a sistêmica.

Em segundo lugar, Waltz clarifica que existem duas formas de se construir uma teoria de sistemas: uma micro e outra macrossistêmica. Na economia, campo em que essa distinção está consolidada, a macroeconomia estuda a expansão e a retração da economia em geral a partir do comportamento de agregados econômicos; já a microeconomia estuda a tomada de decisão de atores individuais e sua interação com a tomada de decisão de todos os outros atores nos mercados. Waltz corretamente avalia que não existem «agregados políticos» tais como os econômicos; a própria natureza da ação política impede a construção de uma macroteoria da política internacional com base na seleção de uma pequena ou de uma enorme quantidade de possibilidades de ação, conforme vimos acima. Contudo, é possível construir uma microteoria da ação internacional porque nessa está em jogo o fato de as unidades não fazerem o que bem quiserem, livres das influências das demais unidades, mas sim terem a capacidade de decidir por si mesmas como irão lidar com problemas internos e externos, incluindo buscar ou não assistência das demais unidades – o que limita sua liberdade por causa de compromissos assumidos. Ou seja, na anarquia, os atores são sempre constrangidos pelo resultado das decisões dos demais atores.

Em terceiro lugar, ainda em relação à economia, há dois tipos de sistemas econômicos: na economia de comando, existe uma autoridade central que toma decisões de produção e consumo; na economia de mercado, por sua vez, impera a escolha individual e a interação das escolhas dos demais indivíduos em um ambiente. Isto é, na economia de comando, há uma coordenação com coordenador central; já na economia de mercado, há uma coordenação sem coordenador central. Segundo Waltz, tais distinções, aplicadas ao sistema internacional, se devem aos atributos da estrutura das relações políticas internacionais (cujas unidades que se comportam como uma economia de mercado) em contraposição às nacionais (em que as unidades se comportam como uma economia de comando). Isso se dá, segundo ele, pelo fato de as estruturas políticas condicionarem os processos políticos. Em outras palavras, a disposição das unidades no sistema internacional condiciona os tomadores de decisão dos países a uma similaridade de decisões e condutas de suas políticas externas que devem pouco para as considerações políticas nacionais e pessoais. Entretanto, as similaridades são maiores entre unidades políticas em disposições sistêmicas equivalentes, assim como as diferenças entre unidades políticas em disposições sistêmicas discrepantes. Tal disposição sistêmica é resultado da condição relativa de capacidades de poder entre as unidades, sendo que as unidades com maiores capacidades possuem disposições que mais afetam do que são afetadas pelo sistema. Portanto, a consequência lógica dessa formulação é que o estudo da política internacional se concentre no estudo das grandes potências.

Em termos conclusivos, há uma série de teóricos das relações internacionais que buscam seguir o entendimento de Waltz à risca e aplicar ou estender suas considerações. Stephen Walt e Randall Schweler, por exemplo, investigam explicitamente a formulação de uma teoria auxiliar que refine a explicação dos padrões de formação de alianças ou balanceamento externo. Robert Gilpin e John Mearsheimer fazem importantes adições em como o sistema internacional condiciona a produção de poder militar e econômico das grandes potências, o balanceamento interno. Gilpin e Mearsheimer também fazem outras contribuições. O primeiro, na formulação de uma teoria auxiliar da mudança nas relações internacionais; o segundo, no refinamento de uma teoria auxiliar da política externa das grandes potências. Há, também, divergências importantes no interior da ideia de anarquia. Por exemplo, William Wolforth, contrariamente às previsões de Waltz, argumenta que seria possível a sustentação estável de um sistema internacional unipolar. Para Stephen Krasner, os regimes internacionais oferecem mais possibilidades à cooperação do que o previsto por Waltz.

Portanto, seja convergindo ou divergindo das proposições de Waltz, sua formulação da ideia de anarquia marca uma centralização construtiva e necessária a produções acadêmicas mais consistentes acerca da realidade das relações internacionais.

 

Data de receção: 24 de maio de 2013 | Data de aprovação: 28 de julho de 2013

 

NOTAS

1 O presente artigo é produto da pesquisa «Uma avaliação das novas tecnologias pedagógicas e sua aplicação ao ensino de Relações Internacionais», apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil.