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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Um americano adorado em Nova Deli1

An American loved in New Deli

 

Constantino Xavier

Doutorando em International Relations e South Asian Studies na Paul H. Nitze School of Advanced International Studies, Johns Hopkins University, Washington DC. Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e do programa Fulbright.

 

RESUMO

Ao contrário de muitos outros teó- ricos americanos, a obra de Kenneth Waltz é bastante popular na Índia. Mesmo durante o auge da Guerra Fria, enquanto Washington se aliava ao Paquistão e praticava as teses dos «aiatolas da não-proliferação», Waltz foi das poucas vozes discordantes que saiu em defesa do programa nuclear indiano. Para uma Índia relativamente fraca e habituada a ver a sua postura estratégica analisada com condescendência e antiquados paradigmas culturais e orientalistas, o neo-realismo estruturalista de Waltz, baseado num critério universal de puro poder, promete igualdade. Isto permite aos realistas indianos narrar a normalização do seu país como grande potência.

Palavras-chave: Kenneth N. Waltz, Índia, proliferação nuclear, política externa

 

ABSTRACT

Unlike with many other American theorists, the work of Kenneth Waltz has always been popular in India. Even at the height of the Cold War, while Washington allied with Pakistan and practiced the theses of the “ayatollahs of non-proliferation”, Waltz was among the few opposing voices, defending India’s nuclear program. For a relatively weak India used to see its strategic posture analyzed with condescendence and old-fashioned cultural and orientalist paradigms, Waltz’s structural neo-realism promises equality because it restricts its analysis to a universal criterion of pure power. This allows Indian realists to narrate their country’s progressive normalization as a great power.

Keywords: Kenneth N. Waltz, India, nuclear proliferation, foreign policy

 

Como estudante de mestrado em Nova Deli, na Universidade Jawaharlal Nehru (jnu), bastião da esquerda radical indiana, não esperava encontrar grande simpatia por teóricos americanos. Este era, afinal, um campus que acolheu e doutorou Baburam Bhattarai, o líder ideológico da guerrilha maoísta no Nepal; em que o embaixador israelita era frequentemente impedido de palestrar num curso sobre o Médio Oriente; e onde Hugo Chávez era acolhido em apoteose enquanto que o próprio primeiro-ministro indiano era recebido com vaias e acusações de ser um mero lacaio do «imperialista» George W. Bush.

Mesmo assim, sempre que naquelas velhas e poeirentas salas de aula líamos Kenneth Waltz, os professores e alunos suspiravam em adoração uníssona. O professor de Berkeley continua a ser um dos raros teóricos americanos estudados e respeitados entre as elites académicas e estratégicas indianas. Mesmo no auge da Guerra Fria dos anos 1970 e 1980, numa Índia ferrenhamente não-alinhada em que qualquer académico americano de visita a Nova Deli era imediatamente suspeito de trabalhar para a cia, as portas abriam-se em catadupa para o professor Waltz2.

A explicação para esta recepção favorável é simples: rompendo com o pensamento convencional americano da altura, maioritariamente pró-Paquistão e hostil à proliferação nuclear, Waltz defendia que a nuclearização da Ásia do Sul – mais do que um legítimo direito indiano e paquistanês – era desejável porque teria efeitos estabilizadores, promovendo paridade e paz no subcontinente. Enquanto que os diplomatas de Washington conjugavam esforços, incluindo sanções, para impedir o desenvolvimento do programa nuclear indiano, o teórico Waltz defendia o seu aceleramento: quanto mais cedo, melhor; incluindo para os interesses americanos numa região minada por constante tensão, crises e guerras indo-paquistanesas que consumiam importantes recursos diplomáticos.

A popularidade de Waltz é ainda mais óbvia se contrastada com o ódio que as elites indianas reservavam à hostilidade dogmática com que os americanos de Washington se opunham ao programa nuclear de Nova Deli – os «aiatolas da não-proliferação» nas palavras do estratega-mor K. Subrahmanyam. Este dogmatismo contra a emergência de novas potências nucleares apoiava-se em quatro argumentos: a paz e estabilidade sistémica entre a díade Estados Unidos – União Soviética durante a Guerra Fria seria impossível de replicar a nível regional, seja na Ásia do Sul (Índia-Paquistão) ou no Médio Oriente (Israel-Irão, como Waltz defendeu ainda recentemente, em 2012); segundo, ao contrário de Washington e Moscovo, as novas potências nucleares sofrem de fraquezas institucionais para gerir, salvaguardar e executar a sua capacidade nuclear (Scott Sagan); terceiro, a Índia, em específico, carece de cultura e doutrina estratégica para o complexo jogo de sinalização, deterrence e dissuasão nuclear (Vipin Narang, Gaurav Kampani); e, por fim, que a nuclearização do subcontinente conduziu a uma maior conflitualidade convencional, ambos os países assumindo posturas crescentemente provocadoras, à sombra dos custos e riscos de um escalamento nuclear (stability-instability paradox de Michael Krepon, entre outros).

Em oposição radical a estas teses ancoradas numa mistura de ignorância, etnocentrismo e arrogância cultural americana, o estruturalismo radical de Waltz teve imediato sucesso na Índia. Em vez de recear a possível irresponsabilidade de uma nova potência nuclear, «Ken» argumentou sempre o oposto: que a capacidade nuclear conduz inevitavelmente à responsabilidade, moderação e, por conseguinte, estabilidade e paz. A nova investigação sobre os embrionários debates estratégicos nucleares nos Estados Unidos e na União Soviética dos anos 1950 demonstram isso mesmo, negando a ideia simplista de que uns países são mais estratégicos do que outros e, por isso, supostamente mais capazes de desenvolver e gerir um arsenal nuclear de forma racional e óptima.

Paradoxalmente, é por esta razão que o estruturalismo universalista de Waltz teve tanta popularidade numa academia indiana normalmente hostil às teses realistas e racionalistas que dominam o estudo americano das relações internacionais3. De acordo com o seu entendimento purista de anarquia, Waltz olhava para a Índia como uma unidade ideologicamente neutra e asséptica, passível de muito mais influência estratégica. Não só reconhecia isso no plano teórico, mas também defendia activamente, no plano político, a capacidade nuclear indiana como sendo desejável para os interesses da Ásia do Sul e mesmo dos Estados Unidos.

No Ocidente, o seu realismo estruturalista é acusado de negligenciar os factores domésticos na formação da política externa – incluindo a ideologia, o regime político, ou a personalidade dos líderes – mas essa cegueira analítica foi sempre vista como profundamente libertadora para estrategas indianos acostumados a verem o seu país analisado com recurso a arcaicos paradigmas culturais e orientalistas (a Índia gandhiana e pacifista, incapaz de utilizar a violência como estratégia política). Mas aqui, na pessoa de Waltz, estava finalmente um teórico americano que, no seu radicalismo estruturalista, prometia analisar e julgar a postura estratégica indiana em pé de igualdade perante as grandes potências ocidentais. Num país colonizado durante séculos, é natural que esta abordagem tivesse tido acolhimento imediato.

Em 2008, a Índia e os Estados Unidos assinaram um acordo bilateral para a cooperação civil nuclear que, de forma efectiva, terminou o estatuto pária que a Índia sofria desde que se tinha declarada potência nuclear em 1998. Os aiatolas de Washington opuseram-se, mas foram incapazes de resistir à mudança dos ventos geopolíticos: ao contrário do passado, a Índia é hoje uma peça essencial no xadrez asiático de uma superpotência americana em declínio que procura desesperadamente novas parcerias e aliados para conter a ascensão da China.

Esta aproximação a Nova Deli passa também pelo plano ideológico, com a súbita descoberta de «valores em comum» e referências aos dois países como «aliados naturais» em busca de uma «ordem liberal» assente, por exemplo, na liberdade de navegação, gestão multilateral de bens globais, ou promoção da democracia e dos direitos humanos.

Para um realista cínico esta é uma mera primavera retórica assente num frio calculismo de interesses convergentes. Se a Índia é democrática desde 1947, porque é que Washington só agora se lembrou disso? Este é um argumento importante, mas não necessariamente incompatível com uma explicação normativa da aproximação entre os dois países: os interesses comuns são essenciais à aproximação, mas a cooperação é facilitada pela qualidade democrática e pluralista de ambos os regimes e as suas sociedades abertas.

Ao contrário do que é sugerido por caricaturas teóricas, muitas vezes por própria culpa de um Waltz bastante polemista, a obra do «pai do neo-realismo» (ou será já «avô»?) reconhece a importância da democracia como sistema político na formação da política externa. Uma das suas obras menos conhecidas, comparando os Estados Unidos e o Reino Unido, sugere mesmo que os estados democráticos são mais capazes e eficientes na execução da política externa4. Não é este o Waltz que os manuais de relações internacionais apresentam, mas é o mesmo Waltz que – já estrela e coqueluche epistemológica – chegou a afirmar que não só é «reducionista» e desnecessário, mas também nocivo estudar as dimensões domésticas da política externa5.

Para além do estrututralismo Waltz 2.0, esta abordagem mais normativa de Waltz 1.0 oferece importantes pistas para estudar de que forma o regime e os valores democráticos indianos vão influir sobre o futuro da política externa, da doutrina nuclear e da postura estratégica de um país em rápida transformação.

 

Data de receção: 14 de junho de 2013 | Data de aprovação: 3 de setembro de 2013

 

NOTAS

1 A pedido do autor este texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2 Ver, por exemplo, a forma como foi recebido em 1984 em Nova Deli: Cohen, Stephen, e Xavier, Constantino – «The career and ideas of K. Subrahmanyam». In Brookings Institution, Fevereiro de 2011. [Consultado em: 9 de Agosto de 2013]. Disponível em: http://www.brookings.edu/events/2011/02/18-india-subrahmanyam        [ Links ]

3 Uma das raras homenagens póstumas indianas a Waltz reconhece esta importância: Rajagopalan, Rajesh – «Kenneth Waltz R.I.P. (1924-2013)». In IDSA Comment, 15 de Maio de 2013. [Consultado em: 8 de Agosto de 2013]. Disponível em: http://www.idsa.in/node/12065/30424        [ Links ]

4 Waltz, Kenneth N. – Foreign Policy and Democratic Politics; The American and British Experience. Boston: Little Brown, 1967.         [ Links ]

5 Williams, Michael C. – «The politics of theory: Waltz, realism, and democracy». In Booth, Kenneth – Realism and World Politics. Nova York: Taylor & Francis, 2011.         [ Links ]