SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número39Waltz e a (não) proliferação - mais armas nucleares, mais paz?: O Irão nuclear à luz do realismo estruturalUm americano adorado em Nova Deli índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Waltz, a diversidade das democracias e a semelhança dos estados

Waltz, the democracies’ diversity and the states’ similarities

 

Diana Soller

Doutoranda no Departamento de Estudos Internacionais da Universidade de Miami. Assistente de Investigação no Centro de Excelência da União Europeia da Universidade de Miami. Investigadora no IPRI–UNL.

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo perceber porque é que Kenneth Waltz descartou o fator «democracia» nos seus estudos das relações internacionais. Para isso, recupera um dos livros esquecidos do autor – Foreign Policy and Democratic Politics: the American and British Experience – escrito em 1967, cujo principal argumento é que existem mais semelhanças entre todos os estados (democracias e autocracias) do que diferenças criadas pelo tipo de regime. Este livro permite ainda traçar o percurso de Waltz entre Man, the State and War e Theory of International Politics, identificando continuidade no percurso académico de um dos mais influentes pensadores da política internacional do século XX.

Palavras-chave: Kenneth N. Waltz, democracia, política externa, teoria das relações internacionais

 

ABSTRACT

This article aims to uncover part of Kenneth Waltz forgotten legacy. By asking why the Professor of Columbia University disregarded “democracy” as an important variable to understand relations among states it recovers a book from 1967 – Foreign Policy and Democratic Politics: the American and British Experience – where Waltz argues that there are more similarities than differences between liberal and autocratic states. Re-reading this book also allows bridging the gap between Waltz’s most famous works (Man, the State and War and Theory of International Politics) contributing to the understanding of the academic path of one of the most brilliant scholars of the 20th century.

Keywords: Kenneth N. Waltz, Democracy, foreign policy, theory of international relations

 

O LEGADO DE WALTZ

Com Man, the State and War e Theory of International Politics, Kenneth Waltz resolveu -nos uma série de problemas.

Em 1959, na sua tese de doutoramento, viu -se livre da natureza humana como explicação central das relações internacionais. Para investigar as causas da guerra, Waltz recorreu a três autores fundamentais da filosofia política. Rousseau, que argumentou que os conflitos eram consequência da existência do Estado, que precisava da guerra para se consolidar e progredir; se não se substituísse esta forma de organização política, as tensões tenderiam a perpetuar-se. Kant, que defendeu que a origem da guerra residia nos vícios dos governos não republicanos e que para reduzir os conflitos era necessário esperar que o número de repúblicas aumentasse. Espinosa, que afirmou que natureza humana era maligna tendendo ao conflito. Sendo esta impossível de se transformar, os estados estavam perpetuamente condenados ao regresso à guerra.

Waltz, ainda num realismo muito clássico e concentrando-se na história das potências europeias antes da II Guerra Mundial (da qual tinha passado pouco mais que uma década) contestou todas estas visões: o Estado, disse, iria perpetuar-se independentemente da sua tendência beligerante, uma vez que era a forma mais eficaz de proteger os indivíduos uns dos outros; as democracias eram diferentes das autocracias apenas na liberdade da população. Em tudo o resto, governos tinham sensivelmente o mesmo comportamento, uma vez que o seu principal objetivo era garantir a sobrevivência do Estado, e a sobrevivência do próprio regime (questão que iria repensar mais tarde). Mas, mais importante, ao discordar de Espinosa, Waltz argumentou que se o homem é imutável e obedece sempre aos mesmos impulsos – nomeadamente à vontade de dominar o outro – mais vale cruzar os braços porque nenhuma guerra pode ser evitada e nenhum problema político pode ser resolvido.

E, ainda que não tenha sido este o principal objetivo de Man, the State and War, Waltz foi um dos primeiros autores a separar níveis de análise («imagens», na sua terminologia) atribuindo importância e metodologias diferentes a cada um. A sua argumentação descartou o primeiro nível de análise (o indivíduo), lançou dúvidas sobre o segundo (o Estado) e reforçou a necessidade de estudar de uma forma mais sistemática o terceiro – o sistema internacional.

Em 1979, com a publicação da sua famosa teoria neorrealista das relações internacionais (Theory of International Politics), Waltz concretizou parte do que deixara em aberto vinte anos antes. Corria a Guerra Fria, e era possível identificar semelhanças no comportamento das novas grandes potências – os Estados Unidos e a União Soviética – semelhanças essas que correspondiam grosso modo aos comportamentos de outros estados poderosos em períodos anteriores.

Em primeiro lugar, Waltz notou que os estados estão dependentes dos constrangimentos e oportunidades de que dispõem consoante o sistema internacional em que tentam sobreviver. Waltz estendeu o conceito de anarquia de Hobbes (ausência de entidade reguladora sobre um determinado número de unidades) para condição central e inultrapassável das relações entre os estados – a estrutura – da qual as unidades estão em permanente dependência.

Neste contexto, Waltz notou ainda que os estados copiam as boas práticas uns dos outros. Entre essas boas práticas, destacam -se duas: o recurso ao equilíbrio de poder para evitar a guerra (como já tinham demonstrado Hertz e Morgenthau, entre outros) e, se sensatos e prudentes, não procuram expandir-se em demasia, mas adquirir o poder suficiente para se resguardar de rivais mais agressivos – daí, muitas vezes, a teoria de Waltz ser designada de «realismo defensivo». A II Guerra Mundial tinha trazido a lição incontornável de que o expansionismo tinha consequências muito graves (recado não só para a União Soviética mas também para os Estados Unidos, cuja húbris foi preocupação permanente dos realistas durante a Guerra Fria). Com este conselho ao príncipe («teorias elegantes», baseadas na microeconomia, não são necessariamente destituídas de considerações morais), Waltz contribuiu decisivamente para o estudo das relações internacionais, simplificando a complexidade das interações entre os estados.

Quando o conflito bipolar acabou, o professor da Universidade de Columbia encolheu os ombros, dizendo que a multipolaridade, eventualmente, voltaria a ressurgir e a sua teoria tornaria a descrever e prever o comportamento dos estados1. Em breve, um ou mais estados (individualmente ou em aliança) ressurgiriam para equilibrar o poder norte-americano.

A previsão de Waltz é impossível de falsificar. Teoricamente, não se pode conceber um sistema internacional perpetuamente unipolar; no entanto, a durabilidade da hegemonia norte -americana (que se mantém até hoje nas questões político -militares) tem deixado as explicações neorrealistas enfraquecidas. Não se podem simplesmente ignorar duas décadas de predominância sistémica sem qualquer tentativa consistente, por parte de alianças ou estados individuais, de equilibrar o domínio de Washington. Neste contexto, Waltz contribuiu decisivamente para um dos principais debates dos anos 1990. Os realistas declaravam que a razão pela qual os Estados Unidos se mantinham isolados na posição de potência global era a esmagadora diferença de poder entre si e todos os potenciais rivais. Já os liberais enfatizavam o progresso das relações entre os estados (que percebiam que era do seu interesse nacional manter um sistema unipolar estável) e o caráter liberal da liderança norte -americana no sistema internacional – que por ser benigna reforçava a ausência da vontade política de equilibrar o poder norte-americano.

E apesar de hoje o cenário da ascensão de novas potências estar a ganhar terreno, a tendência da academia é concentrar -se em questões de ordem, tipo de regime e diversidade cultural, acrescentando à descrição da estrutura sistémica as tais variáveis que Waltz descartou e sem as quais não parece possível perceber a contemporaneidade. É quase impensável conceber que a China, chegando à posição de grande potência, tenha uma política externa semelhante à dos Estados Unidos.

No entanto, Waltz permanece o autor que criou e popularizou a matriz teórica a favor ou contra a qual quase todos os autores se posicionam. As mais importantes inovações teóricas das últimas três décadas (nomeadamente o liberalismo institucionalista, o construtivismo social e o realismo neoclássico) dialogam diretamente com Theory of International Politics, especialmente o seu conceito de anarquia2. Por estas e outras razões mais específicas, é quase impossível começar um artigo ou um livro de teoria das relações internacionais sem descrever os princípios basilares enunciados por Waltz, passando a concordar, concordar parcialmente, discordar ou corrigir.

 

A DEMOCRACIA E O SISTEMA

Hoje, mais de trinta anos após a publicação de Theory of International Politics, e perante a crescente importância de programas de estudos como a tese da paz democrática, as questões de identidade e diversidade relacionadas com as potências ascendentes, ou as consequências da oscilação do conceito de soberania, vale a pena perguntar porque é que Waltz pôs de lado tão depressa (em 1959) ou ignorou (em 1979) problemas relacionados com o tipo de regime, ainda que a Guerra Fria tenha sido, em parte, um confronto ideológico, que opôs duas visões distintas para a ordem internacional e instituições domésticas. Porque terá Waltz ignorado que as democracias e as autocracias se comportam de maneira diferente nas mesmas condições sistémicas – ao contrário de outros realistas que escreveram sobre a especificidade das democracias especialmente antes de 1979? Porque não explorou a preferência retoricamente assumida e empiricamente testada dos Estados Unidos por aliados democráticos bem como a sua desconfiança acentuada relativamente a regimes autocráticos? Por outras palavras, como é que Waltz, um dos maiores teóricos do século xx, poderá ter ignorado este fator, indispensável para compreender o mundo contemporâneo (seu e nosso)?

A resposta fácil é – porque Waltz era uma realista –, um realista estrutural e o seu maior objetivo foi excluir os fatores que não explicassem o comportamento de todos os estados. A sua teoria pretendia enfatizar as regularidades e não as inconsistências, as anomalias ou mesmo as mudanças sistémicas. Além disso, Waltz terá percebido a potencialidade da revolução behaviourista dos anos 1960 e transportou -a para as relações internacionais, onde é tantas vezes difícil adaptar as metodologias da ciência política. A academia norte -americana procurava tornar -se «mais científica» no que respeita à produção das ciências sociais e para isso tinha de se livrar de fatores incomensuráveis, por mais que estes estivessem presentes na realidade empírica. E nesse aspeto, Waltz inventou a roda.

Mas esta é apenas parte da razão. Waltz estudou, efetivamente, fatores morais e ideológicos, nomeadamente o papel do regime democrático na política externa dos estados. Waltz estudou a democracia e concluiu que fazia sentido excluí -la de trabalhos posteriores. Entre os já referidos Man, the State and War (1959) e Theory of International Politics (1979) fez outros estudos, entre eles o esquecido Foreign Policy and Democratic Politics – The American and British Experience (1967) onde mistura a política comparada e a teoria da política externa para apurar se há ou não peculiaridade na política externa das democracias. Este livro há muito esgotado e quase nunca citado ou referido, é a ponte que liga os trabalhos de Waltz, explicando a continuidade do seu pensamento. Do realismo clássico que caracteriza os primeiros trabalhos do autor (incluindo este) ao estruturalismo realista (ou neorrealismo), é possível identificar os passos que levaram à simplificação da realidade empírica e à construção teórica.

Foreign Policy and Democratic Politics é um livro que responde a uma das questões centrais do seu tempo. A maioria dos autores que escrevia sobre política internacional temia que o regime democrático fosse frágil e desvantajoso em questões de política externa. Dizia-se, no final dos anos 1960, que os «regimes autoritários tinham vantagens naturais»3 relativamente às democracias por não estarem sujeitos ao escrutínio da opinião pública e porque os princípios da política externa tinham sido criados e desenvolvidos por e para estados eminentemente oligárquicos. Para ser eficaz, o exercício da política internacional requeria meios normalmente equacionados com o autoritarismo, como a ausência de transparência na tomada de decisão e um tipo de continuidade que não se coadunava com ciclos eleitorais. Para vingar, os estados liberais enfrentavam dificuldades acrescidas que teriam de contornar para sobreviver. Dizia -se que «na selva das relações internacionais as democracias estão inerentemente em desvantagem»4.

Para apurar se esta premissa era verdadeira (como já foi dito, Waltz desconfiava que não, pelo menos desde 1959), o autor fez um estudo aprofundado das instituições internas das democracias mais poderosas do sistema, a Grã -Bretanha e os Estados Unidos. Waltz pôs a hipótese de que existiam fatores na política externa das democracias simultaneamente semelhantes entre si e diferentes da política externa das autocracias. Esses fatores, subentende -se, explicariam porque é que a política externa democrática seria menos eficaz que a autocrática, caso a premissa inicial colocada pelos seus contemporâneos de que as democracias apresentavam desvantagens no exercício das relações internacionais se confirmasse.

Aqui começam os problemas. Waltz escolheu três fatores que entendeu serem centrais na definição da política externa de qualquer Estado. Esses fatores são as instituições domésticas – neste caso as democráticas; as experiências e tradições que constituem a história de cada Estado; e os constrangimentos e oportunidades criados pelo sistema internacional – o que o autor define como «pressões de outras potências»5. Para este Waltz pré -estruturalista, a anarquia ainda é uma condição permissiva: «apesar do sistema existe um vasto leque de escolhas na política externa»6. Em 1967, Waltz ainda não é estrutural.

Quando aprofunda a questão empiricamente – estudando as estruturas governamentais dos dois países, a política militar britânica, a política de ajuda internacional americana, e casos de crise na política externa dos dois estados – o professor de Columbia conclui que as três variáveis independentes ou são demasiado diferentes entre si para estabelecer relações de semelhança, ou são incomensuráveis. O que explica que apesar da similaridade do tipo de regime, a Grã -Bretanha e os Estados Unidos tenham tido no passado (e tenham ainda) políticas externas acentuadamente diversas, com objetivos e consequências diferentes.

No que respeita ao primeiro fator – instituições internas – a Grã -Bretanha e os Estados Undidos resolvem os dois dilemas fundamentais das democracias – (i) a necessidade de se encontrarem acordos político-partidários para a construção de uma política externa coerente e (ii) a criação e manutenção de mecanismos políticos para distinguir a política externa e a política interna7 – de forma marcadamente diferente. Por outras palavras, os meios para atingir resultados semelhantes diferem.

A continuidade na política externa britânica deve -se a acordos forjados à volta da visão dos estadistas8. Líderes como James Bryce e Winston Churchill foram centrais na construção dos consensos na política britânica, uma vez que lhes foi reconhecida pelos diversos partidos políticos e pela opinião pública a capacidade de interpretação do passado e visão de futuro9. Estes líderes gozaram de uma legitimidade além da estrutura constitucional e burocrática, que permitiu ao Reino Unido uma surpreendente continuidade na definição do seu interesse nacional, e consequente facilidade nas sucessivas adaptações a diferentes situações sistémicas. Como explica Waltz, cada nova doutrina estratégica ou militar, nomeadamente o ajustamento à perda de poder após a II Guerra Mundial, era compatível com os «velhos hábitos» nacionais10.

Os Estados Unidos fazem depender as suas decisões do que Waltz chamou a «moderação dos partidos políticos»11 – um mecanismo que Tocqueville identificou com ciclos de «discórdia e consenso» próprios do pluralismo e do sistema de checks and balances – uma vez que a América tem mais atores envolvidos na tomada de decisão da política externa que a Grã -Bretanha. Este sistema garante um ponto de chegada – há sempre uma decisão final com um forte consenso bipartidário – mas muito menor coerência nas questões da política externa, o que explica viragens surpreendentes no percurso político americano, como a do isolacionismo no período entre as guerras diretamente para o papel de liderança do mundo ocidental no fim da II Guerra Mundial.

Em comum, o Reino Unido e a América têm dois fatores constantes – que ironicamente ultrapassam a sua condição democrática. O uso do nacionalismo para envolver a opinião pública nas decisões políticas e o medo de um inimigo que ameaça a sua sobrevivência – neste caso a União Soviética. Afinal, as democracias num sistema tão hobbesiano como os restantes estados12.

No que respeita às tradições e experiências dos estados, o segundo elemento elencado por Waltz, apesar de a Grã -Btretanha e os Estados Unidos serem ambos potências democráticas consolidadas, as suas conceções ideológicas têm sido tão diferentes, que se tornam objetos incomparáveis.

A Grã -Bretanha é uma potência marcadamente contida (fazendo jus à tradição soberanista e liberal negativa) e muito coerente durante toda a sua história. Quando era um império, fez uso da estratégia de off -shore balancing, intervindo apenas em caso de necessidade de equilíbrio do jogo de poder das potências europeias. A menos que se sentisse ameaçada, Londres absteve -se de qualquer intervenção em assuntos internos de outros estados. Por escapar à húbris que caracterizava as outras potências, conseguiu manter o seu estatuto de hegemonia por quase dois séculos; o mesmo princípio permitiu -lhe um «declínio gracioso» e a manutenção da influência no sistema, através de uma política de independência militar e da «relação especial» com os Estados Unidos.

Já a América tem sido uma potência revisionista devido ao seu histórico sentido de liberalismo positivo13. Sendo a democracia um dos valores centrais da política externa dos Estados Unidos, a sua expansão por diversos estados usando vários meios sempre foi vista como legítima pelas elites nacionais. Apesar dos constrangimentos sistémicos da Guerra Fria, Waltz leu no passado histórico, nomeadamente na tradição wilsoniana e nos extensos programas de ajuda externa desenvolvidos por Washington nos anos 1940 e 1950, um indício de intervencionismo que se viria a confirmar nos anos 1990 e 2000.

Se no elemento anterior as instituições democráticas eram diferentes, as tradições e experiências dos estados – neste caso as potências democráticas – são, para Waltz, incomensuráveis. Mas por não se poderem comparar não são por isso menos importantes: o interesse nacional é determinado pela história de cada Estado. E cada história é diferente de todas as outras.

Já no que respeita ao contexto – o sistema internacional – as posições da Grã -Bretanha e dos Estados Unidos foram sempre muito diferentes, desde o século xviii até aos anos 1960. Eram, por conseguinte praticamente impossíveis de comparar. Apesar de Londres ter sido a potência hegemónica nos séculos xviii e xix e de Washington deter uma posição de preeminência a partir da segunda metade do século xx, Waltz argumenta que as condições sistémicas que cada Estado enfrentou são também incomparáveis. Quando era uma hegemonia, o Reino Unido debatia -se com um mundo multipolar. Era um primo inter pares. Já os americanos eram líderes do mundo ocidental num contexto bipolar, enfrentando uma potência rival marcadamente agressiva e ideologicamente hostil14. Mesmo que quisessem, dificilmente poderiam adotar a mesma estratégia perante rivalidades e distribuições de poder tão diferentes.

Por outra palavras, para duas democracias serem comparadas de uma forma consistente e rigorosa, tinham de ocupar a mesma posição de poder no mesmo sistema internacional – ou, pelo menos, num sistema internacional de tipo semelhante. No caso das duas maiores e mais consolidadas democracias do mundo – na opinião de Waltz, e nos anos 1960 – essa realidade não existe. Desta forma, o sistema internacional é uma variável inconclusiva.

Quer isto dizer que é impossível comparar democracias? Waltz sugere que sim. Um leitor mais liberal encontra um ou outro fator comum e distintivo dos regimes liberais, nomeadamente a tradição das alianças em tempo de paz (iniciada pela Grã -Bretanha e aprofundada pelos Estados Unidos) e a legitimidade do processo de tomada de decisão que por necessitar de criar consensos pode ser mais sólido e duradouro (apesar de a regra se aplicar mais conclusivamente à Grã -Bretanha do que aos Estados Unidos).

O que Waltz conclui é que as instituições (i.e., o regime interno democrático), ainda que sejam importantes na construção da política externa, não explicam, na totalidade, o resultado final. São apenas um fator diluído numa segunda variável muito mais determinante: a experiência e a tradição histórica. Os estados respondem, acima de tudo, às suas experiências e inclinações identitárias. Por outras palavras, o tipo de regime não é necessariamente restritivo. Nem necessariamente fundamental. O que conta, essencialmente, é a identidade histórica, da qual o tipo de regime faz parte, mas está longe de ser a única característica. Diz Waltz, o construtivista.

Sendo o fator fundamental (identidade histórica) incomensurável, e as instituições e sistema internacional demasiado diferentes para estabelecer comparações, os elementos estudados neste livro são insuficientes para construir teoria. Por esse motivo, nas conclusões do seu livro, Waltz procura algum sentido de unidade. Encontra -o nos elementos que são comuns a todos os estados; democracias e autocracias têm as mesmas preocupações: as suas políticas externas dependem de interesses internos (os líderes autoritários não podem alienar as elites que os sustentam e os democráticos procuram perpetuar o seu poder através de eleições); as consequências das suas decisões têm custos e benefícios; e autocracias e democracias enfrentam os mesmos dilemas políticos (associados à sobrevivência dos regimes e do próprio Estado). Há mais semelhanças entre todos os estados do sistema – independentemente do tipo de regime – do que diferenças entre democracias e ditaduras. Para Waltz, esta é uma boa notícia. Se as democracias são tão diferentes entre si e os fatores determinantes incomparáveis ou incomensuráveis, e se simultaneamente apresentam semelhanças com os estados não democráticos no que respeita às preocupações na formulação da política externa, isso sugere que a desvantagem dos regimes liberais identificada pelos seus contemporâneos não existe.

E, ainda mais importante, está aberto o caminho à sistematização do mínimo denominador comum. Se o que determina a política externa dos estados são elementos únicos, o que é comum a todas as unidades são as oportunidades e constrangimentos do sistema (quando o sistema é o mesmo e as unidades têm um peso semelhante na distribuição do poder) que geram os mesmos dilemas aos estados que procuram assegurar a sua sobrevivência. E esta é a ideia central de Theory of International Politics.

 

FECHANDO O CICLO

Escrito em 1967, Foreign Policy and Democratic Politics, levanta quatro questões importantes. Em primeiro lugar, transporta -nos para uma mudança profunda na visão generalizada das relações internacionais. Waltz mostra -nos que, nesse tempo, a maioria dos autores estava preocupada com a fragilidade das democracias, ainda consideradas exceções no sistema internacional. Mais de quatro décadas depois, e apesar do pessimismo relacionado com a crise económica de 2008, a ideia de que o liberalismo é o mais legítimo e eficaz sistema de governação interna e internacional tornou -se um lugar-comum.

Contribuíram para esta mudança na visão das relações internacionais as quase sete décadas de hegemonia americana, o sucesso económico dos países ocidentais, a coesão da aliança das democracias durante e depois da Guerra Fria, a vitória do Ocidente no conflito bipolar e a subsequente crença no triunfo do liberalismo sobre ideologias rivais, entre outros fatores. A leitura de Waltz lembra -nos que este fenómeno é recente e por isso não necessariamente duradouro, especialmente agora, em que os Estados Unidos entraram em retraimento estratégico, que há dados empíricos que indicam que a terceira vaga de democratização pode estar em retrocesso15, e que se sentem fortemente os efeitos negativos da «primavera árabe». Como demonstrou Waltz, a continuidade da hegemonia do regime democrático – e as suas inquestionadas vantagens competitivas – não podem ser vistas como dados adquiridos.

Esta ideia leva -nos ao segundo ponto, uma pergunta: as democracias mudaram desde o final dos anos 1960 até agora (uma vez que mudou a forma como a teoria das relações internacionais entende o tipo de regime)? Waltz não acredita em determinismos históricos ou democráticos. Cada democracia (ou cada autocracia) está essencialmente dependente da sua história, cultura e experiência, da qual o tipo de regime é apenas uma pequena parte. Talvez seja esta a maior lição de Foreign Policy and Democratic Politcs. Assim, de acordo com Waltz, as democracias não são necessariamente aliados naturais como repetem os liberais; os seus interesses coincidiram circunstancialmente e é a conjuntura internacional que explica o sucesso das suas alianças. Consequentemente, se novas potências democráticas ascenderem no futuro, será necessário observá -las na sua história e experiência antes de concluir que terão relações pacíficas e cooperantes com as democracias tradicionais.

Em terceiro lugar, apesar de científico no que respeita aos padrões da época, Waltz demonstra uma velada preferência pela política da Grã -Bretanha relativamente aos Estados Unidos. O autor elogia em diversas ocasiões as virtudes da contenção na política externa britânica. Ainda que apenas implicitamente, Waltz parece partilhar a preocupação de realistas mais clássicos relativamente à tendência das grandes potências de se expandirem por razões mais ou menos ideológicas. Este problema foi quase esquecido durante a Guerra Fria, debatido exaustivamente nos anos 2000, devido à política externa de George W. Bush, e é agora retomado, no contexto das questões da Líbia e da Síria. Waltz vem fazer a defesa da visão realista, contrastando -a, com exemplos bem documentados, com uma posição mais liberal.

É possível que este aspeto tenha contribuído para a formulação do realismo defensivo (a aquisição de poder suficiente para manter os rivais afastados, mas não demasiado para não levantar desconfiança), central em Theory of Internacional Politics. É muito difícil determinar o que constitui o «poder suficiente» – um problema para uma teoria que pretende ser científica – mas a leitura de Foreign Policy and Democratic Politics clarifica que se trata de um conceito político -estratégico, relacionado com o comportamento dos estados. A contenção na política externa em geral, e nas intervenções militares em particular – o realismo defensivo –, é um dos mais importantes conceitos de Kenneth Waltz, amadurecido no livro de 1967 e sistematizado no livro de 1979.

Assim, e este é o último ponto que decorre do anterior, os três livros centrais de Kenneth Waltz devem ser vistos como um ciclo. Man, the State and War criou a base teórica dos níveis de análise e desvalorizou o fator individual (primeiro nível de análise) do estudo das relações internacionais. Foreign Policy and Democratic Politics é sobre o segundo nível de análise – o Estado. Waltz conclui que os estados são simultaneamente todos diferentes e todos iguais. Todos diferentes, porque a política externa está dependente da definição do interesse nacional, que por sua vez deriva das tradições e experiências de cada um. Esta dimensão da política externa é, portanto, incomensurável. Os estados também são todos iguais porque as lideranças e elites têm sempre o mesmo objetivo: a sua própria sobrevivência. Isso implica, pelo menos, duas coisas: um prévio entendimento interno no que respeita aos valores e à ambição da política externa – de modo a não alienar os grupos de interesse e a população (em democracia o risco é perder as eleições; em autocracia o risco é despoletar uma revolta popular), e a sobrevivência do Estado, o que requer que se obedeça às exigências da anarquia.

Theory of International Politics (a concretização do terceiro nível de análise) é o resultado da supressão dos fatores incomensuráveis do estudo das relações internacionais. Waltz excluiu o fator individual e as características do Estado, e observou as relações sistémicas de Vestefália à Guerra Fria. Concluiu que os estados que sobreviveram e prosperaram apresentaram uma estratégia comum: resistiram a tentações hubrísticas – são maximizadores de segurança e não de poder; recorrem ao equilíbrio de poder como estratégia de contenção de eventuais rivais; e reproduzem as boas práticas uns dos outros.

O legado de Kenneth Waltz é, portanto, muito mais rico e complexo do que Theory of International Politics ou intervenções polémicas relativamente à nuclearização do Irão, tema a que se dedicou nos últimos anos de vida. Concorde -se ou não com as suas posições, o seu percurso académico é notavelmente sustentado e consistente caso não se salte a leitura do seu livro mais desconhecido.

 

Data de receção: 28 de junho de 2013 | Data de aprovação: 30 de agosto de 2013

 

NOTAS

1 Waltz, Kenneth – «Structural Realism after the end of the Cold War». In International Security. Vol. 25, N.º 1, 2000, pp. 5-41.         [ Links ]

2 Os exemplos são inúmeros, mas podem referir-se os clássicos do liberalismo internacionalista (Keohane, Robert – After Hegemony. Princeton: Princeton University Press, 1994) do construtivismo (Wendt, Alexander – Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999) ou a coletânea de respostas críticas ao trabalho de Kenneth Waltz por diversos autores liberais, marxistas e da teoria crítica (Keohane, Robert (ed.) – Neo-Realism and Its Critics. Nova York: Columbia University Press). Os realistas neoclássicos também entram em diálogo com Waltz; ver, por exemplo, o capítulo introdutório e conclusão de Lobell, Stephen E., Lipsman, Norrin M., e Taliaferro, Jeffrey (ed.) – Neoclassical Realism, the State and Foreign Policy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

3 Waltz, Kenneth – Foreign Policy and Democratic: The American and British Experience. Boston: Little, Brown and Company, 1967, p. 309.         [ Links ]

4 Ibidem, p. 11.

5 Ibidem, p. 21.

6 Ibidem, p. 141.

7 Ibidem, p. 64.

8 Ibidem, p. 143.

9 Ibidem, p. 67.

10 Ibidem, p. 143.

11 Ibidem, p. 141.

12 Ibidem, p. 72.

13 Ibidem, p. 308.

14 Ibidem, p. 5.

15 Kurlantzick, Joshua – Democracy in Retreat: The Revolt of the Middle Class and the Worldwide Decline of Representative Democracy. New Haven: Yale University Press, 2013.         [ Links ]