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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Waltz e a (não) proliferação – mais armas nucleares, mais paz? O Irão nuclear à luz do realismo estrutural1

Waltz and (non-)proliferation – more nuclear weapons, more peace? A nuclear Iran and structural realism

 

Bruno Cardoso Reis

Licenciado e mestre em História (Faculdade de Letras de Lisboa). Tem o mestrado em Historical Studies pela Universidade de Cambridge (2003). É doutor em Segurança Internacional (War Studies, King’s College) desde 2008, com uma tese sob o título Big Armies and Small Wars. Em 2007, publicou Salazar e o Vaticano que recebeu os prémios Vítor de Sá e Aristides de Sousa Mendes. É atualmente investigador no ICS-UL e investigador associado do King’s College e no IDN.

 

RESUMO

Neste ensaio olhamos para o ponto de vista de Waltz relativamente ao tema tão atual da proliferação nuclear. Desde o início dos anos 1980 até à sua morte, Waltz manteve um grande interesse e uma posição muito própria sobre este assunto. À luz do realismo estrutural Waltz nega a existência, e recusa, que a difusão de armamento nuclear, mesmo para uma teocracia como o Irão, seja um problema. Procuraremos explicar porquê; e a partir deste tema desenhar o perfil intelectual de Waltz como um realista que valoriza o papel dos estados em geral na segurança internacional, mas foi frequentemente crítico das políticas de segurança do «seu» Estado, os Estados Unidos.

Palavras-chave: Kenneth N. Waltz, realismo estrutural, nuclear, Irão

 

ABSTRACT

In this essay we look at the question from Waltz’s point of view of the very topical issue of nuclear proliferation. Since the early 1980s until his recent death Waltz kept an ative interest and a very specific position on this matter. He denied there was such a thing as nuclear proliferation and, moreover, refused that, in light of structural realism the spread of nuclear weapons, even to a theocracy like Iran, would be a problem. This paper will explain why and around this theme we will draw the intellectual profile of Waltz as a realist that values the role of the State in international security, but was often critical of the security policies of his own state, the United States.

Keywords: Kenneth N. Waltz, Structural Realism, nuclear, Iran

 

Desde que em 1981 publicou um famoso Adelphi Paper e até à sua morte, Kenneth Waltz (1924-2013) mostrou sempre grande interesse pela questão da proliferação nuclear, embora cético à forma como esta temática tem sido abordada. Dedicou-lhe o seu último texto, publicado em julho de 2012 na revista Foreign Affairs, em que defendeu que a potencial aquisição de armas nucleares pelo Irão não merece o alarme que tem gerado. Pelo contrário, Waltz atreveu-se mesmo a afirmar que poderia contribuir para a paz no Médio Oriente. De que forma tal poderia acontecer, é o que veremos, mas o essencial da resposta está contida no subtítulo do seu artigo de 2012, «Nuclear balancing would mean stability». Como habitualmente, as suas controversas tomadas de posição originaram contestação no número seguinte da revista a que ele respondeu da forma que habitualmente o caracterizava – parcimoniosa, diriam os seus admiradores, telegráfica e rígida diriam os seus críticos2. É com base nesses textos, assim como em entrevistas sobre o seu percurso que este nosso curto ensaio se irá basear3.

Esta é, portanto, uma temática cara a Waltz, reveladora de aspetos essenciais do seu perfil intelectual e da sua contribuição para a disciplina das relações internacionais. Waltz afirmou ter como objetivo principal do seu trabalho estudar «o tipo de armamento disponível» a par da «estrutura do sistema» como os dois fatores fundamentais de relevância constante na análise das relações internacionais. Não espanta que se tenha interessado mais pelo armamento com maior impacto na dinâmica do sistema internacional pela sua natureza, as mais poderosas armas existentes, a ponto de ser comum utilizar-se as expressões «armamento nuclear» ou «armamento estratégico» como sinónimas.

Iremos começar por esboçar o essencial do argumento de Waltz quanto à questão genérica da proliferação. Depois apontaremos para o caso concreto do Irão que inspirou o último texto significativo de Waltz para melhor perceber as implicações da sua posição relativamente a esta questão. Concluiremos este curto ensaio apontando quer alguns pontos fortes, quer alguns pontos fracos quanto à abordagem estruturalista de Waltz à disciplina e também relativamente às suas sugestões sobre a melhor forma de os estados responderem à questão da proliferação.

 

A PROLIFERAÇÃO NUCLEAR COMO UM ERRO DE DESIGNAÇÃO E A CONTRIBUIÇÃO NUCLEAR PARA A PAZ

«A palavra proliferação é uma escolha muito infeliz […] e as armas nucleares nunca proliferaram nem deram sinais disso. As armas nucleares têm aumentado a um ritmo extremamente lento. Há armas nucleares desde 1945 e atualmente existem nove países com armas nucleares […] não se pode falar de proliferação. [O armamento nuclear é a] maior força para a paz que o mundo alguma vez viu.»4

Há uma ligação íntima entre o nuclear e a emergência das relações internacionais. O campo teve um primeiro núcleo especialmente dinâmico na estratégia e nos estudos de segurança que receberam um impulso decisivo como parte da tentativa de encontrar respostas rigorosas e aprofundadas para a mortalidade e destruição numa escala nunca antes vista desde a primeira e a segunda guerras mundiais. Waltz cresceu no período entre guerras e foi recrutado pelo exército durante o segundo conflito mundial que viu morrerem muitos jovens da sua geração.

A II Guerra Mundial culminou com o espetáculo terrível da destruição de duas cidades inteiras com a utilização de um engenho explosivo desconhecido – a bomba atómica. O surgimento deste tipo de armamento até aí desconhecido, com um potencial destruidor nunca antes visto, tornou urgente pensar a fundo as suas implicações, que escapavam à estratégica convencional tradicionalmente dominada por militares. Os civis que se envolveram nesse esforço de pensar o nuclear fizeram a ponte entre os esforços de pensar racionalmente o quase impensável pela criação de uma disciplina minimamente autónoma das relações internacionais.

A tese de doutoramento de Waltz publicada em 1959 com o título Man, State and War fez parte desse esforço, argumentando que era a própria natureza do sistema internacional que tornava a guerra um fenómeno recorrente5. Waltz não se dedicou, então, especificamente à questão do nuclear, muito trabalhada por muitos outros; mas sim de forma significativamente ambiciosa à questão genérica das origens da guerra. Mas já nesta obra se destaca um traço fundamental na sua abordagem à questão da segurança internacional em geral e que se tornará central também na sua abordagem à proliferação nuclear: a desvalorização das especificidades da liderança e do regime de um qualquer país concreto, em favor da importância primordial dos fatores sistémicos, nomeadamente da questão do equilíbrio de poder.

Waltz não contesta, note-se, a grande atenção que a estratégia tem dedicado à questão do armamento nuclear. Não questiona a importância do armamento nuclear nas dinâmicas do sistema internacional, pelo contrário até a sublinha. O que Waltz contesta é que faça sentido falar da proliferação nuclear como um problema nesse contexto de uma abordagem fria, racional, realista ao nuclear. E a verdade é que também se mostra cético relativamente à grande complexidade que muitas das abordagens à estratégia nuclear foram assumindo, como iremos ver adiante.

Deste ponto de vista da atenção primordial às tendências sistémicas o que lhe importa é um facto inédito e de extrema importância. Waltz nota que desde 1945 nunca mais se viu uma Grande Guerra entre grandes potências apesar das transformações políticas e das transferências de poder muito significativas que se verificaram nesse período – desde a descolonização até ao fim da Guerra Fria e do sistema bipolar. Este facto fundamental e inesperado só pode ser explicado, segundo Waltz, pelo facto de as grandes potências terem arsenais nucleares, e assim passaram a ter de uma forma absolutamente a certeza de que um confronto direto e em grande escala entre elas seria suicídio mútuo – uma segurança preciosa no quadro de incerteza generalizada típica da estrutura anárquica da política internacional e impossível anteriormente.

O ponto principal de Waltz é que objetiva e historicamente não é correto usar-se a expressão proliferação nuclear. Waltz sempre insistiu na precisão das palavras e na importância de uma linguagem cuidada em termos de qualidades académicas fundamentais. Nas entrevistas que concedeu sobre o balanço da sua vida académica isso ficou bem claro. Quando perguntado sobre as personalidades que tiveram uma influência fundamental sobre a sua formação intelectual, Waltz apontou para um excelente professor de inglês do ensino secundário. Confessou mesmo que chegou a contemplar dedicar-se à literatura antes de optar pela teoria política. Para Waltz, portanto, uma escolha errada de palavras não é um problema estilístico de somenos. É algo de essencial, um início fundamentalmente errado que impede uma boa análise do problema.

Nos seus textos, portanto, em alternativa à «proliferação», expressão errada do seu ponto de vista, usará sempre o termo «disseminação» (spread) das armas nucleares. Pois para ele o que há de excecional na tecnologia militar nuclear não é que ela se tenha difundido numa dinâmica de contágio exponencial e rápido, difícil de controlar; mas o contrário, que se tenha espalhado muito lentamente. Como Waltz sublinha, desde 1945 que o número de potências nucleares tem aumentado, mas muito lentamente – entre 192 estados apenas nove possuem arsenais nucleares. E porquê? Segundo Waltz tal acontece essencialmente porque as potências nucleares são muito ciosas e controladoras do enorme poderio que lhes é dado pela posse de armamento nuclear, e portanto guardam ciosamente esse exclusivo. Exatamente o contrário daquilo que afirmam os que argumentam com o grande risco de proliferação.

Do ponto de vista de Waltz este egoísmo estatal quanto ao armamento nuclear faz todo o sentido. Os estados são acima de tudo ciosos da preservação e manutenção do seu poder, sobretudo no campo militar. Não é por acaso que o monopólio do uso legítimo da força foi mesmo – desde, pelo menos, Max Weber – visto como um elemento fundamental definidor do Estado. Um poder tão grande como o nuclear justificaria mais do que nunca que o Estado cuidasse de garantir esse monopólio. É fundamentalmente por esta razão que Waltz é também muito cético quanto ao risco de um qualquer Estado promover o terrorismo nuclear.

Se o sistema internacional deveria ser, como Waltz afirma, o elemento determinante do seu comportamento no quadro de um sistema em que reina a regra de cada um por si, típico de um jogo de soma-zero, em que ou se vence ou se perece, o armamento nuclear surge como um fator fundamental de segurança adicional, um elemento de redução da incerteza do dilema de segurança, e portanto um fator pacificador.

Mais ainda, fica evidente para Waltz que o armamento nuclear pelas suas características específicas se presta especialmente «apenas a uma função dissuasora». De um ponto de vista racional não faz sentido, para Waltz, pensar nelas para uma função ofensiva. Ou seja, a tradição do seu não uso do ponto de vista de Waltz reflete uma opção racional. Esta opção é aliás relativamente simples de tomar: «não são necessários cálculos complicados, apenas um pouco de bom sendo».

Waltz responde aos seus críticos – nomeadamente Scott Sagan que insiste na necessidade de uma gestão cuidadosa e complexa de um sistema nuclear militar: «quem, exceto um idiota, poderia deixar de perceber a sua força destrutiva? O que mais seria preciso perceber? Como é que uma liderança poderá errar um cálculo desta natureza?»6 Na sua crítica à ideia de proliferação, Waltz é portanto também claramente crítico de uma abordagem excessivamente complexa, assente em modelos muito elaborados e desnecessariamente complicados de teoria dos jogos ou system analysis à questão do nuclear.

Mais ainda, também parece a Waltz que se exagera muito a dificuldade de conseguir obter uma capacidade second strike – cuja ausência poderia tentar um uso ofensivo de armamento nuclear, na lógica de use it or loose it. Ou seja, não seriam necessários milhares de mísseis, bastaria haver alguma incerteza quanto à possibilidade de destruir todos os mísseis do adversário, e que seria relativamente fácil mesmo que o seu número seja baixo, basicamente do ponto de vista de Waltz o risco existirá sempre e será demasiado sério para qualquer Estado racional arriscar um confronto. Mas será que se pode confiar cegamente na racionalidade dos estados?

 

MESMO NO CASO DO IRÃO, MAIS ARMAS NUCLEARES PODERÃO SER MELHORES PARA A PAZ

«Não conseguimos apreender o simples facto de que todas as potências nucleares se comportam tal como as anteriores. As armas nucleares tornam os países mais modestos, mais moderados, mais cautelosos. Não vejo motivos para acreditar que o Irão com armamento nuclear seja diferente.»7

O caso do Irão ofereceu a Waltz uma última oportunidade de mostrar que não temia levar as conclusões de uma análise friamente realista da lógica e das tendências de longo prazo do sistema internacional mesmo aos casos mais controversos.

Waltz considera que a ideia de que a difusão lenta do armamento nuclear que se tem verificado ainda seria um grande risco para a paz, e a ordem internacional é irracional. Ela corresponde, segundo Waltz, a um preconceito dos poderes instalados contra os novos estados nucleares, que passa pela ideia de que estes estariam mais predispostos a arriscar utilizar o armamento nuclear de forma temerária. Para Waltz é claro que, pelo contrário, o armamento nuclear terá, pela sua natureza, um efeito estabilizador e pacificador.

Waltz discorda totalmente dos que consideram que pelo facto de este Estado ser uma teocracia, automaticamente se comportará de forma fundamentalmente distinta da racionalidade normal dos outros estados. Como afirmara no seu texto clássicos sobre a questão da dita proliferação «qualquer que seja a identidade dos governantes, quaisquer que sejam as características dos estados, o comportamento nacional dos estados destes é fortemente condicionadoa pelo mundo exterior». Ora, continua Waltz, «de todas as forcesforças externas possíveis, qual poderá afectar mais fortemente o comportamento do Estado senão as armas nucleares?»8

Mais, Waltz nega terminantemente que o Irão seja governado por «mad mullahs», por clérigos tresloucados, cegos pelo fanatismo religioso. Afirma que o importante não é a «Teo» mas sim a «Cracia». Ou seja, o que importa não é que se trate de «religiosos», mas sim que se tenham tornado «detentores do poder», líderes estatais. Ora, como quaisquer outros líderes estatais, eles só chegaram onde estão, ao poder cimeiro, porque se têm revelado exímios praticantes da difícil arte da sobrevivência no meio hostil da política. Waltz vai mesmo ao ponto de afirmar que no que toca a aprender a disciplina do realismo político, os regimes autoritários são frequentemente uma escola bem mais dura e exigente do que as democracias liberais. Waltz conclui que não há nenhuma razão racional para acreditar que os líderes da República Islâmica do Irão sejam mais loucos do que os líderes da República Popular da China, que se tornou uma potência nuclear em 1964, seguindo-se uma década de radicalização e extremismo político interno sem que alguma vez a China de Mao pareça ter encarado as armas nucleares como outra coisa que não um seguro de vida contra ameaças externas.

Para Waltz faz sentido, numa lógica sistémica, que o Irão procure ser um potência nuclear, desde logo para contrabalançar o poderio nuclear até aqui exclusivo de Israel no Médio Oriente. A existência de Israel como única potência nuclear no Médio Oriente torna ao mesmo tempo altamente provável que surja outra a contrabalançá-la, e garantirá que se o Irão se tornar uma potência nuclear ela será dissuadida de usar o seu armamento nuclear de outra coisa que não seja numa estratégia de defesa por dissuasão da sua integridade territorial.

Waltz está disposto a aceitar um dos contra-argumentos dos críticos de um Irão como potência militar nuclear, mas não outro. Waltz aceita que o Irão com armas nucleares poderá sentir-se mais livre para patrocinar guerras não convencionais e indiretas (proxy) e para patrocinar grupos terroristas. Mas, importa sublinhar isso, não porque Waltz considere que tal seja um traço específico do Irão, mas sim porque vê nisso uma tendência comum a todas as potências nucleares, desde a urss aos próprios Estados Unidos durante a Guerra Fria, passando mais recentemente pelo Paquistão. Mas fiel à sua linha fortemente estatocêntrica, Waltz desvaloriza estas ameaças assimétricas do terrorismo ao comparar as baixas limitadas que provocam ao das grandes guerras, como a II Guerra Mundial que o próprio Waltz testemunhou.

Uma crítica que Waltz não aceita é a de que um Irão com armas nucleares levará a uma corrida ao armamento nuclear no Médio Oriente com outras potências a pretenderem fazer o mesmo. Segundo ele, como vimos a própria expressão proliferação é enganadora e errónea. E o Médio Oriente seria um bom exemplo disso. Afinal, se um Israel nuclear não levou a uma corrida ao armamento nuclear no Médio Oriente, porque é que um Irão nuclear levaria a isso?

Waltz considera, em suma, que há que desvalorizar a política interna face à dimensão internacional sistémica. Portanto, no caso do Irão, não atribui grande importância à retórica antissemita e antiamericana da sua ideologia oficial, antes sublinha que é perfeitamente racional que o Irão queira contrabalançar o poder nuclear de Israel, e que não há que temer um martírio nuclear pela liderança iraniana. Até que ponto será realmente assim? De que forma devemos olhar para toda esta argumentação de Waltz relativamente à proliferação nuclear?

 

UM RACIONALISTA ESTATOCÊNTRICO CRÍTICO DA POLÍTICA EXTERNA NORTE-AMERICANA

«O tipo de armamento disponível e a estrutura do sistema são dois fatores com uma importância constante [nas relações internacionais].»9

Kenneth Waltz teve um papel fundamental na transformação das relações internacionais de um campo de estudo vago para uma disciplina académica autónoma com ampla produção teórica específica. Waltz foi sem dúvida um monista, não um pluralista na sua abordagem à disciplina das relações internacionais. Na famosa tipologia de Isaiah Berlin, então Waltz seria claramente um hedge-hog, alguém que sabe apenas uma coisa, mas algo de fundamental. A analogia provavelmente agradaria a Waltz. Pois, o porco-espinho é um animal fundamentalmente caracterizado por estar bem armado para dissuadir ou contrariar qualquer ameaça à sua sobrevivência.

Waltz foi acusado de ser criador de uma ortodoxia rígida e favorável aos poderes dominantes. Do ponto de vista de Waltz é certo que só era possível construir uma disciplina específica das relações internacionais, em alternativa a vagas e idiossincráticas análises da política internacional, com base numa teoria assente no nível sistémico da política internacional. Essa teoria teria de basear-se no dado estrutural caracterizador do sistema político internacional – a anarquia, no sentido da ausência de uma autoridade superior que monopolizasse a violência a nível global, cabendo a cada Estado, num jogo de soma-zero, garantir a sua própria segurança se quisesse sobreviver. Para Waltz isso significava que era a distribuição de poder em geral, e em particular do armamento mais importante, que era determinante do comportamento racional ótimo dos estados. Este podia nem sempre conformar-se a essa determinante estrutural, mas se o não fizessem pagariam um preço, eventualmente fatal.

Hoje olha-se para Waltz e para as suas ideias como uma ortodoxia instalada e são criticadas por estarem organicamente ligadas aos interesses dos estados em geral e da potência hegemónica dos Estados Unidos em particular. A chamada teoria crítica das relações internacionais afirmou-se precisamente em oposição à noção de que o realismo estrutural correspondia a uma corrente intelectual estruturalmente (ou organicamente) ligada ao Estado.

Não podemos, de facto, aprofundar aqui este debate. Mas importa sublinhar que no início, em 1979, quando Waltz avançou com a sua ousadamente designada obra Teoria das Relações Internacionais, ela chocava com a opinião então dominante. Waltz contrariava ideias defendidas por autores tão influentes quanto o próprio Hans Morgenthau, Raymond Aron ou Stanley Hoffmann, que afirmavam que o campo da política internacional era demasiado complexo para poder ser objeto de uma teoria e de uma disciplina apenas. Nessa altura, no início dos anos 1980, o mainstream das relações internacionais era provavelmente realista, mas certamente não no sentido de Waltz. As suas ideias foram, inicialmente sobretudo, fortemente contestadas. No entanto, acabaram por se revelar fundamentais para legitimar a consolidação da autonomia da disciplina das relações internacionais, do reforço da sua identidade própria. Esse facto em termos da realidade da vida académica foi provavelmente, a par do mérito próprio, importante na popularização das teses de Waltz. Nesse sentido, Waltz tornou-se mainstream.

Dificilmente, porém, se poderá condenar Waltz pelo seu sucesso na via que ele considerava a mais correta para a disciplina, e que contribuiu para o sucesso da mesma ao nível da sua autonomização e identidade. Aliás, não parece ter impedido a emergência de várias fortes correntes alternativas críticas do realismo estrutural como o construtivismo, relativamente ao qual Waltz se mostrava muito crítico, mas que inegavelmente tem contribuído para a contínua expansão e vitalidade do campo das relações internacionais.

Não nos parece justificada, porém, a ideia de Waltz como um intelectual orgânico. Waltz era um defensor do Estado em abstrato e nesse sentido da ordem política estabelecida, certamente não era um revolucionário. Waltz valorizava o papel do Estado na segurança internacional – à falta de melhores alternativas que lhe parecessem minimamente realistas. Mas nunca foi um académico ao serviço da justificação da política externa e de defesa dos Estados Unidos. A sua abordagem sem dúvida foi sempre centrada no Estado. Mas a rigidez ou coerência da sua adesão ao realismo estrutural levou Waltz e muitos dos seus seguidores a serem fortemente críticos da política externa dos Estados Unidos em muitos casos, do Vietname ao Iraque.

Um exemplo muito relevante desta postura crítica de Waltz relativamente à política externa e de segurança dos Estados Unidos é precisamente a sua posição face ao que considera a falsa ideia de proliferação nuclear. Vê portanto como má política o combate a esse mal imaginário, apesar de ela ter sido, publicamente, uma das principais prioridades da política de segurança externa norte-americana – seja de democratas ou republicanos – nas últimas décadas. Waltz afirmou-o de forma coerente, mas corajosamente dado o contexto da política interna norte-americana, particularmente ao referir-se expressamente ao caso do Irão, cuja nuclearização tem sido recusada como uma grande ameaça para a paz por um amplo consenso político nos Estados Unidos e não só. Ora, segundo Waltz, à luz da lógica básica do sistema internacional, a existência de uma grande potência nuclear cria uma tendência para a contrabalançar, o que significa que Israel não poderia, segundo Waltz, continuar indefinidamente a ser a única potência nuclear na região do Médio Oriente. O Irão ter-se-ia limitado a preencher esse papel. Defender esta tese não é propriamente mainstream, certamente não nos Estados Unidos. Ele motivou mesmo uma eloquente expressão de desagrado do atual primeiro-ministro de Israel, que um mês depois da publicação do texto de Waltz referiu que «alguns chegaram mesmo ao ponto de dizer que o Irão com armas nucleares irá estabilizar o Médio Oriente. Penso que as pessoas que dizem isso estabeleceram um novo padrão para a estupidez humana»10. Uma expressão que devemos ler mais como um sinal de extremo desagrado político do que como uma análise cuidada e imparcial das teses de Waltz.

A abordagem de Waltz tem a vantagem evidente da clareza, da coerência e da simplicidade. Obriga-nos a confrontar preconceitos comuns contra as armas nucleares e os seus terríveis efeitos ao afirmar que, de forma contraintuitiva talvez, precisamente por causa dos seus temíveis danos poderão acabar por ser um elemento pacificador das dinâmicas de conflito internacional – desde que usadas sempre de forma estrategicamente racional, e o incentivo para o fazer neste caso é tão massivo quanto o potencial destrutivo do armamento nuclear. O que não significa que não se lhe possa apontar críticas, desde logo por este acentuado racionalismo.

Não estará Waltz, porém, a cair numa visão otimista da proliferação nuclear por via de um excessivo racionalismo que não tem em conta não haver garantias de uma reação puramente racional da parte dos estados, menos ainda do risco de colapso dos mesmos que poderia levá-las a considerar opções que iriam para além da dissuasão de uma ameaça externa à segurança do Estado. É possível que quer a Coreia do Norte, quer o Paquistão sejam já exemplos das tentações de uma lucrativa indústria de exportação do nuclear e no caso de estados mais fracos e não grandes potências desenvolvam um arsenal nuclear. Waltz também não teve minimamente em conta o Irão como desafio ao regime legal do Tratado de Não-Proliferação, e o facto de estas normas e as sanções a ela associadas poderem ser um fator importante de incentivo ou desincentivo a outros estados na caminhada para o nuclear. Se cada vez mais estados o violarem com sucesso, outros estados, potências emergentes à procura de confirmar o seu estado, ou estados párias à procura da segurança última, poderão ser tentados a seguir o mesmo caminho. Ora, num sinal de alguma tensão nos seus argumentos, Waltz ao mesmo tempo afirma que é praticamente impossível impedir um Estado determinado a adquirir um arsenal nuclear e que seria negativo que houvesse uma abundância de estados com armas nucleares, mas que não há risco de que tal aconteça.

Também parece evidente que Waltz não conseguiu resistir à tentação contra a qual ele próprio preveniu de usar a teoria estrutural não apenas para fazer análise de padrões gerais e sobre o que seria esperar se os estados fossem atores racionais, mas também ele desceu ao nível das análises e recomendações de políticas concretas. Caberia a uma teoria estrutural das relações entre estados prever grandes tendências e oferecer grandes modelos explicativos, mas não necessariamente explicar casos concretos específicos. Precisamente porque, como Waltz refere, a teoria ajuda a estabelecer o que seria mais racional que os estados fizessem em função da sua posição no quadro da distribuição de poder – nomeadamente militar – no sistema internacional, mas evidentemente não obriga em absoluto que o façam efetivamente. Simplesmente, se os estados fizerem opções erradas do ponto de vista desta lógica sistémica pagarão um preço. A questão é que relativamente ao problema da proliferação nuclear o preço arrisca-se a ser mais terrível do que nunca.

Concretizando, Waltz poderia afirmar que numa lógica sistémica faz sentido que o Irão queira armar-se para contrabalançar Israel, mas não faria sentido que usasse esse armamento de forma suicida. Mas tal seria apenas uma tendência e a realidade concreta poder ser bem mais complexa e irracional do que isso. Claro que uma possível resposta de Waltz seria dizer que ele apenas faz uma análise de tendências mais racionais e prováveis – e é assim que deve ser lida a sua análise – não como uma previsão segura do que realmente irá acontecer. Sinais disso são o facto de que ele afirma que «certezas ninguém pode ter quanto a esta ou outras questões, e portanto a sua conclusão é formulada em termos probabilísticos e não absolutos «mais armas nucleares poderá ser melhor» para a paz, no sentido de ausência de grandes guerras entre grandes potências.

Ainda assim, pode-se criticar Waltz por desvalorizar a política interna dos estados e das organizações. Scott Sagan, o seu principal crítico e coautor do famoso livro conjunto de debate desta temática, critica Waltz precisamente por esta razão. Sagan usa os argumentos da corrente da chamada política burocrática e procura «trazer as organizações de volta para a teoria das ri», algo que o construtivismo também tem procurado fazer em tempos mais recentes. Sagan e esta corrente defendem a ideia de que a ação dos estados está longe de ser determinada apenas pela racionalidade estratégica. Ela pode ser distorcida de forma deliberada ou acidental por funções ou disfunções burocráticas, por interesses ou perceções institucionais. Os argumentos de Sagan claramente merecem ponderação, de acordo com o próprio Waltz que não desdenhou debatê-los extensamente e publicá-los conjuntamente com os seus. Mas, no essencial, Waltz considera que eles refletem perturbações secundárias e incertezas inevitáveis, mas que não são a base correta de uma análise sistémica e racional dos grandes padrões do problema.

 

NOTA FINAL

Waltz, em conclusão, avança com uma série de previsões que será interessante acompanhar no futuro para avaliar da pertinência dos seus argumentos e da sua teoria estrutural, ainda que o risco de que se tenha enganado possa acarretar consequências pesadas. Será que realmente o Irão, como outros estados determinados a ter armas nucleares como a sua defesa última, acabará por ultrapassar todas as barreiras e tornar-se uma potência nuclear? Será que a política de contraproliferação em que os Estados Unidos tanto têm investido é, portanto, uma política sem sentido, condenada ao fracasso perante um Estado determinado a tornar-se uma potência nuclear? Será que outros estados, a começar pelos Estados Unidos e mesmo Israel, acabarão por agir com a avaliação de Waltz do que uma lógica fria de equilíbrio de poder ditaria, evitando um conflito contra um Estado militarmente relativamente forte como o Irão (por contraste com o Iraque ou a Síria ou a Líbia), e limitar-se-ão a contrabalançar e dissuadir pacificamente uma nova potência nuclear?11 Teremos de esperar para ver.

Mas do que não restam dúvidas é que Waltz na sua abordagem à temática da difusão do armamento nuclear entre estados – terminologia que ele preferia ao falso alarmismo da dita proliferação – não temeu oferecer um teste claro das virtualidades e das possíveis falhas do realismo estrutural numa questão altamente controversa. Dificilmente se poderá negar a Waltz coragem intelectual na forma como pegou nesta temática explosiva da proliferação nuclear. E a virtualidade de animar o debate sobre estes temas, algo que certamente os seus textos continuarão a fazer. A teoria de Waltz relativamente à proliferação nuclear funciona bem como teoria racionalista. A grande questão será saber se funciona bem como política racional.

 

Data de receção: 28 de junho de 2013 | Data de aprovação: 8 de agosto de 2013

 

NOTAS

1 A pesquisa para este artigo foi apoiada por fundos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

2 Waltz, Kenneth N. – «Why Iran should get the bomb». In Foreign Affairs. Vol. 91, N.º 4, 2012, pp. 2-6;         [ Links ] Kahl, Colin, e Waltz, Kenneth N. – «Iran and the bomb». In Foreign Affairs. Vol. 91, N.º 5, 2012, pp. 157-162.         [ Links ]

3 Waltz, Kenneth N. – «Teoria estrutural da política internacional. Entrevista com Bruno Cardoso Reis». In Relações Internacionais. N.º 29, 2011, pp. 129-141;         [ Links ] Waltz, Kenneth N. – «Theory and international politics. Entrevista com Harry Kreisler». In Conversation with History, 10 de fevereiro de 2003. [Consultado em: 14 de novembro de 2010]. Disponível em:

4 Waltz, Kenneth N. – «Teoria estrutural da política internacional. Entrevista com Bruno Cardoso Reis», p. 135.

5 Waltz, Kenneth N. – Man, State and War: A Theoretical Analysis. Nova York: Columbia UP, 1959.         [ Links ]

6 Waltz, Kenneth N. – «More may be better». In Sagan, Scott e Waltz, Kenneth N. – The Spread of Nuclear Weapons: a Debate., Nova York: WW Norton, 1995, pp. 98 e 113.         [ Links ]

7 Waltz, Kenneth N. – «More may be better», p. 98.

8 Waltz, Kenneth N. – «Teoria estrutural da política internacional. Entrevista com Bruno Cardoso Reis», p. 134.

9 Waltz, Kenneth N. – «More may be better», pp. 98-113.

10 Cit. in Martin, Douglas – «Kenneth Waltz, foreign-relations expert, dies at 88». In The New York Times,18 de maio de 2013. Disponível em: http://www.nytimes.com/2013/05/19/us/kenneth-n-waltz-who-helped-shape-international-relations-as-a-discipline-dies-at88.html?pagewanted=all&_r=0.

11 É interessante notar que sempre que Israel realmente atacou preventivamente instalações nucleares noutros estados fê-lo de surpresa e sem qualquer anúncio prévio (Iraque, Síria). No caso do Irão teremos, relativamente a Israel, um caso de «cão que ladra mas não morde»? Ou seja, estas ameaças públicas de Israel seriam uma tentativa de dissuadir o Irão, mas também um sinal de que um ataque militar em grande escala estaria fora dos planos.