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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Waltz e a unipolaridade americana1

Waltz and the American unipolarity

 

Nuno P. Monteiro

Doutorado pela Universidade de Chicago (2009). É professor assistente de ciência política e diretor do mestrado em Assuntos Globais na Universidade de Yale. O seu trabalho pode ser lido nas revistas Critical Review, Foreign Affairs, International Organization, International Security, e International Theory. O seu livro Theory of Unipolar Politics será publicado em 2014 pela Cambridge University Press.

 

RESUMO

Kenneth Waltz resistiu a descrever o mundo do pós-Guerra Fria como unipolar. Esta relutância resulta de duas características do realismo estruturalista de Waltz: a sua visão naturalista dos equilíbrios de poder e o seu enfoque nas relações entre grandes potências. Felizmente, o pensamento de Waltz sobre a revolução nuclear permite corrigir estas limitações da sua teoria estrutural e iluminar dois aspectos centrais da unipolaridade americana: a sua potencial durabilidade num mundo nuclearizado e o seu potencial para guerras preventivas contra a proliferação nuclear. Em suma, o realismo estruturalista de Waltz, quando combinado com o seu pensamento sobre o mundo nuclear, produz um potente aparato analítico para melhor compreender o mundo unipolar do pós-Guerra Fria.

Palavras-chave: Armas nucleares, realismo, unipolaridade, Kenneth N. Waltz

 

ABSTRACT

Kenneth Waltz resisted describing the post-Cold War world as unipolar. This reluctance results from two characteristics of his structural realism: its naturalistic view of systemic balances of power and its focus on relations among great powers. Yet, Waltz’s thinking on the nuclear revolution allows us to correct these limitations of his structural theory and highlight two central aspects of American unipolarity: its potential durability in a nuclear world and its potential for preventive counter-proliferation wars. In sum, Waltz’s structural realism, when combined with his thinking about a nuclear world, produces a powerful analytic apparatus to further our understanding of our post-Cold War unipolar world

Keywords: Nuclear weapons, realism, unipolarity, Kenneth N. Waltz

 

Kenneth Waltz sempre resistiu a descrever o mundo do pós-Guerra Fria como unipolar. Em 1993, quatro anos após a União Soviética ter desistido da competição geoestratégica com os Estados Unidos que definiu a Guerra Fria, Waltz descrevia o mundo como estando num estado de «bipolaridade alterada»2. Em 2000, Waltz apontava para uma «multipolaridade emergente»3. Porquê esta persistente omissão da unipolaridade na obra de Waltz?

A relutância de Waltz em falar da unipolaridade americana vem, é claro, da sua visão teórica. Na sua obra magna Theory of International Politics, de 1979, Waltz determinou que o número mínimo de grandes potências são duas, excluindo a unipolaridade – um mundo com apenas uma grande potência – da sua análise do funcionamento da política internacional4. Historicamente, existem três razões para Waltz não ter incluído a unipolaridade no seu principal livro5. Primeiro, escrevendo durante a Guerra Fria, Waltz estava convencido da estabilidade de um mundo bipolar, não esperando a queda de uma das duas grandes potências então existentes e não antevendo por isso a necessidade de analisar o funcionamento de um mundo unipolar. Segundo, para Waltz, um mundo unipolar seria hierárquico e não anárquico, contrariando a principal premissa do seu realismo estruturalista – e a base de toda a sua análise da política internacional – o princípio da anarquia internacional. Por fim, Waltz cria que os restantes estados nunca permitiriam a criação de um sistema hierárquico dominado por uma única grande potência. Uma análise da unipolaridade não passaria, por isso, de um exercício meramente académico, do tipo que ele sempre desprezou.

Apesar de se poderem aplicar a um livro escrito em 1979, estes três motivos não justificam, no entanto, o continuado silêncio de Waltz em relação à unipolaridade depois da queda da União Soviética. A chave para compreender a relutância dos neo-realistas estruturais em abraçar o conceito de unipolaridade na descrição do mundo do pós-Guerra Fria está em dois outros motivos.

O primeiro pode ser encontrado na única menção do termo na obra publicada de Waltz. Em 1997, ele escreveu que «à luz da teoria estrutural, a unipolaridade aparece como a menos estável das configurações estruturais»6. Dado o papel proeminente dos mecanismos da balança de poder no realismo estruturalista, a unipolaridade aparece como uma anomalia que rapidamente seria ultrapassada. Mais, um sistema unipolar duradouro colocaria em causa uma das mais básicas previsões do realismo estruturalista. Como Randall Schweller escreveu dois anos mais tarde, «a formação recorrente de equilíbrios de poder é crucial para a teoria de Waltz... Se isto é colocado em questão, as previsões da teoria errarão o alvo, e as suas prescrições poderão revelar-se desastrosas»7. Na realidade, a teoria de Waltz prevê que os «estados secundários, quando têm liberdade de escolher, optarão por aliar-se ao lado mais fraco; pois é o lado mais forte que os ameaça»8. O resultado inevitável é o reaparecimento de um equilíbrio sistémico de poder.

Isto explica como uma década após o fim da Guerra Fria Waltz continuava a acreditar que o fim da momentânea preponderância de poder militar dos Estados Unidos era inevitável. Em 2000, escreveu que «mesmo que um poder dominante se comporte com moderação, contenção e tolerância, os estados mais fracos preocupar-se-ão com o seu comportamento no futuro»9. Em suma, a presença duradoura de uma única grande potência parece contrariar um preceito-chave do realismo estruturalista: a previsão de que os estados tentarão, através da sua militarização e da criação de alianças internacionais, contrariar concentrações de poder, fazendo assim com que os equilíbrios de poder entre dois ou mais blocos sejam recorrentes10.

A segunda razão por detrás do continuado silêncio de Waltz sobre a unipolaridade decorre do enfoque nas grandes potências típico do realismo estruturalista. A principal contribuição de Waltz para a nossa compreensão da política internacional (para usar o termo que ele mesmo preferia em vez de «relações internacionais») é a observação de que a estrutura do sistema internacional condiciona as acções de cada Estado e os seus resultados. Nessa estrutura, Waltz englobava o princípio organizativo do sistema (a anarquia), as funções de cada Estado (com destaque para a salvaguarda da sua própria sobrevivência) e a distribuição de poder entre os estados, dedicando particular atenção ao número de grandes potências. Dada a centralidade do poder nas preocupações realistas, não nos devemos surpreender que as análises estruturais do sistema internacional se centrem nas interacções entre grandes potências11. Como Waltz escreveu: «a teoria, como a história, da política internacional é escrita em termos das grandes potências de uma era.»12

Ora, esta preocupação com as grandes potências torna-se em mais uma razão pela qual Waltz não tem muito a dizer sobre a unipolaridade. Esta visão explica porque os realistas despenderam tanto esforço averiguando os méritos relativos de sistemas bipolares e multipolares, ao passo que os sistemas unipolares foram em larga medida ignorados. Num sistema unipolar existe apenas uma grande potência. Por definição, não existem relações entre grandes potências, pelo que pode parecer numa primeira análise que o realismo estruturalista nada tem a dizer sobre este mundo. Daí, pelo menos em parte, o silêncio de Waltz.

Em suma, para Waltz, como para a maioria dos seus seguidores na escola neo-realista, o estado natural do sistema internacional é um equilíbrio de poder entre duas ou mais potências – e é sobre as relações entre estas que o esforço analítico do neo-realismo se concentra. Assim sendo, Waltz pouco mais tinha a dizer sobre a preponderância de poder militar exibida pelos Estados Unidos na sequência do colapso da União Soviética para além da previsão de que ela rapidamente terminaria.

Como veremos, nenhuma destas duas razões por detrás do silêncio de Waltz sobre a unipolaridade é válida. Pelo contrário, a capacidade de o realismo estruturalista contribuir para o entendimento do mundo do pós-Guerra Fria depende em larga medida da disponibilidade de os seguidores de Waltz questionarem estes dois motivos. Por um lado, é necessário que a concepção naturalista, ou automatizada, dos mecanismos da balança de poder seja posta em causa. Isto permitir-nos-á compreender melhor as condições que determinam a durabilidade de um sistema unipolar. Por outro lado, é importante alargar o âmbito da análise neo-realista às pequenas e médias potências. Isto possibilitar-nos-á uma melhor compreensão das causas da guerra num sistema unipolar.

Em resumo, o realismo estruturalista de Waltz necessita de ser revisto para acomodar períodos duradouros de preponderância de poder por um só Estado. Não sem ironia, as raízes das modificações necessárias para reconciliar a teoria de Waltz com a era da unipolaridade americana encontram-se no seu próprio trabalho sobre a revolução nuclear, designadamente no artigo que escreveu em 1981 para o International Institute for Strategic Studies britânico, intitulado «The spread of nuclear weapons: why more may be better»13. Apenas quando as ideias de Waltz sobre as consequências da introdução de armas nucleares nas relações entre estados são incorporadas no realismo estruturalista podemos maximizar o contributo desta tradição teórica para a análise do período do pós-Guerra Fria14.

Afortunadamente, este trabalho parece seguir no caminho que o próprio Waltz começou a trilhar durante os anos mais recentes, em que reconheceu arrepender-se do seu silêncio sobre a unipolaridade. Numa entrevista concedida em 2011 para a série Theory Talks, Waltz foi questionado sobre «se pudesse escrever o livro [Teoria da Política Internacional] de novo, agora que a bipolaridade terminou, que alterações faria?». Em resposta, disse: «Com certeza acrescentaria algo sobre a unipolaridade [...] sobre como um mundo unipolar poderia funcionar, e sobre quais as vantagens e desvantagens mais prováveis desse mundo.»15

Waltz foi um grande defensor dos benefícios das armas nucleares para a paz e a estabilidade internacional. De facto, o seu último artigo – que mereceu honras de capa na revista Foreign Affairs – apresentava uma defesa do programa nuclear iraniano, intitulando-se: «Why Iran should get the bomb»16. O optimismo nuclear de Waltz baseava-se em dois argumentos muito simples. Primeiro, dada a possibilidade de qualquer conflito entre dois estados possuidores de armas nucleares poder escalar para um confronto nuclear, a presença destas armas leva a relações pacíficas entre os estados que as possuem. Segundo, como o processo de difusão das armas nucleares é relativamente lento, a instabilidade gerada por este processo é limitada. Em resumo, na visão de Waltz, desde que o processo de difusão da tecnologia nuclear seja suficientemente lento para evitar alterações súbitas de poder relativo (que poderiam levar a ataques preventivos), quanto mais estados tiverem armas nucleares, mais pacífico e estável será o sistema internacional.

A introdução de armas nucleares no sistema internacional foi suficientemente significativa para ser apelidada de uma «revolução nuclear»17. Ora, esta revolução nuclear tem um impacto significativo na teoria realista da balança de poder. Quando devidamente identificado, este impacto permite extrair da teoria de Waltz previsões mais sofisticadas sobre a durabilidade de um sistema unipolar e, portanto, da presente preponderância de poder militar dos Estados Unidos. Para tal, temos de explorar o impacto da revolução nuclear na relação entre, por um lado, as estratégias de balanceamento que os estados implementam e, por outro, um equilíbrio sistémico de poder, que é, como veremos, apenas um de vários resultados possíveis dessas estratégias. Mais especificamente, o argumento que Waltz me inspira aqui é que na era nuclear é possível aos estados atingir os objectivos das suas estratégias de balanço – ou seja, garantir a sua sobrevivência – sem produzir um equilíbrio de poder a nível sistémico.

No trabalho de Waltz, a teoria da balança de poder é apresentada como tendo uma qualidade natural. A necessidade que os estados têm de garantir a sua própria sobrevivência num contexto de anarquia sistémica conduz inevitavelmente a um só resultado: um equilíbrio de poder a nível sistémico18. Como é frequentemente o caso com a «naturalização» de leis sociais, a contingência inerente à relação entre, por um lado, as estratégias que os estados implementam para balancear contra estados mais poderosos e, por outro, o equilíbrio de poder a nível sistémico é obscurecido por esta compreensão naturalista do equilíbrio de poder como sendo inevitável.

A lógica central da teoria de equilíbrio de poder de Waltz é relativamente simples. Os estados preocupam-se em primeiro lugar com a sua própria sobrevivência. Uma concentração única de poder num Estado ameaça a sobrevivência dos outros. A fim de melhorar as suas chances de sobrevivência, os outros estados irão, portanto, balancear contra essa concentração de poder. Qualquer ameaça à sobrevivência do Estado só é minimizada quando este possui (ou está aliado com estados que possuem) pelo menos tanto poder como qualquer outro Estado (ou aliança de estados). Consequentemente, os esforços de balanceamento de um Estado levarão inevitavelmente ao surgimento de um equilíbrio sistémico de poder.

Ora, na era nuclear, estas observações não resultam necessariamente umas das outras, porque agora uma concentração ímpar de poder (convencional) num Estado não ameaça necessariamente a sobrevivência dos outros. Especificamente, a preponderância de poderio convencional que os Estados Unidos possuem hoje não ameaça a sobrevivência dos outros estados possuidores de armas nucleares. Portanto, as tentativas que quaisquer outros estados façam para melhorar as suas chances de sobrevivência em face da concentração de poder num só Estado não os levará necessariamente a acumular tanto poder como esse Estado. Pelo contrário, mal um Estado adquire armas nucleares a sua sobrevivência está garantida mesmo que os Estados Unidos continuem a beneficiar de uma preponderância de poder convencional. Como consequência, os esforços de balanceamento por parte de vários estados, mesmo se bem-sucedidos, podem não produzir um equilíbrio de poder a nível sistémico.

A dissuasão da violência entre as potências com arsenais nucleares é baseada em cada uma delas ser incapaz de evitar sofrer danos catastróficos às mãos de outra no caso de um conflito total entre as duas. Uma vez que esta capacidade retaliatória não depende de um equilíbrio de poder convencional, um pequeno arsenal nuclear capaz de perpetrar um ataque retaliatório pode dissuadir qualquer Estado – mesmo um Estado com um poder convencional inigualável – de tentar colocar em causa a sobrevivência de um Estado nuclear. Estados que adquirem um arsenal nuclear passam portanto a ter a sua sobrevivência praticamente garantida, mesmo que possuam capacidades militares convencionais insignificantes. Num mundo nuclear, a minimização da ameaça colocada por outro Estado não passa mais pelo estabelecimento de um equilíbrio de poder a nível sistémico.

Como escreveu Robert Jervis, para um equilíbrio de poder a nível sistémico emergir, «a guerra tem de ser uma ferramenta viável de política»19. Ora, as armas nucleares aumentam os custos de guerra até ao ponto em que esta deixa de ser uma ferramenta viável de política entre os estados mais poderosos do sistema. Na verdade, não é possível vencer uma guerra total entre estados nucleares, que coloca em perigo a própria existência do Estado, e viola assim a premissa inicial do argumento que levou ao equilíbrio de poder em primeiro lugar: o interesse absoluto que os estados têm na sua própria sobrevivência. Por conseguinte, qualquer ameaça de guerra entre estados nucleares coloca uma ameaça directa à sobrevivência do Estado que a emite. Em suma, as armas nucleares retiram à guerra o carácter de ultima ratio da política internacional. Seria, para usar a expressão de Bismarck, suicídio causado por medo da morte.

Em resumo, as armas nucleares obrigam a uma distinção entre, por um lado, teorias que prevêem que os estados se esforcem por balancear o poder de outros e, por outro, teorias que prevêem a reemergência automática de equilíbrios de poder sistémicos. Dito de outra forma, o argumento de Waltz sobre os efeitos da revolução nuclear invalida o argumento de Waltz sobre a automaticidade dos equilíbrios de poder a nível sistémico, tornando possível um mundo unipolar duradouro.

Até aqui, vimos como a lógica do neo-realismo estruturalista de Waltz, quando combinada com a lógica da revolução nuclear, pode contribuir para explicar a existência de sistemas unipolares duradouros. Passemos agora a uma análise de como os argumentos de Waltz sobre os efeitos das armas nucleares, quando estendidos para além do âmbito da política de grandes potências, podem contribuir muito para uma melhor compreensão das causas da proliferação e da guerra num mundo unipolar. Isto é particularmente importante na medida em que os Estados Unidos têm estado em guerra durante catorze dos vinte e quatro anos que passaram desde o final da Guerra Fria. De facto, o período da unipolaridade americana, representando cerca de dez por cento da história dos Estados Unidos, é responsável por mais de 25 por cento do tempo que o país passou em guerra20.

Waltz pode, aliás, ser visto como um motivador deste passo analítico. Ao contrário da maior parte dos académicos liberais americanos, que vêem nos Estados Unidos um fornecedor benigno de serviços de gestão do sistema internacional global, Waltz compreendeu desde logo que uma grande potência apenas levará a cabo funções de gestão global na medida em que estas servirem os seus próprios interesses21. Quando conjugado com o argumento exposto acima sobre o papel da revolução nuclear na pacificação das relações entre estados que possuam armas nucleares, este alargamento da análise realista às funções de gestão global levadas a cabo pelos Estados Unidos no sistema unipolar do pós-Guerra Fria aponta na direcção de um problema particularmente saliente: a proliferação nuclear. Posto de modo mais directo: qualquer Estado que se preocupe com a possibilidade de uma intervenção directa americana tem grandes incentivos para adquirir armas nucleares. Isto mesmo observou Waltz em 2011:

«Quando o presidente Bush identificou [no início de 2002] os países que, segundo ele, constituíam um “eixo do mal” – ou seja, o Iraque, o Irão e a Coreia do Norte – e, em seguida, invadiu um deles – ou seja, o Iraque – isto foi certamente uma lição que o Irão e a Coreia do Norte aprenderam rapidamente. Isso quer dizer que, se um país quer dissuadir os Estados Unidos de um ataque, tem que se equipar com uma força nuclear. Creio que todos nós vimos isto demonstrado muito claramente.»22

Seguindo a visão de Waltz sobre o papel do interesse nacional na definição das acções de qualquer Estado, torna-se claro que o esforço dos Estados Unidos contra a proliferação nuclear tem pelo menos em parte na sua origem uma determinação de manter a sua liberdade de acção perante estados não nucleares. A posse de arsenais nucleares por um número crescente de estados poderia pacificar as relações entre eles. Mas, ao mesmo tempo, restringiria a liberdade de acção dos Estados Unidos. Por isso mesmo Washington opõe-se à aquisição de armas nucleares por estados com os quais não desfrute de boas relações. Foi esta oposição à proliferação nuclear para estados adversários que levou a Casa Branca a contemplar uma guerra contra a Coreia do Norte em 1994, que esteve por detrás da invasão do Iraque em 2003, e que continua a manter em aberto o debate sobre uma eventual acção militar contra o programa nuclear iraniano23.

Do ponto de vista teórico, a análise deve incidir portanto não apenas sobre o efeito da posse de armas nucleares mas também sobre as possíveis consequências da busca de armas nucleares por estados relativamente fracos. É aqui que reside parte do potencial de conflito existente no actual sistema unipolar do pós-Guerra Fria. Neste sentido, e de uma forma compatível com o argumento de Waltz sobre a revolução nuclear, é o próprio processo de proliferação nuclear – não o seu resultado – que é propenso a gerar conflitos num mundo unipolar.

A explicação para este mecanismo capaz de causar guerras relativamente frequentes num mundo unipolar deriva da descrição que Waltz fez das causas da estabilidade bipolar24. Como Waltz argumentou, quando o mundo está organizado em dois blocos, cada um encabeçado por uma grande potência, os estados mais fracos normalmente podem aliar-se com uma destas para aumentar a sua segurança em face de uma ameaça feita pela outra. Assim, por exemplo, se os Estados Unidos ameaçassem um pequeno Estado durante a Guerra Fria, esse Estado iria provavelmente obter o apoio da União Soviética, impossibilitando qualquer acção militar contra ele. Num mundo com um poder preponderante como o do pós-Guerra Fria, em contraste, um Estado que se sinta ameaçado pelos Estados Unidos dificilmente conseguirá encontrar um aliado e seguramente não se conseguirá aliar a uma grande potência, já que não existe outra.

Este desequilíbrio – a que se poderia chamar uma situação de auto-ajuda extrema25 – tem duas consequências. A primeira é impulsionar os estados mais fracos com os quais os Estados Unidos têm más relações a tentar adquirir armas nucleares. A segunda é baixar o custo de uma guerra entre um poder preponderante como os Estados Unidos e um Estado relativamente fraco. Isto significa, por um lado, que os pequenos estados recalcitrantes irão tentar desenvolver um arsenal nuclear em segredo. Assim foi o caso da Coreia do Norte e assim é com o Irão, que continua a negar qualquer propósito militar do seu programa nuclear. Por outro lado, estas duas consequências do desequilíbrio sistémico de poder em favor dos Estados Unidos também possibilita guerras preventivas contra estados suspeitos de estarem a tentar desenvolver armas de destruição maciça. Tal foi o caso da Guerra do Iraque26. Em suma, os efeitos indirectos da preponderância de poder americana, quando explorados ao estilo da análise sistémica de que Waltz foi pioneiro, ajudam a explicar a particular frequência do envolvimento dos Estados Unidos em conflitos militares desde o fim da Guerra Fria.

Waltz foi, sem dúvida, o principal teórico da política internacional na segunda metade do século xx. Durante as últimas duas décadas da sua vida, o mundo viveu debaixo de uma preponderância do poderio militar americano. Apesar de Waltz nunca ter ele mesmo explorado a totalidade das implicações da sua visão do mundo e do seu modo de análise para as circunstâncias do pós-Guerra Fria, a nossa capacidade de compreender o mundo em que vivemos beneficia muito de uma visão waltziana.

 

Data de receção: 5 de Junho de 2013 | Data de aprovação: 5 de Agosto de 2013

 

NOTAS

1 A pedido do autor o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2 Cf. Waltz, Kenneth N. – «The emerging structure of international politics». In International Security. Vol. 18, N.º 2, 1993.         [ Links ] Em todas as citações de obras em língua inglesa a tradução é minha.

3 Cf. Waltz, Kenneth N. – «Structural Realism after the Cold War». In International Security. Vol. 25, N.º 1, 2000.         [ Links ]

4 Cf. Waltz, Kenneth N. – Theory of International Politics. Reading, MA: Addison-Wesley, 1979, p. 136.         [ Links ]

5 Cf. Hansen, Birthe – Unipolarity and World Politics: A Theory and Its Implications. Nova York: Routledge, 2011.         [ Links ]

6 Waltz, Kenneth N. – «Evaluating theories». In American Political Science Review. Vol. 91, N.º 4, 1997, p. 915.         [ Links ]

7 Schweller, Randall L. – «Realism and the present great power system: growth and positional conflict over scarce resources». In Kapstein, Ethan, e Mastanduno, Michael (eds.) – Unipolar Politics: Realism and State Strategies After the Cold War. Nova York, NY: Columbia University Press, 1999, p. 37.         [ Links ]

8 Waltz, Kenneth N. – Theory of International Politics, p. 126.

9 Waltz, Kenneth N. – «Intimations of multipolarity». In Hansen, Birthe, e Heurlin, Bertel (eds.) – The New World Order: Contrasting Theories, Londres: Macmillan, 2000, p. 1.         [ Links ]

10 Cf. Nexon, Daniel H. – «The balance of power in the balance». In World Politics. Vol. 61, N.º 2, 2009.         [ Links ]

11 Cf. Mastanduno, Michael – «Preserving the unipolar moment: Realist theories and U.S. grand strategy after the Cold War». In International Security. Vol. 21, N.º 4, 1997, p. 50.         [ Links ]

12 Waltz, Kenneth N. – Theory of International Politics, p. 72.

13 Cf. Waltz, Kenneth N. – «The spread of nuclear weapons: why more may be better». In Adelphi paper. N.º 171. Londres: International Institute for Strategic Studies, 1981;         [ Links ] Sagan, Scott D., e Waltz, Kenneth N. – The Spread of Nuclear Weapons: A Debate Renewed. Nova York: W. W. Norton, 2002.         [ Links ]

14 Para uma análise mais detalhada da unipolaridade a partir de uma perspectiva realista e estruturalista, com base na qual o presente artigo é escrito, ver: Monteiro, Nuno P. – Theory of Unipolar Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2014 (no prelo).         [ Links ]

15 Waltz, Kenneth N. – «Theory talk #40: Kenneth Waltz – The physiocrat of international politics». Entrevista com Peer Schouten, Theory Talks, 2011, p. 4. Disponível em: http://www.theory-talks.org/2011/06/theory-talk-40.html .

16 Cf. Waltz, Kenneth N. – «Why Iran should get the bomb». In Foreign Affairs. Vol. 91, N.º 4, 2012.         [ Links ]

17 Cf. Waltz, Kenneth N. «The spread of nuclear weapons: why more may be better»; Sagan, Scott D., e Waltz, Kenneth N. – The Spread of Nuclear Weapons: A Debate Renewed. Ver também Jervis, Robert – The Meaning of the Nuclear Revolution: Statecraft and the Prospect of Armageddon. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1989.         [ Links ]

18 Cf. Nexon, Daniel H. – «The balance of power in the balance».

19 Jervis, Robert – Systems Effects: Complexity in Political and Social Life. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1997, p. 132.         [ Links ]

20 Sobre as origens do conflito num mundo unipolar, ver: Monteiro, Nuno P. – «Unrest assured: why unipolarity is not peaceful». In International Security. Vol. 36, N.º 3, 2011-2012);         [ Links ] Monteiro, Nuno P. – Theory of Unipolar Politics.

21 Cf. Waltz, Kenneth N. – Theory of International Politics, p. 197. Em contraste, ver os principais trabalhos liberais, como, por exemplo, Ikenberry, G. John – After Victory: Institutions, Strategic Restraint, and the Rebuilding of Order after Major Wars. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2001;         [ Links ] Ikenberry, G. John – Liberal Leviathan: The Origins, Crisis, and Transformation of the American System. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2011.         [ Links ]

22 Waltz, Kenneth N. – «Theory talk #40: Kenneth Waltz – the physiocrat of international politics», p. 2.

23 Cf. Debs, Alexandre, e Monteiro, Nuno P. – «The flawed logic of attacking Iran». In Foreign Affairs, 18 de Janeiro de 2012;         [ Links ] Kahl, Colin H. – «Not time to attack Iran». In Foreign Affairs. Vol. 91, N.º 2, 2012;         [ Links ] Kroenig, Matthew – «Time to attack Iran». In Foreign Affairs. Vol. 91, N.º 1, 2012.         [ Links ]

24 Waltz, Kenneth N. – «The stability of a bipolar world». In Daedalus. Vol. 93, N.º 3, 1964,         [ Links ] e Waltz, Kenneth N. – Theory of International Politics

25 Monteiro, Nuno P. – «Unrest assured: why unipolarity is not peaceful».

26 Debs, Alexandre, e Monteiro, Nuno P. – «Known unknowns: power shifts, uncertainty, and war». In International Organization. Vol. 68, N.º 1, 2014 (no prelo).         [ Links ]