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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Uma teoria nomotética da política internacional ou a construção da verdade em Waltz: algumas considerações

A nomothetic theory of international politics or the construction of the true in Waltz: some considerations

 

Luís Lobo-Fernandes

Professor catedrático de Ciência Política e Relações Internacionais. Titular da cátedra Jean Monnet de Integração Política Europeia na Universidade do Minho, e Non-Resident Fellow no CTR–SAIS da Universidade Johns Hopkins, Washington DC.

 

RESUMO

O magnum opus de Kenneth N. Waltz, Theory of International Politics, publicado em 1979, é a mais importante referência do neorrealismo em relações internacionais. Waltz reivindicou para si o estabelecimento de uma teoria nomotética da política internacional, que lida com regularidades e repetições, desenvolvendo o argumento de que a estrutura do sistema condiciona em grande medida o comportamento dos estados e as resultantes internacionais. O autor propõe uma solução macroteórica para o «nó» microteórico do realismo tradicional que se estriba em racionalizações de nível unitário e individual.

Palavras-chave: Kenneth N. Waltz, sistema internacional, neorrealismo, teoria nomotética

 

ABSTRACT

Kenneth N. Waltz’s magnum opus, Theory of International Politics, first published in 1979, is the single most widely read contribution to neorealism. Waltz claimed the establishment of a nomothetic theory of international politics that deals in regularities and repetitions, arguing that the structural component of the international system greatly influences state behaviour and hence outcomes. The author proposes a macrotheoretical solution to the micro account of traditional realism that focuses on unit- and individual-level explanations.

Keywords: Kenneth N. Waltz, international system, neorealism, nomothetic theory.

 

Esta reflexão em jeito de homenagem ao contributo singular de Kenneth Neal Waltz (1924-2013), o mais proeminente teórico da sua geração no domínio científico das relações internacionais, não tem por objeto percorrer os múltiplos ensaios e proposições inovadoras que concorreram para o estabelecimento de uma perspetiva neorrealista do fenómeno internacional1. Visa, fundamentalmente, explicitar alguns dos argumentos centrais daquele que é comummente considerado o seu principal trabalho, Theory of International Politics, publicado em 1979, cuja primeira tradução em Portugal tive ensejo de coordenar, no ano de 20022. Neste sentido, no presente texto não se pretende delinear uma revisão crítica alargada da visão waltziana ou das suas eventuais insuficiências, mas tentar situar o perfil epistemológico e metodológico do enunciado neorrealista em quatro momentos principais, embora interligados: a importância da modelação teórica, o primado do sistema internacional, a construção de uma teoria nomotética da política internacional, e uma conclusão breve3.

 

A IMPORTÂNCIA DA MODELAÇÃO TEÓRICA

No prefácio que então elaborei para a edição portuguesa, referia que de entre as várias razões para o indiscutível sucesso do seu magnum opus, a mais importante talvez residisse na reivindicação do próprio Waltz de que esta obra representa o equivalente a uma «revolução copernicana» no estudo da política mundial4. Segundo Waltz, Hans J. Morgenthau e outros realistas tradicionais não deram o passo crucial que permite ir para além do desenvolvimento conceptual das noções de «interesse nacional» ou de «interesse definido em termos de poder», todavia importantes, até ao estádio superior de uma teoria identificável5. Sem proposições de espetro mais amplo, Morgenthau ficou algo «confinado» às partes e, como não raras vezes acontece, confundiu a questão de explicar a política externa com o problema de construir uma teoria da política internacional6. Com a sua obra fundamental Waltz pretendeu atingir cinco objetivos principais, a saber7:

• desenvolver uma teoria mais rigorosa da política internacional;

• mostrar como se pode distinguir o nível das unidades componentes [micro] do nível sistémico ou estrutural [macro], e estabelecer as conexões entre eles;

• demonstrar a inadequação do padrão de pensamento inside-out [resultantes explicadas a partir das escolhas individuais das unidades estaduais] prevalecente no estudo da política internacional;

• mostrar como o comportamento estadual difere em resultado de variações nos sistemas político-internacionais; e,

• sugerir formas como a teoria pode ser testada, bem como propiciar alguns exemplos de aplicação prática (nomeadamente nos campos económico e militar).

Nas palavras de Stephen M. Walt, Kenneth Waltz mostrou-nos, talvez melhor do que outrem, como a teoria pode ser usada de forma rigorosa para iluminar questões políticas fundamentais no plano internacional: «Com efeito, o trabalho de Ken [Waltz] sobre estes tópicos sublinha porque é que a teoria é tão importante. Ter à sua disposição uma série de factos não ajuda, se pensarmos acerca desses factos de forma errada… Foi por isso que ele acertou em muitas coisas onde outros terão errado… Um pouco de teoria pode levar muito longe e, no seu caso, levou-nos na direção certa»8 [em itálico no original].

Kenneth Waltz enfatiza, porém, que será sempre necessário distinguir teoria e facto. Só enquanto esta distinção metódica for assegurada, é que a teoria pode ser usada para interpretar e examinar factos; o trabalho do investigador começa verdadeiramente quando as questões teóricas propriamente ditas são colocadas. Neste sentido, uma teoria só ganha contornos nítidos quando eventos, processos, interações ou dinâmicas formam parte de «um domínio» ou de «um todo» que pode ser organizado e estudado coerentemente9. Waltz mantém, pois, em todos os seus ensaios uma preocupação permanente em clarificar e delimitar os atributos e o nexo próprio inerente a qualquer teoria científica. Como sublinhou, uma teoria é essencialmente um «artifício», uma construção intelectual através da qual se interpretam factos10. Uma teoria contribui, a fortiori, para a organização científica de um domínio particular e das conexões entre as suas partes relevantes. A teoria «isola» um domínio de outros, de forma a permitir trata-lo intelectualmente, e, por isso, uma teoria não pode incluir tudo11

Porventura antecipando críticas à especificidade da sua abordagem, Waltz assinalará que qualquer teoria deixa sempre várias coisas por explicar e, em rigor, nenhuma teoria permite uma transição automática e fácil em direção à sua própria aplicação12. Do mesmo modo, refere o autor, no estudo da política internacional nem tudo pode ser contado e medido, mas algumas variáveis podem sê-lo; nesta medida, uma teoria também é um meio de lidar de forma disciplinada com a complexidade13. Com a ambição permanente de construir uma teoria, Waltz rege-se por aquilo que ele próprio define como uma conceção epistemológica de problem-solving, em contraponto a conceções de cariz mais crítico; articula uma noção simplificada de estrutura com poucas variáveis na medida em que, no seu entender, a adição «excessiva» de variáveis tornaria o quadro explicativo de muito difícil operacionalização, caso em que a acuidade teórica daria lugar a processos meramente descritivos, por mais densos que fossem14. A propósito da necessidade de distinção metódica entre facto e teoria, Waltz dá o exemplo do grande historiador A. J. P. Taylor que, sobre a suposta existência de um fixo caráter nacional alemão, tentou extrair lições diretas da história factual que, como o próprio Taylor reconhecerá, «é sempre um erro», pois a Alemanha no pós-guerra mudou o mencionado caráter nacional. Escreve Waltz [para sublinhar a acutilância excecional da observação mantive deliberadamente o texto na versão original]: «Not unexpectedly, the English historian A.J.P. Taylor assigned structural effects to the unit level and saw them as a cause.» Ao invés, na ótica de Waltz, a mudança no caráter da nação alemã (e também de outros países ocidentais) deveu-se em grande medida à nova estrutura da política internacional: «If their national characters, and ours, have changed since the war, it is largely because their and our international positions have become profoundly diferent.» É especialmente patente nesta ilustração o exercício meticuloso de Waltz na explicitação da natureza fundamental do que se pretende, e pode atingir, com um enunciado teórico estruturalista da política internacional15.

Ao apresentar o sistema político internacional como «um todo», com o nível da estrutura e o nível das suas unidades componentes simultaneamente distintas e inter-relacionadas, Waltz deu um passo em frente na formulação realista das relações internacionais, reivindicando para si o estabelecimento de uma teoria autónoma da política internacional16. Nesse sentido, afasta-se do realismo tradicional de Hans J. Morgenthau que, no seu entender, não elaborou uma verdadeira teoria da política internacional, muito embora tenha afirmado a autonomia dos fatores políticos17. O enunciado neorrealista de Waltz produz uma importante alteração na determinação das relações causais, a dois níveis: primeiro, ao oferecer uma reinterpretação da noção de poder – o poder definido como «meio útil» à disposição dos estados e não como «fim». Na conceção waltziana, o poder relativo reporta-se à capacidade combinada de um estado no quadro da sua distribuição no sistema internacional. O que Waltz sugere é que o objetivo da segurança prevalece sobre o objetivo per se de maximização do poder18. Segundo, a teoria neorrealista mostra que as causas não se processam unidirecionalmente – da ação das unidades estaduais para as resultantes das interações – mas antes bidirecionalmente. Assim, Waltz conclui que quando variações ao nível das unidades não correspondem às variações nas resultantes observadas, então outras causas podem ser localizadas ao nível da estrutura do sistema internacional propriamente dito19.

 

O PRIMADO DO SISTEMA INTERNACIONAL20

A referida obra de Waltz, Theory of International Politics, emergiria rapidamente como um dos mais rigorosos exercícios de inteleção da realidade internacional. Na verdade, é considerado o contributo mais representativo do neorrealismo em relações internacionais, estabelecendo-se como o texto paradigmático desta perspetiva teórica, continuando a despertar intenso debate no seio da comunidade epistémica de relações internacionais21. De facto, e diferentemente de enunciados realistas anteriores, o autor centra-se primordialmente na estrutura do sistema internacional e na distribuição relativa do poder22. Assim, para Waltz, qualquer abordagem ou teoria, se for rotulada de sistémica, deve mostrar como o nível sistémico, ou da estrutura, é diferenciado das unidades; se isto não for mostrado claramente, então, não teremos nem uma abordagem sistémica nem uma teoria sistémica. Por exemplo, o exercício de análise das diferenças entre várias estruturas internacionais ao longo do tempo deve omitir os atributos stricto sensu das unidades; só assim, sublinha o autor, é que se podem distinguir mudanças ou alterações na estrutura, de outras mudanças que acontecem ao nível interno das suas unidades23. Ora, segundo esta proposição waltziana, as características domésticas das unidades integrantes do sistema são dimensões de alguma forma menos relevantes na dilucidação das dinâmicas internacionais, na exata medida em que a estrutura condiciona significativamente a ação estadual no sentido de comportamentos tendencialmente convergentes. Waltz demonstra, assim, como as forças sistémicas são responsáveis pelas assinaláveis similitudes das políticas externas dos estados, na medida em que a natureza fundamental do sistema internacional predomina sobre os seus componentes, uma hipótese central da sua linha de inquirição. A estrutura do sistema internacional determinará, pois, em maior ou menor grau, o tipo de orientações observáveis na ação externa dos estados.

O enunciado neorrealista de Waltz começa com a premissa que uma teoria das relações internacionais e uma teoria da política externa não são a mesma coisa. Para o autor, a estrutura do sistema internacional é fundamentalmente distinta da estrutura dos sistemas políticos internos, assentando em três critérios fundamentais: primeiro, o princípio ordenador do sistema; segundo, o caráter das unidades componentes; e, terceiro, a distribuição das capacidades24. Nos sistemas políticos nacionais o princípio ordenador é a hierarquia; em contrapartida, no sistema de estados vestefaliano é a anarquia – condição estrutural na visão de Waltz – que se teria mantido fundamentalmente constante ao longo dos últimos séculos25. Por sua vez, no respeitante ao caráter das unidades, no plano interno existe uma divisão de trabalho e um elevado grau de especialização; ao contrário, no sistema internacional não há uma diferenciação significativa das unidades – os estados são funcionalmente iguais no quadro da racionalização que nos propõe, constituindo esta assunção, aliás, uma das premissas centrais (e mais «provocantes», diga-se) da sua Teoria. Por último, num meio anárquico os estados detêm diferentes capacidades para desempenhar as mesmas funções26. A título de ilustração, a variação entre dois momentos históricos distintos nas relações internacionais é sobretudo definida pela distribuição de capacidades ou seja, pela distribuição de poder relativo entre os estados, uma dimensão analítica verdadeiramente crucial para Waltz na explicação de qualquer sistema político:

«A distribuição de poder é de especial importância explicativa em sistemas políticos caracterizados por lógicas de self-help, dado que as unidades componentes deste tipo de sistemas descentralizados não são formalmente diferenciadas como acontece com as várias partes de uma ordem hierarquizada onde, ao invés, têm funções distintas.»27

De acordo com o próprio autor, o seu trabalho configurará a primeira teoria da balança do poder cientificamente testável28.

As relações internacionais são algumas vezes descritas como o domínio do acaso e da revolução, das mudanças rápidas e imprevisíveis mas, como Waltz indica, apesar de observarmos mudanças, as continuidades são igualmente impressionantes, ou mais ainda. O autor dá como exemplo marcante as duas guerras mundiais do século xx, onde os mesmos países se alinharam uns contra os outros apesar das revoluções políticas internas que ocorreram no período entre as duas guerras. A textura das relações internacionais permanece constante, os padrões reaparecem, os eventos repetem-se incessantemente. As dinâmicas que prevalecem internacionalmente raras vezes se alteram no tipo ou na qualidade, referirá Waltz29.

Muito embora o neorrealismo waltziano sublinhe continuidades, não nega a existência de mudança. Mas as mudanças dentro do sistema internacional ocorrem sobretudo quando se verificam alterações na configuração distributiva do poder – considerado na sua multidimensionalidade – ou seja, as transformações dão-se primacialmente quando as grandes potências ascendem ou caem, produzindo uma deslocação significativa da balança do poder. Nesta linha de racionalidade, o autor sublinha que as grandes potências detêm sempre a responsabilidade primordial da gestão do sistema internacional. Segundo Waltz, mudanças no princípio organizador das relações internacionais – a anarquia – são, no entanto, muito menos prováveis; esta condição estrutural poderá dar lugar a outra mas, de acordo com Waltz, tal não se afigura provável.

 

A CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA NOMOTÉTICA DA POLÍTICA INTERNACIONAL

Kenneth N. Waltz propôs-se ultrapassar alguma fragmentação teórica que existia no seio do realismo, almejando uma teoria sistemática da política internacional. A insatisfação do autor com o estado da teoria internacional no período subsequente à II Guerra Mundial é patente, o que o levará mesmo a escrever que talvez não seja excessivo dizer que Morgenthau e Raymond Aron não foram muito mais além de conjeturas «impressionísticas», dado terem exagerado o «papel» de eventos acidentais e inesperados – o que os terá afastado demasiado da procura de uma teoria unificada que pudesse especificar padrões mais perenes e significativos no delineamento dos fatores causais. Waltz tenta demonstrar – esta é a sua convicção mais profunda – que é possível alcançar o que os realistas que o precederam diziam ser inatingível: construir uma teoria nomotética, que lida com regularidades e repetições e que localiza as ligações entre elas30. Uma teoria nomotética, que traduz uma estratégia epistemológica de cariz hipotético-dedutiva, empreende a formulação e avaliação de hipóteses de natureza geral. Configura, pois, um tipo de conhecimento com maior potencial de generalização, conducente ao estabelecimento de teorias universais31. É certo que Waltz reconhece que as dificuldades na construção teórica em relações internacionais abundam, mas considera – como afirmou – que «não devemos submergir perante as nossas apreensões teóricas»32.

Clarificando os requisitos da sua construção teórica, o realismo waltziano – ao invés do realismo tradicional – começa por propor uma solução para o problema da distinção entre fatores internos e externos nas relações internacionais. Argumentando, como referimos, que os níveis estrutural e das unidades são, ao mesmo tempo, distintos e inter-relacionados, Waltz sugere como uma teoria neorrealista – que torna a análise dessas dinâmicas salientes – pode expandir o poder explicativo do realismo e, simultaneamente, captar a complexidade que envolve as relações causais entre variáveis nas relações internacionais, de modo a enriquecer o campo de possibilidades analíticas no seio desta disciplina científica.

A revisão neorrealista implica, assim, uma reconceptualização das mais importantes dinâmicas internacionais como um sistema, cuja estrutura é definida pela condição geral de anarquia e pela distribuição de capacidades dentro dessa estrutura. Ao reconfigurar o elo causal entre unidades (estados) em interação e as resultantes internacionais, o neorrealismo waltziano considera que variações na estrutura internacional influenciam as interações subsequentes entre as unidades e as respetivas resultantes. Acresce que o neorrealismo explica o poder sem referência expressa à natureza humana ou ao plano das vontades e das motivações, elementos típicos do realismo clássico, colocando-se «simplesmente» no patamar dos efeitos da relação entre capacidades relativas dos estados e a consequente distribuição de poder. Esta linha de inteleção configura, na nossa ótica, uma das proposições mais paradigmáticas do enunciado waltziano.

As teorias neorrealistas separam-se, assim, do realismo tradicional ao confrontar o chamado problema do agent-structure, desenvolvendo, em especial, o argumento de que a estrutura do sistema afeta grandemente o comportamento dos estados, dados os constrangimentos reais que lhes impõe33. Neste sentido, o neorrealismo propõe uma solução macroteórica para o «nó» microteórico do realismo que se estriba em racionalizações de nível unitário e individual34. A distinção é significativa, pois o novo realismo waltziano demonstra como as barreiras da «ideologia» e da «impossibilidade» do estabelecimento de uma teoria internacional podem ser superadas, sugerindo que se pode avançar na construção de sistemas de racionalidade e de arquétipos epistemológicos mais ambiciosos para compreender as mudanças e as continuidades existentes.

 

CONCLUSÃO BREVE

Para Kenneth Neal Waltz o comportamento dos estados continua a ser fortemente condicionado pelas três características intrínsecas do sistema internacional – anarquia, dilema de segurança e balança de poder, brilhantemente sugeridas por Tucídides na sua História da Guerra do Peloponeso, a quem devemos a ambição precursora de produzir uma racionalidade das dinâmicas interestaduais, pelo que uma teoria sistémica da política internacional, também designada de neorrealismo ou realismo estrutural, lida com forças ao nível internacional, e não ao nível nacional. No quadro das teorias contemporâneas das relações internacionais, o enunciado waltziano é aquele que talvez mais se aproxime do desiderato de atingir o patamar de teoria geral35. Mas, segundo Waltz, os sistemas político-internacionais caracterizados por lógicas de self-help sofreriam uma transformação radical se os seus princípios de organização passassem de um quadro de anarquia para um quadro de hierarquia. O eventual estabelecimento de um «governo mundial» representaria isso mesmo. Os constrangimentos e incentivos do atual sistema internacional e as suas dinâmicas continuam a ser fundamentalmente marcados pela condição estrutural de anarquia36, ou seja, pela ausência de monopólio do uso legítimo da força. Contudo, se a anarquia internacional desse lugar a um mundo hierarquizado, a teoria da política internacional tornar-se-ia, por maioria de razão, uma teoria acerca do passado37.

A obra mais significativa de Waltz que aqui revisito, embora configure certamente uma das mais robustas teorias gerais de explicação do comportamento dos estados em ambiente de anarquia internacional, encoraja-nos a não nos determos perante quaisquer ortodoxias de pensamento, mas a procurar, em liberdade, respostas que nem sempre estão imediatamente à mão. Esse é porventura o mais importante legado que nos deixou.

 

Data de receção: 5 de junho de 2013 | Data de aprovação: 5 de agosto de 2013

 

NOTAS

1 A sua teoria neorrealista da política internacional está plasmada na obra de referência Waltz, Kenneth N. – Theory of International Politics. Reading, Massachusetts: Addison-Wesley, 1979. Refira-se, porém, que o primeiro grande trabalho, resultado da sua tese de doutoramento defendida na Universidade de Columbia, Nova York, em 1954, Man, the State and War: A Theoretical Analysis, propiciou as fundações de partida para a elaboração da sua teoria da política internacional. Nesta obra, Waltz desenha três níveis de análise diferenciados, mais tarde chamadas imagens em relações internacionais, onde tenta localizar o nexo mais importante das causas da guerra. Cf. Waltz, Kenneth N. – O Homem, o Estado e a Guerra: Uma Análise Teórica. São Paulo: Martins Fontes, 1959, p. xi. No âmbito desta reflexão utilizo, em especial, a obra de Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics. Nova York: Routledge, 2008 que condensa os seus ensaios teóricos mais penetrantes; em comentários inscritos precisamente neste livro, quer Robert O. Keohane, quer John J. Mearsheimer, entre outros, consideram Kenneth Neal Waltz o mais destacado teórico da área científica das relações internacionais da sua geração (cf. contracapa da mesma publicação). Refira-se que um dos últimos ensaios de Waltz, «Why Iran should get the bomb: nuclear balancing would mean stability», especialmente controverso e «provocante» para alguns observadores, foi publicado na revista Foreign Affairs (Vol. 91, N.º 4, 2012, pp. 2-5).

2 Cf. Lobo-Fernandes, Luís – «Prefácio à edição portuguesa». In Waltz, Kenneth N. – Teoria das Relações Internacionais. Lisboa: Gradiva, 2002, pp. 7-9.         [ Links ]

3 Algumas das linhas de crítica mais incisivas, que não abordo no contexto deste artigo, consideram a teoria positivista/racionalista de Waltz demasiado «estática» e «determinística», e suscitam reservas sobre a forma como o seu enunciado neorrealista pressupõe que a estrutura internacional funciona indepen- dentemente da perceção dos estados sobre uma dada balança de poder. Ver, por exemplo, Hasbi, Aziz – Théories des relations internationales. Paris: L’Harmattan, 2004, p. 94,         [ Links ] e Griffiths, Martin – Fifty Key Thinkers in International Relations. Nova York: Routledge, 1999, pp. 46-50.         [ Links ] Outras críticas referem a inadequação do neorrealismo em lidar analiticamente com os desafios que derivam do crescimento da interdependência transnacional. Ver Kegley, Jr., Charles W. (ed.) – Controversies in International Relations Theory: Realism and the Neoliberal Challenge. Nova York: St. Martin’s Press, 1995, p. 6.         [ Links ]

4 Cf. Griffiths, Martin – Fifty Key Thinkers in International Relations, p. 47.

5 Deve referir-se que Waltz considera o desenvolvimento conceptual fundamental, embora insuficiente para o estabelecimento de uma teoria.

6 Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics, p. 71; como Waltz indica, a partir unicamente da análise do interesse nacional não é possível avaliar qual vai ser a política de um Estado (p. 44). Deve referir-se, porém, que as diferenças epistemológicas no seio do realismo desafiam caracterizações simplistas. Em rigor, o realismo configura-se mais como um sistema de pensamento do que como uma «única» escola.

7 Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics, p. 37.

8 Cf. Walt, Stephen M. – «Kenneth N. Waltz, 1924-2013». In Foreign Policy Magazine, 13 de maio de 2013. Disponível em: http://walt.foreignpolicy.com/posts/2013/05/13/kenneth_n_waltz_1924_2013 .         [ Links ]

9 Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics, pp. 68-69. Como sublinha Stephen M. Walt, doutorando de Waltz em Berkeley, num elogio publicado no dia seguinte ao seu desaparecimento, as preocupações de Waltz com a elaboração meticulosa de uma teoria da política internacional, derivavam de um interesse profundo em compreender os eventos e as manifestações do mundo real. Cf. Walt, Stephen M. – «Kenneth N. Waltz, 1924-2013».

10 Cf. Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics, p. 68.

11 Ibidem, pp. 51 e 71.

12 Ibidem, p. 75.

13 Ibidem, pp. 72-73.

14 Ibidem, p. 43 e 50. Waltz sustenta que as teorias críticas interpretam o mundo histórica e filosoficamente, ao passo que as teorias problem-solving, onde ele próprio se situa, aspiram a «compreendê-lo» e «explicá-lo», p. 52.

15 Ibidem, p. 45.

16 Ibidem, pp. 73-74.

17 Segundo Waltz, «The theoretical ambitions of Morgenthau, as of Aron, were forestalled by his belief that the international political domain cannot be marked off from others for the purpose of constructing a theory”. Cf. Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics, p. 71.

18 Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics, p. 79. Em contraponto ao que considera ser um erro recorrente dos realistas tradicionais, Waltz ilustra de forma pungente a ideia de que o poder é um meio e não um fim: «Only if survival is assured, can states safely seek other goals as tranquility, profit and power. Because power is a means and not an end, states prefer to join the weaker of two coalitions. They cannot let power, a possibly useful means, become the end they pursue» (p. 46). É por isso que um dos objetivos permanentes dos estados, observáveis diacronicamente nas dinâmicas de balança de poder, é precisamente evitar preponderâncias no sistema internacional. Como refere Battistella: «En effet, d’après Waltz, ‘si théorie de la politique internationale il doit y avoir, c’est bien la théorie de l’équilibre des puissances’: le système anarchique du self-help contraint les acteurs à adopter un tel comportement, et à écarter le comportement opposé qui consiste en une stratégie de bandwagoning (ralliement) à l’égard de la puissance predominante». Cf. Battistella, Dario – Théories des relations internationales. 2.ª edição. Paris: Les Presses de Sciences Po, 2006, p. 140.         [ Links ] Sobre este importante ponto de debate teórico no seio do realismo, Krasner, Stephen D. – Power, the State, and Sovereignty: Essays on international relations. Londres: Routledge, 2009,         [ Links ] refere: «Some realists, notably Waltz, understand states to be defensive positionalists; their basic goal is survival. Others, such as Mearsheimer, see states as offensive realists striving for hegemony», p. 4.

19 Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics, p. 7.

20 Madeleine Grawitz, citada em Hasbi, Aziz – Théories des relations internationales, refere que «le système est fondé sur l’interdépendence des parties par rapport au tout»; no que respeita à noção de sistema internacional propriamente dito, Hasbi acrescenta que «Cette notion permet ainsi de considérer les acteurs internationaux dans le cadre d’une globalité en interaction – un ensemble d’interactions entre des acteurs placés dans un environnement spécifique et soumis à un certain mode de régulation». Cf. Hasbi, Aziz – Théories des relations internationales, pp. 22-23.

21 Griffiths, Martin – Fifty Key Thinkers in International Relations, p. 48.

22 Lobo-Fernandes, Luís – «Prefácio à edição portuguesa», pp. 7-8.

23 Ibidem, p. 8.

24 Sobre este aspeto central da sua construção teórica cf., em especial, Waltz, Kenneth N. – Teoria das Relações Internacionais. Lisboa: Gradiva, 2002, pp. 125-142.         [ Links ]

25 Ver Lobo-Fernandes, Luís – «Estudo Introdutório». In Tucídides – História da Guerra do Peloponeso. Lisboa: Edições Sílabo, 2008, pp. 11-30.         [ Links ]

26 Note-se que enquanto a anarquia é no enunciado de Waltz uma constante, o segundo critério da estrutura – a distribuição de capacidades – varia de acordo com o poder relativo dos estados. Como acentua Griffiths: «States are similar in the tasks they face, although not in their abilities to perform them.» Cf. Griffiths, Martin – Fifty Key Thinkers in International Relations, p. 48.

27 Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics, p. 75. (tradução livre do autor).

28 Conceptualmente, prefiro a imagem de balança do poder à noção de «equilíbrio» na medida em que sugere movimento e variação, dinâmicas muito mais interessantes na construção de uma racionalidade internacional; em rigor, situações de equilíbrio no sistema internacional são escassas, dado que a distribuição de poder entre os seus componentes é normalmente muito desigual. As relações internacionais são, como se sabe, fundamentalmente assimétricas. Cf. Lobo-Fernandes, Luís – «Estudo introdutório», p. 21.

29 Lobo-Fernandes, Luís – «Estudo introdutório», pp. 8-9. Nicolas Oresme, um notável intelectual do século xiv, sintetizando de forma premonitória as dinâmicas políticas que emergiam no horizonte europeu decorrente da fragmentação territorial pós-fim do Sacro Império Romano-Germânico, definiu o novo sistema de anarquia internacional como de “paz armada”. Esta condição estrutural permanece hodiernamente, sendo convergente com a linha de racionalidade de Waltz que sugere uma baixa probabilidade de mudança nos grandes princípios ordenadores do sistema internacional. Cf. Lobo-Fernandes, Luís – «O modelo global: espaço de teste da paz e segurança internacionais». In Nação e Defesa. N.º 95/96, 2000, pp. 43-53.         [ Links ]

30 Cf. Kegley, Jr., Charles W. (ed.) – Controversies in International Relations Theory: Realism and the Neoliberal Challenge, p. 27.

31 As teorias nomotéticas distinguem-se das teorias ideográficas, estas de caráter indutivo, que lidam normalmente com eventos e situações particulares, não sugerindo ou implicando um elevado grau de generalização.

32 Kegley, Jr., Charles W. (ed.) – Controversies in International Relations Theory: Realism and the Neoliberal Challenge, p. 27. Para uma excelente discussão da construção teórica waltziana ver também THOMPSON, Kenneth W. – Schools of Thought in International Relations: Interpreters, Issues, and Morality. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1996, em especial, pp. 129-145.

33 Cf. David Dessler, citado em Kegley, Jr., Charles W. (ed.) – Controversies in International Relations Theory: Realism and the Neoliberal Challenge, p. 28.

34 Cf. Kegley, Jr., Charles W. (ed.) – Controversies in International Relations Theory: Realism and the Neoliberal Challenge, p. 28.

35 Lobo-Fernandes, Luís – «Estudo introdutório», p. 28.

36 Como Keohane e Martin admitirão a propósito do impacto da condição estrutural de anarquia, que Waltz continua a reter como uma proposição fundamental do seu enunciado: «Because security is scarce in international politics, and the environment is highly uncertain, states are forced to behave in a highly risk-averse manner. Thus, realists argued against the likelihood of states engaging in extensive and persistent forms of cooperation. States might cooperate with one another, but only on a short-term, ad hoc basis.» Cf. Keohane, Robert O., e Martin, Lisa L. – «Institutional theory as a research program». In Elman, Colin, e Elman Miriam Fendius (eds.) – Progress in International Relations Theory: Appraising the Field. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2003, p. 77.         [ Links ]

37 Cf. Waltz, Kenneth N. – Realism and International Politics, pp. 51-53.