SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número39Uma teoria nomotética da política internacional ou a construção da verdade em Waltz: algumas considerações índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.39 Lisboa set. 2013

 

Waltz, Morgenthau e Aron1

Waltz, Morgenthau and Aron

 

Carlos Gaspar

Investigador do IPRI–UNL e docente de Relações Internacionais no Departamento de Estudos Políticos da FCSH–UNL. Assessor do Conselho de Administração da Fundação Oriente. Antigo conselheiro do Presidente Ramalho Eanes (1977-1986), do Presidente Mário Soares (1986-1996) e do Presidente Jorge Sampaio (1996-2006). Foi diretor do IPRI–UNL entre 2006 e 2011.

 

RESUMO

Kenneth N. Waltz escreveu, há mais de trinta anos, o livro de referência da teoria das relações internacionais, reconhecido como tal por todas as escolas relevantes. Theory of International Politics é a linha divisória entre os clássicos e os modernos na construção da nova teoria: para os realistas marcou o princípio do neo-realismo, ou do realismo estruturalista, e as novas teorias neoliberais e construtivistas foram desenvolvidas a partir da teoria waltziana do sistema internacional.

Palavras-chave: Kenneth N. Waltz, Hans Morgenthau, Raymond Aron, teoria das relações internacionais

 

ABSTRACT

More than thirty years ago, Kenneth N. Waltz wrote the reference book on the theory of international relations, acknowledged as such by all relevant schools of thought. Theory of International Politics is the dividing line between the classics and the moderns in the construction of the new theory: for the realists, it marked the beginning of neorealism or structural realism, and the new neoliberal and constructivist theories were developed from the Waltzian theory of the international system.

Keywords: Kenneth N. Waltz, Hans Morgenthau, Raymond Aron, theory of international relations

 

Kenneth Waltz escreveu, há mais de trinta anos, o livro de referência da teoria das relações internacionais, reconhecido como tal por todas as escolas relevantes. Theory of International Politics2 é a linha divisória entre os clássicos e os modernos na construção da nova teoria: para os realistas marcou o princípio do neo-realismo, ou do realismo estruturalista, e as novas teorias neoliberais e construtivistas foram desenvolvidas a partir da teoria waltziana do sistema internacional.

Em 1979, Theory of International Politics terminou um processo que durou trinta anos e cujos marcos anteriores foram as obras clássicas de Hans Morgenthau e de Raymond Aron. Em 1948, Politics Among Nations3 tornou-se o primeiro tratado de teoria das relações internacionais – avant la lettre, uma vez que o seu capítulo teórico só apareceu na segunda edição4 – e, em 1962, Paix et guerre entre les nations5 definiu uma etapa decisiva na transição dos clássicos para os modernos.

Os três livros fundamentais da teoria das relações internacionais formam um todo e são inseparáveis entre si, como, de resto, indicam os seus títulos. A alternância entre a paz e a guerra é o que distingue a política internacional da política interna dos estados e, nesse sentido, Aron emenda Morgenthau: a «paz e guerra entre as nações» é o nome da «política entre as nações». Para Waltz, por sua vez, o essencial não era prolongar uma exegese erudita da «política entre as nações», mas a construção da «teoria da política internacional».

 

MORGENTHAU, ARON E WALTZ

Morgenthau, Aron e Waltz, os três fundadores da teoria moderna das relações internacionais, eram pessoas muito diferentes entre si, pela origem, pela formação, pela experiência e pelo percurso intelectual, político e académico.

Morgenthau6 e Aron7 pertenceram à mesma geração. Eram os dois judeus e sobreviveram ambos ao Holocausto: o primeiro fugiu da Alemanha nazi e reconstruiu a sua vida e a sua carreira universitária nos Estados Unidos; o segundo exilou-se em Londres no momento da ocupação alemã e regressou a França na Libertação, sem voltar logo à universidade. Morgenthau, um filósofo e jurista alemão formado em Munique e Frankfurt, onde apresentou uma tese de direito internacional, recomeçou a sua carreira em Chicago como professor de Filosofia das Relações Internacionais. Com Hannah Arendt, Leo Strauss e Franz Neumann, foi um dos refugiados europeus que transformaram os estudos políticos e sociais na universidade norte-americana e tornou-se uma figura pública desde o princípio da Guerra Fria, nomeadamente depois de publicar Politics Among Nations. Aron, um filósofo e sociólogo francês formado em Paris, onde defendeu uma tese sobre filosofia da história, dirigiu no exílio a France Libre, onde começou a escrever sobre política internacional, que se tornou tema principal dos seus ensaios e do seu jornalismo depois da guerra. Professor na Sorbonne e em Sciences-Po, reconhecido como o principal especialista europeu de relações internacionais, Aron não regressou à carreira universitária e só tarde pôde escrever o seu opus magnum a benefício de um sabático em Harvard. Tal como Morgenthau, Aron era uma figura pública, cujas intervenções marcaram os grandes debates da vida política francesa e europeia. Morgenthau nunca quis voltar a viver na Alemanha, enquanto Aron pôde regressar ao seu país, mas ambos partilhavam uma visão trágica da história, inseparável da sua condição de sobreviventes. Waltz que pertencia à geração seguinte, serviu nas Forças Armadas dos Estados Unidos na II Guerra Mundial e pôde ter uma vida calma na «Longa Paz» da Guerra Fria. O economista e cientista político norte-americano terminou os seus estudos em Columbia, com uma tese sobre filosofia das relações internacionais, sob a orientação de William T. R. Fox, pioneiro dos estudos internacionais nos Estados Unidos. Waltz fez uma carreira universitária brilhante e sem falhas, desde Columbia até Berkeley, gradualmente reconhecido pelos seus pares como o mais importante teórico da «disciplina americana» das relações internacionais8.

Os três tinham em comum serem intelectuais brilhantes e polémicos. Morgenthau era, na frase da sua amiga Hannah Arendt, um «conscious pariah»9, decidido a pôr em causa a inocência liberal das elites bem pensantes dos Estados Unidos, sem experiência diplomática e desarmadas perante a ameaça totalitária soviética. Aron tornou-e um liberal dissidente, à margem quer do establishment universitário, conservador e marxista, quer das elites políticas francesas, estatistas e antiamericanas, perante as quais defendeu, a contracorrente, a Aliança Atlântica, a reconciliação com a Alemanha e a independência da Argélia. Waltz nunca perdeu uma ocasião para «ser do contra», quer no elogio da bipolaridade como um paradigma de estabilidade, quer na promoção das virtudes da democracia na condução da política externa, quer mesmo na defesa da proliferação das armas nucleares10.

Os seus tratados de teoria das relações internacionais seguiram essa linha polémica. Morgenthau escreveu Politics Among Nations contra o consenso pacifista e a visão utópica de uma nova ordem mundial assente na aliança entre os Estados Unidos e a União Soviética e para preparar os responsáveis e a opinião pública norte-americana para a Guerra Fria. Aron publicou Paix et guerre entre les nations11 para criticar tanto os defensores da convergência entre os Estados Unidos e a União Soviética, como os «cruzados realistas» – uma categoria onde incluía Morgenthau, ao lado de Reinhold Niebuhr e George Kennan12 – e para demonstrar, simultaneamente, a necessidade de manter a estratégia ocidental de contenção do império soviético e os limites da competição entre os dois «irmãos inimigos», impostos pela revolução nuclear e pela balança do poder. Waltz completou Theory of International Politics para tentar ultrapassar uma visão demasiado ideológica e excessivamente dramática, senão mesmo trágica, da política internacional, perturbadora da racionalidade das políticas externas norte-americanas, e também para pôr na ordem os «exclusionistas realistas» – uma categoria onde o seu tutor incluía Nicholas Spykman, Morgenthau e Aron13 –, enquanto criticava os primeiros ensaios da teoria sistémica das relações internacionais, esboçados por Morton Kaplan, Richard Rosencrance e Stanley Hoffmann, o discípulo norte-americano de Aron14.

Os três tratados foram as obras principais dos seus autores e, nos casos de Morgenthau e de Waltz, também o último grande livro de ambos. Depois de Politics Among Nations, Morgenthau publicou estudos de circunstância sobre as políticas externas e internas dos Estados Unidos15, além dos quatro volumes que reúnem artigos e ensaios dispersos. Waltz, a seguir a 1979, publicou apenas um pequeno livro, em conjunto com Scott Sagan, antes de coleccionar os seus principais artigos e ensaios16. Aron foi a excepção, uma vez que, além de ter publicado as suas memórias, completou ainda os dois volumes do seu estudo exaustivo sobre Clausewitz17. Morgenthau e Aron escreveram novos capítulos e prefácios em edições sucessivas dos seus tratados teóricos, enquanto Waltz deixou estar a sua teoria parcimoniosa, sem parar de conversar com os seus críticos, nomeadamente os que Robert Keohane reuniu num livro famoso que termina com a resposta do mestre18.

 

REALISTAS E NEO-REALISTAS

Morgenthau e Waltz são, respectivamente, os paradigmas do realismo clássico e do neo-realismo, enquanto Aron está, de certo modo, entre ambos, tradicionalista na recepção da herança da diplomacia e da filosofia política ocidental, moderno no reconhecimento das teorias sistémicas19.

Os seus pontos de partida conceptuais revelam posições muito distintas. Morgenthau parte de uma filosofia antropológica – do homem20 de Thomas Hobbes (e de Carl Schmitt), dominado pela sua vontade de poder e responsável último pela violência e pela guerra entre os estados21. Aron, neutro quanto à natureza humana, parte da ciência do Estado – do monstro terrível de Clausewitz (e de Max Weber) que faz da guerra a continuação da política por outros meios. Waltz parte do conceito de Morgenthau (e de Niccolò Machiavelli) sobre a autonomia do político para construir a especificidade do sistema de relações internacionais – a ordem da anarquia22. Seguindo a fórmula original de Waltz23, Morgenthau representa a «primeira imagem», Aron a «segunda imagem» e ele próprio a «terceira imagem» das relações internacionais.

Os primeiros passos para a teoria realista das relações internacionais foram dados por Morgenthau, a referência incontornável que dominou a conferência sobre teoria das relações internacionais da Fundação Rockeffeler, organizada por Kenneth Thompson24. Para Morgenthau, a política é, ao mesmo tempo, o mal e a possibilidade de o conjurar pela escolha racional do mal menor25 e as relações internacionais são uma forma da política do poder, definido à maneira weberiana como a capacidade de um agente se impor a outro contra a sua vontade. A política internacional é o estado de natureza hobbesiano e a anarquia nas relações entre os estados abre caminho ao impulso de maximização do poder que caracteriza a natureza humana e pode prevalecer contra qualquer forma de racionalidade. Os estados, ou as potências, podem ter uma política racional, se se limitarem a defender os interesses nacionais sem querer pretender a universalidade, mas não podem nem escapar aos dilemas da anarquia, nem livrar-se da maldição dos filósofos totalitários. O realismo é uma teoria moral, como garante da racionalidade possível da política externa dos estados, no inferno da luta permanente pelo poder.

A ciência do Estado de Aron exclui a metafísica do poder de Morgenthau. O poder não é o mesmo na política interna (pouvoir) e na política internacional (puissance)26. Glosando o cânone weberiano, que define o Estado como o detentor do monopólio legítimo da violência na ordem interna, Aron considera a ausência desse monopólio nas relações entre os estados como a essência da anarquia internacional27. Nesse sentido, há uma descontinuidade fundamental entre o sistema político interno do Estado e o sistema das relações internacionais, cuja característica específica é a alternância entre a guerra e a paz: os estados, e só eles, podem fazer e fazem, legal e legitimamente, a guerra entre si. Contra Morgenthau, Aron defende que não pode haver uma única definição do interesse nacional numa sociedade plural e complexa e que a racionalidade das escolhas dos estados na política externa não está assegurada28. No presente, tal como no passado, a razão e as paixões, a honra e os interesses, a prudência e o medo condicionam a acção dos estados, cujas estratégias são determinadas tanto pelos regimes políticos e pelas ideologias, como pela natureza do sistema internacional. O espírito de responsabilidade dos realistas deve poder assegurar a sua moralidade, sem depender de um juízo sobre a natureza do homem ou acerca das qualidades da política externa dos estados.

A teoria política de Waltz considera Morgenthau e Aron como tradicionalistas, no sentido em que ambos constroem as suas teorias de dentro para fora (inside out) do sistema internacional e, na sua visão, só é possível construir uma teoria das relações internacionais se se inverter esse procedimento29. Essa posição está delineada desde o seu primeiro livro – Man, the State, and War – e implícita no argumento que defende a autonomia radical do sistema político internacional, ou do sistema de relações entre os estados: o terceiro nível de análise define o «quadro da política internacional», ou a «terceira imagem», cujo pioneiro intelectual foi Jean-Jacques Rousseau. Para Waltz, tanto os regimes políticos, como as ideologias, e mesmo as próprias interacções entre os estados, são irrelevantes para definir a estrutura do sistema internacional, que condiciona decisivamente as estratégias dos estados. A teoria de Waltz é uma teoria sistémica que trata das forças em jogo ao nível internacional e não ao nível nacional30 e cujas posições são definidas, no essencial, pela natureza anárquica do sistema e pelo número de pólos na estrutura de distribuição do poder internacional. A teoria realista, tal como a política externa dos estados, não está para lá do bem e do mal, mas não é moral, nem imoral.

A ordem anárquica do sistema internacional é responsável pela guerra entre os estados – não a vontade de poder dos homens, nem as paixões dos movimentos totalitários, nem as estratégias imperialistas dos estados: a guerra é normal nas relações entre os estados e inevitável porque na anarquia internacional não há nenhuma entidade que a possa impedir. O poder – power – não é um fim em si mesmo, mas apenas um instrumento que pode ser útil às estratégias dos estados, dominadas pela lógica da anarquia que lhes impõe maximizar as condições da sua segurança e não acumular poder pelo poder numa escalada suicida31. Os estados, ou as potências, podem ser conservadores, revisionistas ou revolucionários, mas antes de mais são todos entidades funcionalmente equivalentes (like-units), que se diferenciam pelo seu poder relativo. A política externa, como as outras políticas do Estado, não é relevante para a teoria da política internacional: a distribuição do poder – multipolar ou bipolar – determina o quadro das estratégias e das alianças dos estados, bem como as condições de paz e estabilidade do sistema internacional.

 

A PROVA DA REALIDADE

As teorias de Morgenthau, Aron e Waltz marcam três etapas cruciais na invenção da teoria das relações internacionais que se encadeiam entre si, mas revelam também concepções distintas da teoria e da política internacional.

Morgenthau, pela sua parte, insistia nos limites da teoria, quando citava Pascal – «Le nez de Cléopatre : s’il eût été plus court, toute la face de la terre aurait changé» – para perguntar aos seus discípulos: «How do you systematize that?»32.Nenhuma teoria da política internacional pode antecipar os eventos que prejudicam constantemente as melhores previsões. Aron contornava essa questão limitando a ambição da teoria das relações internacionais, que nunca poderia ter sequer um estatuto comparável ao da teoria económica. A teoria das relações internacionais devia ser praxeológica, uma teoria da prática e uma teoria da acção: o significado da teoria é definido pelas antíteses clássicas entre a teoria e a realidade, a teoria e o empirismo histórico ou sociológico, a teoria e a prática33. Waltz não aceitou nenhuma dessas limitações e não resistiu a seguir o exemplo dos fisiocratas, responsáveis pela primeira teoria económica, para definir as condições mínimas de construção teórica, que começam com a delimitação rigorosa do domínio próprio do sistema político internacional. Waltz transformou, ironicamente, o conceito clássico sobre a autonomia do político para edificar a sua teoria a partir da definição do quadro de autonomia da política internacional e da sua ordem anárquica. A teoria não pode explicar o que é acidental, nem ser responsável por eventos inesperados: trata de regularidades e de repetições e só é possível se estas puderem ser identificadas34.

No mesmo sentido, os três têm concepções distintas sobre a política internacional. Para Morgenthau, como para Aron, as relações entre os estados são o domínio da mudança constante e da instabilidade extrema, onde os perigos da catástrofe nunca estão longe, enquanto para Waltz a continuidade caracteriza o sistema internacional, onde a ruptura é possível, mas improvável. Na fórmula de Waltz, é mais importante explicar a continuidade da anarquia internacional do que as mudanças dos seus actores. Na sua definição, essa continuidade vai persistir até um dos competidores conseguir transformar o domínio internacional da anarquia num domínio hierárquico35. Para Morgenthau e Aron, a subestimação dos perigos da unificação imperial esteve na origem do século das guerras totais e das revoluções totalitárias. Para Waltz, as revoluções estruturais não são impossíveis36, mas o sistema bipolar, reforçado pela memória da II Guerra Mundial e pela dissuasão nuclear, criou condições sem precedentes para a paz e a estabilidade internacional37.

As posições respectivas de Morgenthau, Aron e Waltz foram postas à prova na Guerra do Vietname. Os três escreveram, em tempos e modos diferentes, sobre os dilemas da estratégia dos Estados Unidos no Sudeste Asiático.

Morgenthau, uma referência obrigatória nos debates da política externa norte-americana, entrou na questão do Vietname logo nos anos 1950 como um liberal, no sentido europeu, e saiu dela na década de 1960 como um liberal, no sentido americano – só Noam Chomsky estava à sua frente na lista dos intelectuais mais conhecidos pela sua oposição à guerra38. Morgenthau sempre defendeu, com lucidez, a necessidade de separar as estratégias norte-americanas na Europa e na Ásia: na frente ocidental, a contenção do imperialismo soviético reclamava a consolidação do status quo e das democracias europeias, enquanto na frente oriental era necessário estar do lado das revoluções nacionalistas, que se opunham às antigas potências coloniais europeias em nome dos valores ocidentais: essa era a única forma de evitar a sua apropriação pelo comunismo russo39. O erro trágico da política externa norte-americana na China tinha de ser evitado no Vietname. Mas a persistência do desvio contra-revolucionário na estratégia asiática dos Estados Unidos levou Morgenthau a uma dupla radicalização e, ao mesmo tempo que passou a alinhar com as posições do senador Eugene McCarthy a favor da retirada do Vietname40, o teórico das relações internacionais desenvolveu uma crítica à crise da democracia norte-americana. Os defeitos da estratégia internacional dos Estados Unidos já não eram o resultado da incapacidade genética das democracias para a diplomacia, segundo a fórmula de Tocqueville41, mas sintomas da «decadência moral» da democracia norte-americana42.

Aron partia de uma posição idêntica à de Morgenthau. Na sua interpretação, o regime político da República Popular da China, como o do Vietname do Norte, era mais nacionalista do que comunista e as estratégias ocidentais de resistência à vaga de descolonização eram erradas. Para o analista francês, a continuidade entre as políticas da IV República francesa e da República norte-americana no Vietname era demasiado óbvia e, em ambos os casos, representava uma intervenção desproporcionada, tendo em conta a relativa irrelevância estratégica do Vietname, ou mesmo da Indochina, na balança internacional43. Mas a acumulação de erros e a insistência numa estratégia sem possibilidades de sucesso no Vietname teve consequências igualmente excessivas, mesmo depois da eleição do Presidente Richard Nixon e dos acordos de Paris. A unificação comunista do Vietname ocorreu depois da retirada norte-americana, mas nem por isso deixou de ser uma derrota dos Estados Unidos, que coincidiu com a crise do Watergate, a revolução portuguesa e o declínio da détente e que, nesse sentido, se tornou inseparável do início de um ciclo ofensivo da política internacional da União Soviética44, que culminou com a invasão do Afeganistão.

Waltz sempre considerou a intervenção norte-americana no Vietname excessiva e desproporcionada. Na competição bipolar, as duas grandes potências estão face a face e a balança do poder é definida pela posição relativa de ambas e não depende das suas alianças: se a tomada do poder comunista na China não tinha mudado os equilíbrios bipolares, nada do que se pudesse passar no Vietname poderia justificar um empenho tão exagerado do lado norte-americano: mesmo o fortalecimento da posição da China seria mais um problema para a União Soviética do que para os Estados Unidos45. O sucesso ou o insucesso da estratégia norte-americana na Ásia do Sudeste em nada alterava a posição internacional dos Estados Unidos. Em todo o caso, Waltz não concordava com Tocqueville sobre a incompetência das democracias na política externa, nem com Morgenthau acerca da crise da democracia norte-americana. As instituições republicanas demonstravam, à vez, a sua capacidade de crítica e de leadership, a opinião pública revelava uma certa sabedoria e as suas posições nunca tinham impedido os responsáveis norte-americanos de fazer o que tinham de fazer durante a Guerra Fria46.

Nos seus últimos anos, Morgenthau, de certa maneira, regressou às origens: o social-democrata da República de Weimar, crente na possibilidade de reformar o capitalismo e céptico quanto às qualidades do regime democrático alemão para realizar essa mudança, sobreviveu ao conservador realista. Aron, pelo contrário, manteve um sentido constante na sua evolução: o jovem socialista tornou-se um liberal nos momentos críticos da divisão totalitária e num conservador cada vez mais pessimista perante a decadência europeia e ocidental, demasiado realista para ser realista.

Waltz foi parcimonioso, também nas suas intervenções públicas, pelo menos até à grande idade, quando passou a pronunciar-se sobre os temas do dia. As suas posições sobre a conjuntura parecem ter sido congruentes com a sua análise estrutural. As intervenções periféricas dos Estados Unidos durante a Guerra Fria eram supérfluas – Waltz, contra Morgenthau e Aron, considerava correcta a tomada de posição de Eisenhower contra a intervenção do Reino Unido e da França no Suez – e as intervenções externas dos Estados Unidos no Vietname, tal como no Iraque, confirmavam tanto os perigos do excesso de concentração de poder, como as virtudes da democracia norte-americana e as suas capacidades políticas e institucionais para corrigir os erros da política internacional da principal potência47. Afinal, era ele o melhor herdeiro do «liberalismo realista»48 que marcou o momento fundador da primeira escola clássica das relações internacionais.

 

Data de recepção: 3 de Junho de 2013 | Data de aprovação: 11 de Julho de 2013

 

NOTAS

1 A pedido do autor este texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

2 Waltz, Kenneth – Theory of International Politics. Nova York: McGraw-Hill, 1979.         [ Links ]

3 Morgenthau, Hans – Politics Among Nations. The Struggle for Power and Peace. Nova York: Alfred Knopf, 1948.         [ Links ]

4 Na segunda edição, o novo primeiro capítulo passou a ser «A theory of international politics», com os «seis princípios» do realismo. Morgenthau, Hans – Politics Among Nations. Nova York: Alfred Knopf, 1954.         [ Links ]

5 Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations. Paris: Calmann-Lévy, 1962.         [ Links ]

6 Frei, Christoph – Hans J. Morgenthau: An Intellectual Biography. Baton Rouge: Louisiana State University, 2001;         [ Links ] Scheuerman, William – Hans Morgenthau: Realism and Beyond. Cambridge: Polity Press, 2009.         [ Links ]

7 Aron, Raymond – Mémoires. Cinquante ans de refléxion politique. Paris: Julliard, 1983 ;         [ Links ] Baverez, Nicolas – Raymond Aron. Un moraliste au temps des idéologues. Paris: Flammarion, 2005.         [ Links ]

8 Reis, Bruno Cardoso – «Entrevista com Kenneth Waltz. Teoria estrutural da política internacional». In Relações Internacionais. N.º 29, 2011, pp. 129-141.         [ Links ]

9 Behr, Harmut, e Rosch, Felix – «Introduction». In Behr, Harmut, e Rosch, Felix (eds.) – Hans J. Morgenthau. The Concept of the Political.Londres: Palgrave Macmillan, 2012;         [ Links ] Arendt, Hannah – «We refugees». In Feldman, Ron (ed.) – Hannah Arendt. The Jew as Pariah. Nova York: Grove Press, 1978.         [ Links ]

10 Waltz, Kenneth – «The stability of a bipolar world». In Daedalus. N.º 93, 1964, pp. 881-909;         [ Links ] Waltz, Kenneth – Foreign Policy and Democratic Politics. Nova York: Longman, 1967.         [ Links ] Waltz, Kenneth, e Sagan, Scott – The Spread of Nuclear Weapons: A Debate. Nova York: Norton, 1995.         [ Links ]

11 Gaspar, Carlos – «Revisitação de Paix et guerre entre les nations». In Relações Internacionais. N.º 35, 2012, pp. 5-22.         [ Links ]

12 Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations, 1962, p. 586.         [ Links ]

13 Hanson, Elizabeth – «William T.R. Fox and the study of world politics». In Rothstein, Robert (ed.) – The Evolution of Theory in International Relations. Essays in Honor of William T.R. Fox. Columbia: University of South Carolina Press, 1991, p. 11.         [ Links ] O texto de Waltz no livro dedicado ao seu tutor desenvolve o tema das limitações teóricas de Morgenthau e Aron. Waltz, Kenneth – «Realist thought and neorealist theory». In Rothstein, Robert (ed.) – The Evolution of Theory in International Relations, pp. 21-38.         [ Links ]

14 Waltz, Kenneth – Theory of International Politics, pp. 38-59.

15 Morgenthau, Hans – In Defense of the National Interest. Nova York: Alfred Knopf, 1951.         [ Links ] Morgenthau, Hans – The Purpose of American Politics. Nova York: Alfred Knopf, 1960.         [ Links ] Morgenthau, Hans – A New Foreign Policy for the United States. Nova York: Praeger, 1969.         [ Links ]

16 Waltz, Kenneth, e Sagan, Scott – The Spread of Nuclear Weapons: A Debate. Waltz, Kenneth – Realism and International Politics. Nova York: Routledge, 2008.         [ Links ]

17 Aron, Raymond – Penser la guerre. Clausewitz. Paris: Gallimard, 1976.         [ Links ]

18 Keohane, Robert (ed.) – Neorealism and its Critics. Nova York: Columbia University Press, 1986.         [ Links ] O texto final é de Kenneth Waltz. Waltz, Kenneth – «Reflections on Theory of International Politics. A response to my critics». In Keohane, Robert (ed.) – Neorealism and its Critics, pp. 322-346.         [ Links ]

19 Aron, Raymond – «What is a theory of international relations?». In Farrell, John, e Smith, Asa (eds.) – Theory and Reality in International Relation.Nova York: Columbia University Press, 1967.         [ Links ] O livro reedita um número do Journal of International Affairs e é o único caso em que estão reunidos no mesmo volume textos de Aron, Morgenthau e Waltz, publicados por essa precisa ordem.

20 Na conferência da Fundação Rockefeller, em Maio de 1954, Morgenthau hierarquizou as questões mais importantes para a teoria das relações internacionais: o primeiro ponto era «The Nature, purpose, and limits of international relations theory»; o segundo, «The Nature of man»; o terceiro, «The Nature of power, its constant and changing elements»; a moralidade internacional vem em décimo lugar. Morgenthau, Hans – «The theoretical and practical importance of a theory of international relations». In Guilhot, Nicolas – The Invention of International Relations Theory. Nova York: Columbia University Press, 2011, p. 266.         [ Links ]

21 Morgenthau tem uma relação complexa com Hobbes e Machiavelli e, sobretudo, com Schmitt. Morgenthau, Hans – Scientific Man vs. Power Politics. Chicago: University of Chicago Press, 1946.         [ Links ] Sobre as relações com Schmitt, ver CAMPI, Alessandro e CIMMINO, Luigi (org.) – Hans Morgenthau. Il Concetto del politico. 'Contra Schmitt'. Soveria Mannelli: Rubettino, 2009.         [ Links ] Ver também BEHR, Hartmut e ROSCH, Felix (org.) – Hans Morgenthau. The Concept of the Political, Nova York: Palgrave Macmillan, 2012.         [ Links ]

22 Waltz atribui a origem do conceito de autonomia do político a Machiavelli, cuja teoria antecipa a Realpolitik de Friedrich Meinecke e Morgenthau. Waltz, Kenneth – «Theory of international relations». In Greenstein, Fred, e Polsby, Nelson (eds.) – Handbook of Political Science. International Politics. Vol. 8. Reading: Addison-Wesley, 1975, pp. 34-36;         [ Links ] Waltz, Kenneth – «The origins of war in neorealist theory». In Waltz, Kenneth – Realism and International Politics. Nova York: Routledge, 2008, p. 56.         [ Links ]

23 As três «imagens» são o tema e estão inscritas no título original da tese de Waltz, Man, the State, and the State System in Theories of the Causes of War. Waltz, Kenneth – Man, the State, and War. A Theoretical Analysis. Nova York: Columbia University Press, 1954.         [ Links ]

24 Aron foi convidado mas não foi à conferência de Maio de 1954, em Washington. Fox e Arnold Wolfers foram os outros dois académicos presentes na conferência da Fundação Rockefeller, em que participaram também Dean Rusk, Niebuhr, Paul Nitze, Robert Bowie, Dorothy Fosdick, Walter Lippman, James Reston e Don Price. Kennan não pôde estar, mas mandou uma contribuição. Na sequência dessa conferência, Fox organizou um novo simpósio sobre teoria no Institute of War and Peace Studies da Universidade de Columbia, com o apoio da Fundação Rockefeller, em 1957, onde estiveram os principais participantes académicos da conferência de 1954, bem como novos membros, incluindo, entre outros, Waltz e Martin Wight. Os textos originais de Morgenthau, Fox, Wolfers, Niebuhr e Nitze estão reproduzidos na monografia de Nicholas Guilhot sobre a conferência de 1954, Os textos de Morgenthau, Fox, Wolfers, Niebuhr, Nitze, Kindleberger e Waltz foram publicados por Fox, com o apoio do Committee on International Politics da Universidade de Notre Dame. Guilhot, Nicolas – «Introduction. One discipline, many theories». In Guilhot, Nicolas - Hans J. Morgenthau and the Ethics of American Statecraft, Baton Rouge: Louisiana State University Press. 1990, p. 203;         [ Links ] Fox, William T. R. (ed.) – Theoretical Aspects of International Relations. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1959.         [ Links ]

25 MORGENTHAU, Hans – Scientific Man versus Power Politics, pp. 168-169 e 202.

26 Aron, Raymond – Paix et guerre entre les nations, pp. 58-61. Nos seus primeiros textos sobre Schmitt, escritos em francês, Morgenthau faz uma distinção entre pouvoir e puissance, que não sobrevive nos seus textos em inglês. Aron não faz nenhuma referência a esses textos, de resto muito pouco conhecidos até à sua redescoberta nos últimos anos. Morgenthau nunca os mencionava e só falou do seu passado alemão num texto autobiográfico publicado nos últimos anos da sua vida, onde referiu que a sua tese de doutoramento era, no essencial, uma resposta ao ensaio célebre de Schmitt sobre o conceito do político. Morgenthau, Hans – La notion du «politique» et les différends internationaux. Paris: Recueil Sirey, 1933.         [ Links ] Behr, Harmut, e Rosch, Felix (eds.) – Hans J. Morgenthau. The Concept of the Political.Londres: Palgrave Macmillan, 2012, pp. 47-64.         [ Links ] Morgenthau, Hans – «Fragment of an intellectual autobiography (1904-1932)». In Thompson, Kenneth, e Myers, Robert (eds.) – Truth and Tragedy. A Tribute to Hans J. Morgenthau. Transaction Books, 1977, pp. 1-17.         [ Links ]

27 ARON, Raymond – «What is a theory of international relations?», pp. 6-8.

28 ARON, Raymond – Paix et guerre entre les nations. Paris: Calmann-Lévy, 1962, pp. 101, 97-102.         [ Links ]

29 Waltz, Kenneth – «Realist thought and neorealist theory», 1991, pp.70-73. Waltz, Kenneth – Theory of International Politics, pp. 61-62, 67.

30 Ibidem, p. 71.

31 Waltz, Kenneth – «The origins of war in neorealist theory», p 56-57.

32 Waltz, Kenneth – «The origins of war in neorealist theory», p 56.

33 ARON, Raymond – «What is a theory of international relations?», pp. 5.

34 Waltz, Kenneth – «The origins of war in neorealist theory», p 56.

35 Segundo Waltz, «The enduring anarchic character of international politics accounts for the striking sameness of international life through the millennia». Waltz, Kenneth – Theory of International Politics, 1979, p. 66.

36 Waltz, Kenneth – Theory of International Politics, p. 70.

37 Waltz, Kenneth – «The origins of war in neorealist theory», p. 63.

38 Scheuerman, William – Hans Morgenthau: Realism and Beyond, 2009, p. 165.

39 Morgenthau, Hans In Defense of the National Interest, pp. 64, 201-208.

40 Morgenthau, Hans – Truth and Power.Nova York: Praeger, 1970, pp. 191-206.         [ Links ]

41 Morgenthau termina In Defence of the National Interest com uma citação clássica de Tocqueville – «La politique extérieure n’exige l’usage de presque aucune des qualités qui sont propres à la démocratie, et commande au contraire le développement de presque toutes celles qui lui manquent» – para criticar a política externa norte-americana. Waltz começa com a mesma citação para a refutar com a sua análise das políticas externas do Reino Unido e dos Estados Unidos. TOCQUEVILLE, Alexis de – De la démocratie en Amérique, I, II, 1835, In TOCQUEVILLE, Alexis de – œuvres, II, Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1992, p. 262.

42 Scheuerman, William – Hans Morgenthau: Realism and Beyond, 2009, pp. 186- -187;         [ Links ] Russell, Greg (1990). Hans J. Morgenthau and the Ethics of American Statecraft, Baton Rouge: Louisiana State University Press. 1990, p. 203.         [ Links ]

43 Aron, Raymond – République impériale. Les Etats-Unis dans le monde (1945- -1972). Paris: Calmann-Lévy, 1973, pp. 129, 118-132.         [ Links ]

44 Aron começou por não querer atribuir consequências estratégicas excessivas à débâcle do Vietname, mas o seu primeiro artigo depois do comentário moderado sobre a queda de Saigão não resistiu ao pessimismo da conjuntura. Aron, Raymond – «Défaite au Vietnam». In Figaro, 10 de Abril de 1975 ; Aron, Raymond – «Déclin américain». In Figaro, 11 de Abril de 1975. In Aron, Raymond – Les articles du Figaro. III. Paris: Editions de Fallois, 1997, pp. 1500-1506.

45 Waltz, Kenneth – Foreign Policy and Democratic Politics, p. 292.

46 Williams, Michael – «The politics of theory: Waltz, realism and democracy». In Booth, Ken (ed.) – Realism and World Politics. Londres: Routledge, 2011, pp. 50-63;         [ Links ] Waltz, Kenneth – Foreign Policy and Democratic Politics, pp. 286-297.

47 Waltz, Kenneth – Foreign Policy and Democratic Politics, pp. 292-293, 307-311.

48 A melhor definição do «liberalismo realista» pertence a outro exilado alemão. Herz, John – Political Realism and Political Idealism. Chicago: University of Chicago Press, 1951.