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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.38 Lisboa jun. 2013

 

O fascismo comparado sob o signo da Guerra Fria

 

José Reis Santos

Investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH–UNL e investigador convidado do Past Inc. da Central European University.

 

António Costa Pinto (coord.).

Governar em Ditadura: Elites e Decisão Política nas Ditaduras da Era do Fascismo.

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2012, 250 páginas

 

Em boa hora é dada à estampa a tradução portuguesa do livro Ruling Elites and Decision-making in Fascist Era Dictatorships, coordenado por António Costa Pinto e originalmente editado na Columbia University Press em 2010. Isto não só porque este volume revê e acrescenta novas leituras à investigação sobre o tema genérico dos autoritarismos comparados, como representa também, a meu ver, o grau de maturidade, o nível de internacionalização e a qualidade do contributo dos académicos portugueses para as ciências sociais contemporâneas.

Estamos indiscutivelmente perante uma obra útil para quem tenha interesse em compreender algumas das nuances dos processos de edificação institucional das ditaduras do entre-guerras e que procure, no enquadramento sobre a natureza dos regimes autoritários europeus na era dos fascismos, uma melhor contextualização para o caso português. Neste sentido, a obra agora traduzida conduz-nos, através da apreciação comparada dos processos de decisão política em quatro ditaduras europeias (alemã, italiana, espanhola e portuguesa), e da análise à composição das suas elites ministeriais, aos meandros do poder e aos círculos políticos mais restritos de quatro ditadores: Hitler, Mussolini, Franco e Salazar. E insere-se na tradição académica que tem procurado, desde os anos 1980, compreender – através da análise das dinâmicas em torno do fenómeno dos «fascismos» (assim genericamente não definidos) e do estudo sobre as origens sociais dos seus líderes e apoiantes – as causas para o sucesso e disseminação do modelo político que dominou institucionalmente os anos 1930: a ditadura.

Assim, este volume não só acrescenta profundidade a trabalhos como Who Were the Fascists? Social Roots of European Fascism (editado por Stein Ugelvik Larsen, Bernt Hagtvet e Jan Petter Myklebust, em 1985), Latin Fascist Elites: The Mussolini, Franco, and Salazar Regimes (Paul H. Lewis, em 2002) ou mesmo Who Governs Southern Europe? Regime Change and Ministerial Recruitment, 1850- -2000 (editado por Pedro Tavares de Almeida, António Costa Pinto e Nancy Bermeo, em 2003), como nos permite, fruto dos excelentes artigos sobre o caso português, observar em detalhe e com base em novas fontes (as agendas de Salazar, pela primeira vez trabalhadas de forma sistematizada) a metodologia de trabalho utilizada por Salazar durante os anos decisivos da edificação do Estado Novo (quando o ditador português – rodeado por um reduzido grupo de velhos amigos – lançou as bases do regime autoritário que acompanharia e definiria a história de Portugal por duas gerações).

Complementarmente, destacaria ainda o facto de estarmos perante mais um excelente contributo da parte de um dos mais reputados e prolíferos historiadores e politólogos nacionais, António Costa Pinto, que como autor ou coordenador tem produzido vasta e significativa obra dedicada ao estudo dos autoritarismos comparados, de onde poderíamos destacar The Nature of Fascism Revisited (como autor, 2012), Rethinking the Nature of Fascism (como coordenador, 2011), Dealing with the Legacy of Authoritarianism: The “Politics of the Past” in Southern European Democracies (coordenado com Leonardo Morlino, 2011), Charisma and Fascism in Interwar Europe (coordenado com Roger Eatwell e Stein U. Larsen, 2007) ou O Corporativismo em Português (coordenado com Francisco Palomanes Martinho, 2008).

 

PROBLEMATIZANDO A COMPARATIVIDADE DO CASO PORTUGUÊS

Dito isto, o volume infelizmente não nos permite medir na complexidade desejada os graus de excecionalidades e de comparatividade do caso português, até porque – dentro do panorama autoritário dos anos 1930 – encontramos exemplos bem mais interessantes do que os tradicionais casos italiano, alemão e espanhol; como se Portugal, do ponto de vista comparativo, tenha indelevelmente de ser fixado junto do subgrupo latino-mediterrânico tão abusivamente utilizado pela ciência política e agora pela história comparada. Tal facilitismo é entendível à luz da tradição académica corrente (ou pelo menos dominante), pois esta – retendo as marcas do paradigma bipolar – ainda promove uma leitura do sistema internacional bem definida do ponto de vista hierárquico (grandes potências e países periféricos) e geográfico (no caso de Portugal, a Europa latino-mediterrânica). Assim, é expectável, conveniente mesmo, a comparação do caso português com outros países da mesma categoria, em prol de uma percetiva afinidade categórica, categorização em parte definida – ou pelo menos acentuada – depois da ciência política internacional ter identificado na transição portuguesa (1974-1976) o ponto de origem da «terceira vaga de democratizações», iniciada no Largo do Carmo e difundida à Grécia e Espanha, primeiro, e à América Latina, depois. E assim, com a adição da Itália, fixaram-se os casos de estudo que têm servido como modelos de comparação com o caso português, quer estejamos a comparar elites, modelos políticos ou, como no caso desta obra, processos de decisão política na era dos fascismos.

Por outro lado, fruto do meio século de sistema bipolar e do ajustamento da academia internacional ao modelo da Guerra Fria, foram-se perdendo as tradições de intercâmbio cultural e intelectual existentes no espaço europeu – definido entre Lisboa e Moscovo – com evidentes repercussões na capacidade dos universitários em ultrapassar, para efeitos comparativos, as divisões impostas pelas clivagens da Guerra Fria. Como resultado desta partição geopolítica assistimos a um enclausuramento académico de parte a parte, fenómeno triplo no caso da Europa Central e de Leste, cuja investigação universitária se revestiu de evidentes contornos ideológicos e nacionalistas.

Assim, só recentemente conseguiu a academia libertar-se deste colete imposto e ultrapassar as baias que restringiam a apreciação histórica comparada às condicionantes políticas da segunda metade do século xx, pouco ou nada condizentes com as dinâmicas centro(s)-periferia(s) ou com as redes de intercâmbios culturais experimentadas na arena europeia na década de 1930, por exemplo. E fê-lo aproveitando uma nova geração de investigadores que, consagrando o inglês como língua franca, têm beneficiado da abertura à pesquisa de um sem-número de arquivos (antes fechados ou com o acesso condicionado ideologicamente) para, com acesso a estas novas fontes, produzir novas leituras críticas de um alargado conjunto de trajetórias nacionais (uma nova geração de académicos onde os autores deste volume poderão ser incluídos).

Neste sentido, e apesar de compreensível a escolha dos quatro países em análise, julgo que se terá perdido uma oportunidade de retirar o caso português da inevitabilidade comparativa com regimes políticos com insuficientes graus de comparação, especialmente quando confrontados com possibilidades de outra complexidade e proximidade. Assim, tomando em consideração que a ascensão de Salazar aos corredores do poder se processa de forma relativamente lenta e obedecendo a uma gestão do tempo (político) muito própria do ditador português, poderia ter sido interessante acrescentar a apreciação comparada dos processos de decisão política e de construção das elites em Portugal com outros modelos autoritários que partilham com o Estado Novo não só a sua busca por um modelo de ordem social autoritário, antiliberal, católico (ou cristão) e corporativo, mas também que compartem alguns dos seus processos de edificação institucional e de formação e gestão de elites. E referimo-nos, em concreto, a casos como o húngaro (de Horthy, 1920-1944) ou o polaco (de Pilsudski, 1926-1935), que pela sua longevidade e sincronidade oferecem um amplo espaço comparativo, ou aos modelos corporativo-religiosos de Dollfuss na Áustria (1933-1934, católico) ou de Metaxas na Grécia (1936-1941, ortodoxo), as ditaduras realistas de Alexandre III (Jugoslávia, 1929-1934), Carol II na Roménia (1930-1940), ou Bóris III na Bulgária (especialmente após o golpe de Estado militar de 1934), ou mesmo aos casos mais distantes dos autoritarismos bálticos, liderados na Estónia por Konstantin Päts (1934-1939), na Lituânia por Antanas Smetona (1926-1939) e na Letónia por Karlis Ulmanis (1934-1949). Ou seja, fornece-nos o panorama político da Europa dos anos 1930, especialmente durante a segunda metade da década, demasiados exemplos para que sejam restringidas as comparações do Estado Novo aos casos da Itália, Espanha ou Alemanha; para mais quando a receção ao pensamento e ação política do ditador português por parte das elites intelectuais (e políticas) europeias tem provado ser bem mais alargada e influente, cobrindo praticamente todo o continente europeu; e quando julgo evidente a vontade de Salazar competir, na arena dos fascismos internacionais, com o paganismo nacional-socialista e o totalitarismo fascista, apresentando o modelo corporativo-católico português como uma terceira via, uma alternativa a estes regimes.

 

GOVERNAR EM DITADURA: ELITES E DECISÃO POLÍTICA NAS DITADURAS DA ERA DO FASCISMO

Em todo o caso, reforço a ideia de estarmos perante uma obra de interesse alargado, não só porque os diversos capítulos do volume nos permitem acompanhar com minucioso detalhe os processos de edificação institucional das ditaduras analisadas, mas especialmente porque nos é permitido seguir quatro metodologias bem diferentes no que respeita às estratégias de acesso ao poder e ao Estado, às relações entre as instituições estatais e os partidos únicos e às dinâmicas de cooptação e gestão das principais elites dirigentes por parte dos ditadores em questão. Neste sentido, realçamos do volume os dois artigos que se debruçam sobre o caso português. O primeiro – «“Império do professor”: a elite ministerial de Salazar, 1932 – 1944» –, assinado por Nuno Estêvão Ferreira, Rita Almeida Carvalho e António Costa Pinto, dedica-se à análise da elite ministerial de Salazar entre 1932 e 1944, fornecendo uma interessante atualização ao substancial conjunto de estudos prosopográficos já existentes. Já a segunda contribuição, «Decisão política no Estado Novo: 1933-1939», assinado também por Nuno Estêvão Ferreira, Rita Almeida Carvalho, e agora com Filipa Raimundo, dedica-se à apreciação dos processos de decisão política durante a fase inicial do salazarismo com base na análise da agenda pessoal de Salazar, uma fonte pela primeira vez trabalhada de forma sistemática e consistente. Este é um artigo de referência, pois permite-nos não só completar a investigação desenvolvida por Fátima Patriarca1 sobre a formação do primeiro governo chefiado por Salazar (1932) – então apreciado sob leitura do diário de Leal Marques, chefe de gabinete do então recém-nomeado presidente do Conselho – como entendermos que a base genética do desenho institucional do Estado Novo encontra-se indelevelmente associada à metodologia de trabalho partilhada entre Salazar e o seu restrito círculo político-académico.

Ao caso espanhol é apenas dedicado um artigo, apresentado por Miguel Jerez Mir («Governo, partido único e ministros no franquismo, 1936-1945»), enquanto o italiano reúne capítulos sobre o carisma e os processos de decisão de Mussolini (por Didier Musiedlak, «Mussolini, carisma e decisão política») e sobre a elite política e os mecanismos de construção do Estado Fascista (por Goffredo Adinolfi, «Grande Conselho e governo: elite e decisão política na Itália fascista»). A Alemanha nazi é apresentada por Aristotle Kallis («Decisão política e propaganda nazi: um híbrido de “modernidade” e “neofeudalismo” na propaganda em tempo de guerra») e por Ana Mónica Fonseca («Ministros e centros de poder na Alemanha Nacional-socialista»); enquanto António Costa Pinto assina uma curta introdução («Partido único, governo e decisão política nas ditaduras da era do fascismo») e apresenta as conclusões do projeto de investigação (agora transformado em livro) através de um ensaio sobre a relação entre partidos únicos, governo e instituições do Estado e os processos de decisão política nas quatro ditaduras analisadas («Partido Único, governo e decisão política nas ditaduras da era do fascismo: perspetivas comparadas»).

Em suma, mesmo que ironicamente estejamos perante um volume coletivo dedicado ao estudo comparado das ditaduras da Era do Fascismo condicionado pelo modelo da Guerra Fria, julgo que a relevância do seu contributo é evidente e que cedo se tornará uma referência para futuras investigações, em especial as que procurem romper com a inevitabilidade comparativa intralatina (aqui acompanhada pelo nacional-socialismo alemão) e recolocar o foco da análise histórica não em bitolas balizadas pela «anormalidade bipolar» da segunda metade do século xx mas antes na complexa realidade da Europa do período entre-guerras.

 

NOTAS

1 PATRIARCA, Fátima – «“Diário” de Leal Marques sobre a formação do primeiro governo de Salazar». In Análise Social. N.º 178, 2006.         [ Links ]