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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.38 Lisboa jun. 2013

 

Exercício Alcora. O que sabemos, e não sabemos, sobre a Guerra Colonial

 

Filipe Ribeiro de Meneses* e Robert McNamara**

* Professor na National University of Ireland Maynooth. Formou-se e doutorou-se no Trinity College em Dublin. É autor, entre outras obras, de Salazar: Biografia Política (Lisboa: Dom Quixote, 2010), Afonso Costa (Lisboa: Texto Editora, 2010) e União Sagrada e Sidonismo: Portugal em Guerra, 1916-1918 (Lisboa: Cosmos, 2000). Coordenou, com Pedro Aires Oliveira, o volume A I República Portuguesa: Diplo­macia, Guerra e Império (Lisboa: Tinta-da-China, 2011). Com Robert McNamara, investiga há alguns anos as ligações entre Portugal, a Rodésia e a África do Sul no contexto da descolonização e da Guerra Fria.

** Professor de História Internacional na Universidade do Ulster, em Coleraine (Irlanda do Norte). Formou-se e doutorou-se no University College Cork. É autor, entre outras obras, de The Hashemites: The Dream of Arabia (Haus 2009 e American University Cairo Press 2009), e Britain, Nasser and the Balance of Power in the Middle East from Egyptian Revolution to the Six Day War (Frank Cass, 2003). Coordenou o volume The Churchills in Ireland: Connections and Controversies (Irish Academic Press, 2012).

 

Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes.

Alcora: O Acordo Secreto do Colonialismo

Lisboa: Divina Comédia, 2013, 400 páginas

Luís Barroso.

Salazar, Caetano e o «Reduto Branco»: A Manobra Político- -Diplomática de Portugal na África Austral (1951-1974).

Lisboa: Fronteira do Caos, 2012, 384 páginas

 

A 14 e 15 de outubro de 1974 ocorreu, em Lisboa, uma reunião entre as cúpulas militares de Portugal, da Rodésia e da África do Sul. Formavam, coletivamente, o Alcora Top Level Committee, sendo este o oitavo encontro desse órgão. A delegação portuguesa, que presidiu ao encontro, era composta pelo general J. A. Pinheiro, em representação do general Costa Gomes (na sua função não de Presidente da República, mas de chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas), o brigadeiro Brito e Melo e o coronel Santos Costa. Os sul-africanos eram liderados pelo general R.F. Armstrong e os rodesianos pelo general G. P. Walls.

Logo no início da reunião, o general Pinheiro anunciou que o Exercício Alcora não poderia continuar, no futuro, como tinha existido até então. Quer a Frelimo, com quem tinha sido recentemente assinado o acordo de Lusaca, quer os movimentos de libertação angolanos, suspeitavam da existência de ligações militares entre os três países. Se tais suspeitas fossem confirmadas, isso poderia significar o fim da tentativa de descolonização pacífica empreendida por Portugal. Práticas existentes até então, tais como as de hot pursuit (perseguição transfronteiriça) teriam também de cessar. A delegação sul-africana respondeu de forma cautelosa ao aviso português, mas a reação dos rodesianos foi bem diferente. Para Salisbúria, a existência de um Moçambique independente governado pela Frelimo representava uma ameaça potencialmente mortal. Hot pursuit, explicaram, era uma necessidade, um direito de que todos os países usufruíam e a Rodésia queria combater os guerrilheiros da ZANU e da ZAPU onde quer que estes se encontrassem. Mas o general Pinheiro manteve-se firme: era impossível continuar a cooperar militarmente, de forma ativa, com a Rodésia e com a África do Sul. Esperava que os três países continuassem a gozar de boas relações, e oferecia os bons ofícios de Portugal como interlocutor com a Frelimo – mas nada mais. Foi produzido um documento de uma página, intitulado «Agreements as to future cooperation», que incluía troca de informações sobre a manutenção de paz e segurança na África Austral assim como a promoção de «boa vontade, compreensão e cooperação» na região. E enquanto encontros de alto nível entre os três países deviam continuar, o nome de código Alcora teria de ser abandonado, enquanto que outra vertente do exercício, o PAPO (Permanent Alcora Planning Organization), deixaria de existir a partir de 31 de outubro desse ano1.

Este encontro marcou, assim, o fim do Exercício Alcora. Mas o que foi esse exercício? Que importância teve, realmente, na condução das guerras coloniais portuguesas? E como nos ajuda a melhor compreender as escolhas políticas e militares feitas pelo Governo de Marcelo Caetano, nos últimos anos do Estado Novo?

São estas as perguntas a que três projetos tentam, simultaneamente, dar resposta. Um é formado pelos autores deste artigo2; outro pela dupla Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, que publicaram agora Alcora: O Acordo Secreto do Colonialismo; e a terceira por Luís Barroso, com o livro – adaptação de uma tese de doutoramento – Salazar, Caetano e o «Reduto Branco»: A Manobra Político-Diplomática de Portugal na África Austral (1951-1974).

Os três projetos têm métodos de investigação e fins diferentes, chegando por isso a conclusões que são por vezes contraditórias. A tarefa a que se dedicam, porém, é difícil, tendo em conta o secretismo que envolveu Alcora, apenas quebrado aqui e ali por alguns dos seus intervenientes. O general Kaúlza de Arriaga, por exemplo, fez-lhe uma curta referência no seu livro Guerra e Política: Em Nome da Verdade, descrevendo-o como uma aliança que se revelou uma desilusão3. Mas foi esta referência uma exceção. O que podemos afirmar é que os estudos sobre o Exercício Alcora revolucionaram a nossa compreensão de como foram travadas – e perdidas – as guerras coloniais.

 

ALCORA: ALIANÇA MILITAR DE ÚLTIMO RECURSO?

Em Alcora: O Acordo Secreto do Colonialismo, Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes apresentam o Exercício Alcora como uma aliança de facto («seguia o modelo de outras organizações internacionais e era típica dos pactos políticos e militares, como o Pacto de Varsóvia ou a […] NATO»4) que nunca foi assumida por Portugal mas que representou, no fundo, um beco sem saída, resultado lógico e inevitável da falta de uma política colonial realista desde a Conferência de Berlim5. Prisioneiro de uma situação absurda, já que tinha colónias sem a riqueza necessária para as desenvolver, Portugal foi sofrendo um desfasamento cada vez maior em relação às outras potências coloniais. Em 1960, Salazar reagiu como o «camponês que sempre foi» à campanha que se desenhou na ONU contra Portugal6, agarrando e defendendo uma herança sem saber o que fazer com ela. Nem sequer soube tomar as medidas necessárias para impedir a violência – de resto previsível – em Angola no ano seguinte, já que, como sempre, subordinou todas as outras questões, incluindo as do foro militar, à da sua sobrevivência política.

Segundo estes autores, Portugal entrou em guerra sem saber porquê nem com que fim. A sua falta de meios e de aliados levou inexoravelmente à aproximação a duas potências regionais que Lisboa receava, mas de cuja ajuda necessitava: Rodésia e África do Sul. Com o passar dos anos a dependência portuguesa tornou-se maior, porque as Forças Armadas não conseguiam dar resposta aos problemas com que se deparavam, tanto em Angola (sobretudo depois da abertura da Frente Leste) quanto em Moçambique. As dificuldades na Guiné eram mais graves ainda, mas ficava esta colónia fora do âmbito da cooperação com Salisbúria e Pretória. Assim sendo, os comandos militares portugueses foram perdendo iniciativa e, perante a crítica demolidora feita pelo general sul-africano Charles Allan «Pop» Fraser, em março de 1970, capitularam, acedendo ao convite para entrar numa aliança militar cujo alcance não conseguiam medir, mas cujas consequências alguns (sobressai a figura de Costa Gomes) recearam7. A situação portuguesa, de si difícil, foi frequentemente agravada pelo amadorismo, ou tendência para a improvisação, de algumas figuras. De realçar, neste sentido, os ministros da Defesa Nacional, Gomes Araújo e Sá Viana Rebelo, que garantiram, respetivamente, a Salazar e a Marcelo Caetano, que as Forças Armadas portuguesas assegurariam por si só a defesa de Cahora Bassa, sem nunca terem estudado a questão8, e Kaúlza de Arriaga, que não percebeu – ou fingiu não perceber – o impacte desta decisão na estratégia, por ele preconizada, de ataque à Frelimo no Norte de Moçambique.

Conseguem os autores deste volume dar, nas suas trezentas e vinte e nove páginas (mais vários anexos de grande utilidade), o golpe final na ideia de que Portugal tinha a situação militar controlada aquando do 25 de abril. Moçambique corria enormes perigos, a situação em Angola estava outra vez a piorar, dada a hostilidade do Zaire e o regresso da Unita à luta armada, e a Guiné estava essencialmente perdida. E se Portugal estava ainda a combater, garantem os autores, era graças aos apoios cada vez maiores fornecidos por Pretória e Salisbúria. Mas mesmo estes apoios tinham os seus limites; a introdução dos temíveis SAM-7 Strella em Moçambique custou caro à Força Aérea rodesiana nas semanas que antecederam o 25 de abril. É de notar ainda, nesta obra, a forma aberta, sem rodeios, como Afonso e Matos Gomes descrevem o posicionamento do Governo português no início das guerras coloniais e os antecedentes dessa crise, de todo previsível: podemos ou não concordar com a análise feita, mas raramente se lê a história escrita de forma tão direta, tão brutal até. Os dois trabalham os arquivos militares portugueses com enorme mestria, conseguindo construir uma narrativa empolgante a partir do enorme acervo documental legado pelo Exercício Alcora.

É por isso mesmo de estranhar que o volume contenha o que parece ser uma hesitação quanto à forma de melhor apresentar os dados nele reunidos. Se, por um lado, alguns documentos são reproduzidos quase na íntegra (como o já referido relatório do general Fraser, cujo resumo ocupa mais de vinte páginas), de forma a dar ao leitor um conhecimento profundo das bases do Alcora e das carências do esforço militar português, por outro os autores sentem a necessidade de realçar, através do uso repetido de pontos de exclamação, aquilo que consideram realmente importante, não deixando a esse mesmo leitor espaço para tirar as suas próprias conclusões sobre os documentos que acabou de ler9. E do ponto de vista formal, o livro carece de uma mais rigorosa prestação de contas ao leitor interessado: faltam várias notas de rodapé a indicar a origem de documentos e de afirmações, algumas destas do maior interesse. Qual é a proveniência, por exemplo, da informação sobre a reunião a que o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, assistiu, em que pela primeira vez foi confrontado com a existência do Exercício Alcora?10 Semelhante pergunta ocorre-nos em relação a uma das conclusões (provavelmente a de maior interesse) apresentada no fim do volume – a de que o Exercício Alcora iria ser tornado público no verão de 1974, possibilitando assim a declaração de independência de Angola e Moçambique pela população branca. Tal afirmação, da mais transcendente importância para a história recente de Portugal, de Angola e de Moçambique, aparece virtualmente do nada, assemelhando-se mais a uma especulação (interessante e merecedora de respeito, tendo em conta quem a faz) do que propriamente a uma conclusão, já que o assunto não foi mencionado nos capítulos anteriores.

Podemos também apontar a este livro algumas lacunas que derivam da origem restrita dos documentos que o compõem. O Exercício Alcora, sobretudo no que se refere à recolha de informações sobre inimigos comuns (movimentos de libertação, países da linha da frente, a OUA, a URSS e a China), duplicou em grande parte o esforço feito pelas polícias e serviços de informação dos seus três membros (sendo que, no caso português, ambas estas funções eram desempenhadas pela PIDE), esforço esse que, tal como o do Alcora, se foi aprofundando através de encontros regulares (nas três «capitais» portuguesas, em Salisbúria e em Pretória) ao longo dos anos 1960 e 1970. Alguns destes encontros são referidos na obra de Afonso e Matos Gomes, mas sempre de passagem, sem que a sua regular ocorrência, importância e conclusões sejam salientadas. Porém, as minutas destes encontros estão facilmente disponíveis no arquivo PIDE/DGS, assim como detalhes sobre as unidades portuguesas mais apreciadas pelos «primos» sul-africanos e os rodesianos – os Flechas. Não está alheia a esta duplicação de esforços a rivalidade crescente entre as forças armadas sul-africanas e o serviço de informações daquele país, o BOSS, do ambicioso e temível Hendrik van den Bergh. No entanto, esta rivalidade, que muito atrapalhou a política externa de Pretória, não transparece na obra de Afonso e Matos Gomes, em que a África do Sul é apresentada como um colosso, seguro de si e dotado de uma única vontade11. Nesse sentido, uma mais ampla leitura das fontes secundárias sobre a África do Sul, acompanhada por uma consulta de arquivos rodesianos e sul-africanos, teria sido proveitosa. Correram os autores um risco: o de escrever a história de um processo multilateral com base em alguns arquivos de um só país. Por muito bem que tenham trabalhado esses arquivos, ficará sempre algo de fora.

Por fim, podemos assinalar um erro de facto importante e uma matéria que nos deixa algumas dúvidas. O erro está relacionado com a última reunião Alcora. A que vem assinalada como tal, que ocorreu em Pretória, em junho de 197412, é, na realidade, a penúltima. As dúvidas nascem da questão do acordo financeiro assinado a 8 de março entre Portugal e a África do Sul no valor de 150 milhões de rands13. Parte deste montante terá sido gasto pelo Governo português para comprar equipamento sofisticado, como mísseis terra-ar Crotale, não para uso na Guiné, como muitas vezes se afirma, mas em Angola, como forma de dissuadir o Zaire, que tinha há pouco comprado caças Mirage-III em França. Também este empréstimo surge, no livro, a partir do nada. Mas, na realidade, a questão do empréstimo vem de trás, parecendo-nos que a ajuda financeira serviu de engodo para a aceitação, por parte de Portugal, do Exercício Alcora. Podemos dizer com segurança que, em meados de 1968, a África do Sul começou a explorar a questão do apoio financeiro a Portugal em detalhe, sendo, porém, muitas as dificuldades a superar. Havia, em Pretória, quem julgasse qualquer empréstimo arriscado, sendo tais dúvidas mais tarde desfeitas graças ao início da exploração de petróleo em Cabinda. A partir desse momento o empréstimo foi visto como uma forma de financiar o esforço de guerra português até que este se pudesse sustentar14. Mesmo assim, as condições propostas pelos sul-africanos para um empréstimo de 25 milhões de rands foram tidas em Lisboa como demasiado duras15. Não eram apenas financeiras estas condições: o empréstimo dependia de uma maior cooperação militar entre os dois países, insistindo o Ministério da Defesa sul-africano que Pretória deveria ser consultada sobre a condução de operações militares portuguesas16. Porém, a 11 de março de 1970 – coincidindo com o relatório do general Fraser – J. H. de Loor, dos Negócios Estrangeiros sul-africanos, informou H. O. de Villiers, vice-governador do South African Reserve Bank, que as autoridades portuguesas tinham aceitado os termos do empréstimo, e desejavam concluir o acordo o mais cedo possível17. Cópia deste, assinado seis dias mais tarde em Pretória, encontra-se no ADN18. Porém, mais informações são necessárias sobre a ligação entre as questões financeira e militar, antes de as podermos discutir com inteira certeza.

 

ALCORA: CONCLUSÃO LÓGICA DA POLÍTICA COLONIAL E EXTERNA PORTUGUESA?

As nossas dúvidas quanto à evolução do auxílio financeiro estendem-se também à obra de Luís Barroso: Salazar, Caetano e o «Reduto Branco»: A Manobra Político-Diplomática de Portugal na África Austral (1951-1974). Barroso aponta o empréstimo como uma questão fundamental; como nós, considera o apoio financeiro uma arma através da qual Pretória conseguiu atrair Portugal ao Exercício Alcora e mantê-lo lá. Porém, para Barroso, o empréstimo de 1974 foi o único a ser concedido, o que não nos parece correto. O que é certo é que estes dois livros têm de ser lidos lado a lado, uma vez que se completam – se bem que as teses que defendem, sejam, no fundo, incompatíveis: o leitor terá de decidir qual das duas é correta. Se, como vimos, para Afonso e Matos Gomes a participação portuguesa no Alcora resulta da falta de uma política colonial credível (e da necessidade de preservar o Estado Novo em vez de encarar o verdadeiro interesse nacional, que passava pela descolonização), para Barroso o Exercício Alcora insere-se naturalmente na grande manobra diplomática que Portugal foi conduzindo no Sul de África ao longo de um quarto de século.

Foi essa política condicionada, ao longo dos anos 1950, por vários fatores: por um lado, a fraqueza militar portuguesa, o desejo de incluir as províncias ultramarinas no espaço NATO, a recusa em ser associado à política racial da África do Sul e os receios, quer da hegemonia sul-africana, quer das pretensões territoriais da Federação da Rodésia e Niassalândia; por outro, a crescente falta de apoio diplomático de Londres e de Washington, a política de descolonização das principais potências europeias, desenvolvimentos na ONU e a violência que acompanhou o fim do Congo Belga. Sempre com grandes hesitações, Portugal foi-se aproximando à África do Sul, e 1960 terminou com os dois países aparentemente dispostos a cooperar no planeamento militar, mas sem saberem como iniciar o processo: através de conversas técnicas, longe da opinião pública, defendia Lisboa; através de um entendimento político que estabelecesse as linhas mestras do processo, insistia Pretória19.

O início da guerra em Angola veio acelerar o processo de aproximação entre os dois países, não sem que Lisboa tentasse encontrar formas de mitigar a sua dependência de Pretória. É assim que Barroso explica a política portuguesa para com as três partes da Federação (uma vez finda esta curiosa experiência colonial britânica): o Malawi, a Zâmbia e, claro, a Rodésia. E é no segundo capítulo, em que as relações com cada um destes três países são apreciadas, que reside o maior mérito da obra. A investigação metódica da documentação diplomática da altura revela, quanto a nós, a existência de uma política para a região, que acabará, porém, por fracassar, devido à fraqueza militar e económica portuguesa, às surpreendentes (para Lisboa) determinação e capacidade diplomática de Kenneth Kaunda e a um erro de cálculo sobre a natureza das relações entre Londres e Salisbúria. Fracassou, mas não deixou por isso de existir e de ser motivo de constante reflexão e enorme esforço. Salazar, Franco Nogueira e, entre outros, Jorge Jardim, tentaram tirar o maior partido possível dos poucos trunfos que tinham na mão.

Embora com a enorme vantagem de ter consultado um leque de arquivos mais vasto do que Afonso e Matos Gomes, Barroso tem dificuldades em elaborar uma narrativa convincente do processo de criação do Exercício Alcora, que representa, de certa forma, o culminar deste enorme esforço diplomático. Propostas rodesianas como a de 1969, para a elaboração de um «Plano de Contingência para a África Austral»20 surgem sem referência a antecedentes, assim como a cooperação entre militares portugueses e sul-africanos ao longo da fronteira Angola-Namíbia não é suficientemente enquadrada. Afonso e Matos Gomes descrevem melhor a história desta cooperação, enquanto que a Rodésia tinha um longo historial no que toca a propostas de cooperação militar21. O esforço notável feito pelo autor para consultar fontes internacionais não foi suficiente no que toca ao Alcora, que assentou sobre vários relacionamentos, incluindo a ligação Rodésia-África do Sul, e que deve por isso ser investigado pondo cada um dos três países que o compuseram em pé de igualdade.

Comparando os dois livros, torna-se claro que se por um lado Afonso e Matos Gomes contam melhor a história do Exercício Alcora, incluindo os seus antecedentes imediatos, Barroso explica-nos o que acontece em torno dele: havia mais fatores a considerar nas relações entre os três países, e entre eles e o resto do Ocidente, do que apenas as questões estritamente militares. Mesmo assim, é difícil reconciliar os dois volumes no que toca à existência de uma política colonial sóbria e realista em Lisboa. Para Aniceto e Matos Gomes a resposta é claramente «não»; Barroso discorda, mas torna claro que foi uma política mal sucedida, já que Portugal não teve força suficiente para lidar de igual para igual com a África do Sul, de quem se foi tornando, lentamente, um satélite.

 

UM TEMA INEGAVELMENTE IMPORTANTE – MAS IMPÕE-SE MUITA CAUTELA

Para além do que traz de novo à nossa compreensão do desenrolar da Guerra Colonial, o estudo do Exercício Alcora abre toda uma série de questões para a qual não temos ainda resposta definitiva. A primeira destas questões prende-se com o evoluir do Exercício. Afonso e Matos Gomes, vimos já, sugerem que a aliança estava prestes a ser anunciada ao mundo (como desejavam Pretória e Salisbúria, de forma a que tivesse um efeito dissuasor), servindo esse abrir do jogo para preparar a devolução de poder a regimes brancos (e por isso mesmo minoritários) em Angola e Moçambique. Barroso, partindo de documentos sul-africanos, parece concordar, sugerindo porém que Lisboa não se tinha ainda convencido das vantagens de tal iniciativa: «Só em finais de 1973 é que a África do Sul considerou que as forças militares portuguesas conseguiriam vencer em Angola. Em Moçambique, a situação estaria próximo de ser irrecuperável a norte do rio Zambeze e só o enchimento de Cabora Bassa indicaria se Portugal poderia concentrar o esforço militar para norte. É provável que a formação de uma Confederação na África Austral, tal como proposto pelo general Fraser a P. Botha, fosse o passo seguinte, uma vez que Angola e Moçambique já tinham a designação de Estados. Porém, a nomeação de Santos e Castro (para Governador-Geral de Angola, tendo a reputação de integracionista) parecia contrariar essa tendência.»22

Não há dúvida que o processo de integração dos três esforços de guerra estava a acelerar, mas, como foi já aqui escrito, a voz dos militares sul-africanos e do ministro P. W. Botha era apenas uma das várias que se faziam ouvir no Governo sul-africano, tendo como rivais a importante aliança Negócios Estrangeiros-BOSS. O que Fraser sugere a Botha não pode ser tomado como uma decisão governamental, sobretudo nesta matéria, uma vez que a diplomacia sul-africana sempre desconfiou da capacidade de sobrevivência, a longo prazo, do regime de Ian Smith. A ideia de ter de apoiar três estados ilegais, todos eles sujeitos a sanções económicas e financeiras e necessitando por isso de importantes ajudas comerciais e militares nunca entusiasmaria John Vorster. Esta dúvida sobre enraizamento institucional paira, parece-nos, sobre todo o Exercício Alcora: o seu motor era militar, não político. Por isso achamos que, em vez de uma aliança tradicional, Alcora encontra um paralelo histórico nas conversações tidas entre os estados-maiores francês e britânico nas vésperas da I Guerra Mundial, conversações essas que contribuíram significativamente para a entrada da Grã-Bretanha na guerra de 1914- -191823. O valor desta comparação aumenta se nos lembrarmos que ainda hoje se discute até que ponto o Governo britânico, na sua totalidade, conhecia, em 1914, as obrigações morais contraídas por Londres quanto à defesa da França durante estas conversações24. Mais ainda; as boas relações entre militares rodesianos e sul-africanos continuaram de pé depois do 25 de abril embora as relações diplomáticas entre os dois países (e pessoais entre Smith e Vorster) estivessem já em franca degradação, com o Governo de Pretória, em busca de paz e estabilidade na região, disposto a oferecer a Rodésia como um sacrifício aos países da «linha da frente».

Não sabemos definitivamente, por isso, se existia de facto um plano para a evolução do Exercício Alcora, qual era e se tinha o apoio de todos os intervenientes nos três estados-membros. Mas do ponto de vista português, não deixa de ser interessante que é precisamente no momento em que se dá a grande evolução no Exercício Alcora, com a constituição do PAPO – encarregado pelas chefias militares de encontrar uma solução definitiva para o problema do «terrorismo» na África Austral – e discussões sobre forças militares integradas, que, em Lisboa, os altos comandos militares entram em plena ebulição. Surgem rumores de um golpe de Estado oriundo dos setores mais conservadores e, pouco tempo mais tarde, será publicado Portugal e o Futuro, com a autorização de Costa Gomes (que manterá um silêncio ensurdecedor sobre Alcora nos anos que se seguem). O nome do general Luz Cunha vem referido como um dos conspiradores do golpe de Natal de 1973; quando Portugal e o Futuro é publicado, está Luz Cunha a coordenar com os militares sul-africanos a resposta à ameaça zairense sobre Cabinda e o Norte de Angola; e será ele o escolhido para substituir Costa Gomes como CEMGFA. Talvez o Exercício Alcora e suas ramificações nos ajudem a compreender melhor o posicionamento das figuras máximas do Exército português nas vésperas do 25 de Abril, e sua atitude para com o Movimento das Forças Armadas.

 

NOTAS

1 South African National Defence Forces Archive, ALCORA 7, «Minutes of the 8th meeting of the ATLC held in Lisbon on October 14 and 15 1974».

2 Publicaram já o artigo «The last throw of the dice: Portugal, Rhodesia and South Africa, 1970-1974». In Portuguese Studies. Vol. 28, N.º 2, 2012, pp. 201-215; seguir-se-ão outros artigos, quer na revista Portuguese Studies, quer nas revistas International History Review e Journal of Contemporary History.

3 ARRIAGA, Kaúlza de – Guerra e Política: Em Nome da Verdade. Lisboa: Referendo, 1987, p. 246.         [ Links ]

4 AFONSO, Aniceto, e Gomes, Carlos Matos – Alcora: O Acordo Secreto do Colonialismo.Lisboa: Divina Comédia, 2013, p. 18.         [ Links ]

5 Ibidem, p. 45.

6 Ibidem, p. 60.

7 Ibidem, pp. 197-198.

8 Ibidem, pp. 90 e 156.

9 «O Governo português seguiu estes acontecimentos como se Portugal não fizesse parte do mundo onde eles se passavam! Salazar agiu como já fizera noutras situações […] Bastava manter-se imóvel!» (Ibidem, p. 60).

10 Ibidem, p. 270. A importância deste episódio é enorme, pois, como os autores explicam, «Na realidade, só Marcelo Caetano, o ministro da Defesa e os altos comandos militares pareciam estar a par do que se passava» (Ibidem, p. 271).

11 Ver, por exemplo, a descrição do governo de John Vorster. Ibidem, p. 89.

12 Ibidem, pp. 309-313.

13 Ibidem, p. 308. Os autores não indicam quais os documentos usados nesta secção do livro.

14 South African Department of Foreign Affairs (SADFA), 1/14/3 Vol. 2PL, Portugal, Relations with South Africa, 2 February 1962 – 7 July 1968, Sole a Viljoen, 6 de maio de 1968. Também Fraser foi informado pelos seus contatos portugueses que o petróleo de Cabinda permitiria o pagamento de qualquer empréstimo contraído em Pretória por Portugal. SADFA 1/22/3, Angola, Relations with South Africa, 18 May 62 – 28 June 68, Cônsul Geral em Luanda ao Secretary, Department of Foreign Affairs, 28 de maio de 1968, ‘Visit to Angola of Lt. Gen. C.A. Fraser, April 1968’,

15 SADFA 1/14/3 Relations with Portugal, 15 July 1964 – 13 August 82, Volume 1, ‘Versoek Om Bystand: Portugal’, Top Secret, 13 de março de 1969.

16 Ibidem.

17 SADFA 1/14/3 Relations with Portugal, 15 July 1964 – 13 August 82, Volume 1, De Loor a de Villiers, 11 de março de 1970.

18 Arquivo da Defesa Nacional, fundo 1, série 7, caixa 32, «Loan Agreement between the South African Reserve Bank and the Government of the Republic of Portugal, dated 17th March, 1970». Foi assinado, pela parte portuguesa, pelo embaixador em Pretória, Menezes Rosa. Confirmação de que o empréstimo foi de facto contraído – e um pedido de novo empréstimo, no valor de 15 milhões de rands – encontra-se na mesma caixa, em carta de Sá Viana Rebelo a P. W. Botha, de 18 de agosto de 1970. Botha respondeu a 14 de setembro, afirmando ter enviado o pedido a John Vorster.

19 Barroso, Luís – Salazar, Caetano e o «Reduto Branco»: A Manobra Político-Diplomática de Portugal na África Austral (1951- -1974).Lisboa: Fronteira do Caos, 2012, p. 131.         [ Links ]

20 Ibidem, p. 286.

21 Tais propostas iniciaram-se ainda durante os anos da Federação, e aceleraram no final dos anos 1960. Smith propôs um pacto de defesa tripartido (incluindo Portugal) a Vorster no encontro entre ambos na Cidade do Cabo, em março de 1967 («Record of meeting between the Prime Minister Ian Smith and the Prime Minister of South Africa John Vorster, 21 March 1967», Ian Smith Papers (ISP), deposit of 16 April 2010, Box 12, File ‘Relations with other countries 1 January 1966 – 31 December 1970’); em outubro de 68 o ministro da Defesa rodesiano escreveu ao ministro dos Negócios Estrangeiros sul-africano, na esperança de iniciar discussões sobre planos de contingência. A 3 de janeiro, em carta a Vorster, Smith regressou a este tema, tudo culminando numa resposta brutal do general Fraser: estando a África do Sul interessada em estabelecer uma grande aliança entre países do hemisfério sul, com apoio da NATO, «South Africa considers it unwise that there should be any closer formal links than already exist between Portugal in Africa, Rhodesia and the Republic of South Africa for the time being». «Brief for the Prime Minister», Defence, «Top Secret», sem data, mas provavelmente março de 1969, ISP, Deposit of 16 April 2010, Box 12, File «Relations with other countries 1 January1966 – 31 December 1970».

22 BARROSO, Luís – Salazar, Caetano e o «Reduto Branco»: A Manobra Político-Diplomática de Portugal na África Austral (1951- -1974), pp. 323-324.

23 Ver, a este respeito, STRACHAN, Hew – «The British way in Wwarfare revisited». In Historical Journal.Vol. 26, 1983, pp. 447-461.         [ Links ] Ver também WILLIAMSON, Jr., Samuel R. – The Politics of Grand Strategy. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1969;         [ Links ] WILSON, Trevor – «Britain’s Moral Commitment to France in August 1914». In History. Vol. 64, 1979, pp. 380-390;         [ Links ] JOLL, James – The Origins of the First World War. Londres: Longman, 1984, p. 64.         [ Links ]

24 COOGAN, John W., e COOGAN, Peter F. – «The British Cabinet and the Anglo-French Staff Talks, 1905-1914: who knew what and when did he know it?». In Journal of British Studies.Vol. 24, 1985, pp. 110-131.         [ Links ]